Somos animais “racionais”? – parte II | Marinho Lopes
Na primeira parte falei-vos do viés da confirmação, a nossa tendência natural para procurar evidências que confirmem as nossas ideias pré-concebidas. Mencionei também o efeito de Dunning-Kruger, que ilustra a nossa incapacidade de reconhecer a dimensão da nossa ignorância. Apanhamos um grão de areia na praia do conhecimento e de imediato julgamos ter na nossa posse todo o areal. Adicionei ainda que não estamos sozinhos: sofremos do viés da conformidade. Não queremos ser a ovelha negra e por isso temos tendência a seguir o que os outros dizem e fazem. Como a sociedade se organiza em grupos, temos tendência a ser condicionados pelos grupos em que estamos inseridos. Isso por sua vez dá origem ao viés de atribuição ao grupo, segundo o qual podemos precipitar-nos a julgar indivíduos por pertencerem a determinados grupos ou a julgar grupos por certos indivíduos fazerem parte deles. Nesta segunda parte iremos continuar a reconhecer que grande parte dos vieses cognitivos que temos condicionam a nossa visão do mundo.
Viés da Intencionalidade
Como assumimos que somos animais racionais, também pensamos que os outros o são… Vivemos todos nesta farsa social onde todos fazem de conta que agem de forma racional. Assim, quando nos perguntam porque é que fizemos algo, raras são as vezes que respondemos honestamente: “sei lá, calhou”. Pelo contrário, tentamos encontrar (inventar) as razões pelas quais fizemos algo, como se tivéssemos pensado nisso antes de o termos feito. O viés da intencionalidade é, portanto, a nossa tendência em assumir a existência de intencionalidade, quer nos outros, quer em nós mesmos. “Nada acontece por acaso.” Será mesmo? Julgamos ser mais que os nossos instintos, mas negligenciamos o facto de que em última instância as decisões dependem de uma vontade emocional injustificada (ver o artigo “Quem Decide, Emoção ou Razão?” na edição 75 da InComunidade). E isso é quando pensamos antes de fazer algo. O habitual é fazer o algo e atribuir razões a posteriori.
Não quero entrar em divagações, mas o destino força-me a especular que o viés da intencionalidade é um dos meios pelo qual o ser humano tenta compreender o mundo. Assumir que não há intencionalidade implica a aleatoriedade e, como tal, impossibilita uma explicação. Para responder ao medo daquilo que não podemos controlar e/ou compreender decidimos que há uma intenção, um propósito, um significado. É talvez em parte por causa deste viés que as religiões são tão comuns por esse mundo fora. Ironicamente, não será “por acaso” que muitos de nós acreditam no karma.
Por esta linha de pensamento é assim possível fazer uma ligação entre o viés da intencionalidade e o viés da “detecção de agentes”. Da mesma forma que assumimos uma intenção nos outros, também temos tendência a assumir a existência de alguém responsável (o “agente”) num dado evento. Se algo aconteceu é porque alguém quis que isso acontecesse (e tomou medidas para que de facto acontecesse). Se chove é porque “deus assim quis”. Será esta a origem das religiões? É uma hipótese difícil de testar, mas que muitos psicólogos evolucionistas equacionam. Tal como na primeira parte, também aqui temos que reconhecer que o viés não está sempre errado. É claro que por vezes há intenções assim como agentes. O problema está em muitas vezes partir do pressuposto que há intenções e/ou agentes sem considerar a hipótese contrária.
A hipótese de que a vida é justa
Talvez em parte como consequência da suposição de que há um propósito e/ou um ou vários deuses, surge a hipótese infantil de que a vida é justa. É uma conjectura entranhada na nossa cultura: “Cada um colhe segundo semeia”, ou “cada um tem o que merece”. Noutras línguas encontramos provérbios semelhantes (e.g., “what goes around comes around“). Com ou sem propósito divino, muitos de nós acreditam que a vida é feita de ciclos, que há uma simetria, uma harmonia, um equilíbrio. Tudo isto são hipóteses possivelmente falsas e que, por isso, devem ser contrapostas com o facto de que os ciclos podem ter fim, que tudo é possivelmente assimétrico, que a harmonia é uma interpretação humana e que o equilíbrio aparente pode ser transitório. Será justo o caríssimo leitor ter nascido onde e quando nasceu em contraste com a vasta maioria de humanos que viveram até hoje neste planeta? E não, não somos nós que criamos todas as injustiças e também não está no nosso poder trazer a justiça a toda a gente (ainda que devamos tentar).
Uma consequência deste viés é no mínimo irónica: pessoas que acreditam que há uma justiça omnipresente têm a tendência de procurar razões que justifiquem o facto de alguém ter sido vítima de um acontecimento infeliz, sendo assim potencialmente injustas para com a vítima!
Assumir que o mundo é justo e que há uma harmonia é bastante perigoso porque pode impedir o indivíduo de reconhecer a responsabilidade que tem em procurar a justiça e a harmonia. Isto aplica-se tanto à nossa relação com os outros, como à nossa relação com o meio ambiente.
Sorte moral
Uma outra potencial consequência do viés da intencionalidade é a chamada “sorte moral” onde alguém é julgado de acordo com as consequências fortuitas dos seus actos. Por exemplo, eu posso oferecer uma sandes a uma pessoa aleatória na rua e, ao fazê-lo, poderei estar a salvar uma vida (sem eu o saber). A parte de salvar ou não uma vida é uma questão de sorte, mas a forma como iremos elogiar a minha acção depende dessa consequência aleatória. O viés também ocorre no sentido contrário, isto é, também podemos ser mais duros no julgar de alguém se as consequências forem nefastas. Por exemplo, imaginemos que um casal deixa os filhos em casa. Num cenário, a casa é assaltada e os filhos são assassinados. Num outro cenário, nada acontece. A negligência dos pais é a mesma, mas temos uma maior tendência a condenar os pais no primeiro cenário. Outro exemplo: um condutor não repara num sinal vermelho… Num cenário atropela uma criança, noutro cenário não acontece nada. O acto de atravessar o sinal vermelho foi o mesmo, as consequências não dependeram do condutor, contudo o nosso julgamento do condutor é completamente diferente de acordo com as consequências do acaso.
Como é evidente, este viés é um pouco diferente quando o julgamento se aplica a nós mesmos. Nesse caso temos o viés da autoconveniência: se as consequências dos nossos actos forem positivas, então sim, tivemos intenções e merecemos os aplausos. Se as consequências forem negativas, é claro que não, foi sem querer, não era nossa intenção! O sucesso é produto do nosso esforço e inteligência, o fracasso resulta da nossa pouca sorte (ou estupidez dos outros).
Na próxima parte iremos conhecer mais vieses cognitivos!”
“Ando a constatar o viés da confirmação em todo o lado desde que me contaste sobre ele.” – “Estás a confirmar o viés da confirmação. É exactamente assim que o viés da confirmação funciona.”
Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.