Poesia & Conto

Seis poemas | José Carlos Brandão

Kaspar Hauser ou Cada um por si 

         e Deus contra todos

 

Quero ser um cavaleiro que voa para um combate sangrento
a música soa forte no meu peito estou muito velho
os homens são como os lobos

Não consigo imaginar que Deus criou tudo do nada
deixe as maçãs dormirem estão cansadas
não posso imaginar o meu futuro eu não tenho passado

 

Sou um estranho entre os homens

com uma lua no bolso e um punhal no coração


Sonhei com o mar e uma multidão subindo a montanha
no meio do nevoeiro lá em cima estava a morte

Eu agradeço por terem ouvido a minha história
agora posso morrer

O jovem audaz do trapézio voador

 


As árvores passavam pela janela do trem
depois as vacas no pasto verde
e um cavalo preto amarrado a um mourão

De repente alguém jogava dados
eu sempre perdia
mas o jogo era interminável na noite longa

Uma mulher deitada no chão molhado
Deus como um ponto negro perdido no escuro
a morte joga com dados viciados

O trem corre sem parar em direção do abismo
eu ergo a bengala no ar e ele vira à direita ou à esquerda
por um momento livre do abismo

Uma cigana me oferece cerveja e cigarro

depois quis ler o meu destino

estava fechado para balanço

 

Poema à mãe

 

Mãe, a areia se escoa da ampulheta.

O teu menino envelheceu.

A ferrugem rói os ossos e a paisagem.

Vesti a roupa preta da despedida.

 

O tempo voa. 

Olho a minha imagem 

no espelho:

triste e torto, 

não me reconheço.

O mundo fez de mim um homem duro,

não sou mais o teu menino puro.

Sou quase um homem morto.

 

Onde as tuas mãos para me pensar as feridas mãe?

Onde os teus olhos que refletiam o olhar de Deus?

 

Desfaleço. 

No fim do caminho 

estendo as mãos procurando as tuas mãos, mãe.

Estou tão sozinho. 

 

A borboleta amarela


Encontrei uma borboleta morta na janela de casa.
Era uma borboleta amarela como ouro.
Era bela como o ouro.
Lembrava o sol.
E doía, essa morte sem significado.

Por que essa borboleta estava ali?
Por que a beleza, diante da morte?
Eu me perguntava e as questões se multiplicavam:
Por que estamos aqui?
A beleza é mais forte diante da morte?

A borboleta jazia na janela.
Depois foi levada pelo vento
como uma folha dourada que ganhasse asas e voasse.

 

O coração

 

O coração estava num buraco na parede

pulsava

estava vivo e quente

era um músculo duro e resistia

queimou as minhas mãos quando o ergui

peguei uma faca e o cortei em quatro pedaços

era o meu coração e alimentaria a minha família

saíram chamas dele 

eram lavas de um vulcão

tinha uma lua pairando sobre o vulcão

a poesia é uma casa de loucos 

 

O som da água

 

Deito sobre a relva e ouço o som da água

no coração da terra

a água não para de correr e cantar

a terra é doce como um ventre de mulher

 

um galo canta ao longe como se fosse 

dentro da terra

um cavalo canta com o galo no dorso

o musgo é doce, úmido, quase líquido

 

as penas do pato selvagem adejam

a serpente nada no lago

ao lado dos peixes e dos juncos

 

uma pedra flutua na água com suavidade

                           como um poema

 

Fotografia de José Carlos Brandão

 

José Carlos Mendes Brandão nasceu em 28 de janeiro de 1947, em Dois Córregos, SP, Brasil. Mora em Bauru, SP. Publicou nove livros de poesia: desde “O Emparedado” (1975) a “O país impossível” (2022) e dois de crônicas: “A hora do gavião” (2016) e “O afinador de silêncios” (2022). É detentor de vários prêmios literários, como o da V Bienal Nestlé de Literatura, 1991, por “Presença da Morte” (poesia); o “José Ermírio de Moraes”, do Pen Centre de São Paulo, para melhor livro do ano, 1984, por “Exílio” (poesia); o Cidade de Belo Horizonte, por um romance inédito, 2000; o Brasília de Literatura, 1991, e o “Jorge de Lima”, da U.B.E.-Rio, 2011, pelo “Livro dos Bichos” (poesia), 2011.




Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
3
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.