Kaspar Hauser ou Cada um por si
e Deus contra todos
Quero ser um cavaleiro que voa para um combate sangrento
a música soa forte no meu peito estou muito velho
os homens são como os lobos
Não consigo imaginar que Deus criou tudo do nada
deixe as maçãs dormirem estão cansadas
não posso imaginar o meu futuro eu não tenho passado
Sou um estranho entre os homens
com uma lua no bolso e um punhal no coração
Sonhei com o mar e uma multidão subindo a montanha
no meio do nevoeiro lá em cima estava a morte
Eu agradeço por terem ouvido a minha história
agora posso morrer
O jovem audaz do trapézio voador
As árvores passavam pela janela do trem
depois as vacas no pasto verde
e um cavalo preto amarrado a um mourão
De repente alguém jogava dados
eu sempre perdia
mas o jogo era interminável na noite longa
Uma mulher deitada no chão molhado
Deus como um ponto negro perdido no escuro
a morte joga com dados viciados
O trem corre sem parar em direção do abismo
eu ergo a bengala no ar e ele vira à direita ou à esquerda
por um momento livre do abismo
Uma cigana me oferece cerveja e cigarro
depois quis ler o meu destino
estava fechado para balanço
Poema à mãe
Mãe, a areia se escoa da ampulheta.
O teu menino envelheceu.
A ferrugem rói os ossos e a paisagem.
Vesti a roupa preta da despedida.
O tempo voa.
Olho a minha imagem
no espelho:
triste e torto,
não me reconheço.
O mundo fez de mim um homem duro,
não sou mais o teu menino puro.
Sou quase um homem morto.
Onde as tuas mãos para me pensar as feridas mãe?
Onde os teus olhos que refletiam o olhar de Deus?
Desfaleço.
No fim do caminho
estendo as mãos procurando as tuas mãos, mãe.
Estou tão sozinho.
A borboleta amarela
Encontrei uma borboleta morta na janela de casa.
Era uma borboleta amarela como ouro.
Era bela como o ouro.
Lembrava o sol.
E doía, essa morte sem significado.
Por que essa borboleta estava ali?
Por que a beleza, diante da morte?
Eu me perguntava e as questões se multiplicavam:
Por que estamos aqui?
A beleza é mais forte diante da morte?
A borboleta jazia na janela.
Depois foi levada pelo vento
como uma folha dourada que ganhasse asas e voasse.
O coração
O coração estava num buraco na parede
pulsava
estava vivo e quente
era um músculo duro e resistia
queimou as minhas mãos quando o ergui
peguei uma faca e o cortei em quatro pedaços
era o meu coração e alimentaria a minha família
saíram chamas dele
eram lavas de um vulcão
tinha uma lua pairando sobre o vulcão
a poesia é uma casa de loucos
O som da água
Deito sobre a relva e ouço o som da água
no coração da terra
a água não para de correr e cantar
a terra é doce como um ventre de mulher
um galo canta ao longe como se fosse
dentro da terra
um cavalo canta com o galo no dorso
o musgo é doce, úmido, quase líquido
as penas do pato selvagem adejam
a serpente nada no lago
ao lado dos peixes e dos juncos
uma pedra flutua na água com suavidade
como um poema
José Carlos Mendes Brandão nasceu em 28 de janeiro de 1947, em Dois Córregos, SP, Brasil. Mora em Bauru, SP. Publicou nove livros de poesia: desde “O Emparedado” (1975) a “O país impossível” (2022) e dois de crônicas: “A hora do gavião” (2016) e “O afinador de silêncios” (2022). É detentor de vários prêmios literários, como o da V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por “Presença da Morte” (poesia); o “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro do ano, 1984, por “Exílio” (poesia); o Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; o Brasília de Literatura, 1991, e o “Jorge de Lima”, da U.B.E.-Rio, 2011, pelo “Livro dos Bichos” (poesia), 2011.