Cultura

O amor a todos os gêneros | Letícia Ferro

Em “memória” ao desejo de uma nova edição em 2023

Letícia Ferro

A presença, de todas as únicas maneiras, adensa-se em um com o amor – a ponto de (se a)firmar “tão forte [até] na ausência” (Castro, 2013, p. 25) e modular a forma de sua percepção. Confluindo entre sentidos, ruma para muitos lados e perspectivas, como quem pergunta pela chave e promove a refração do romance – sob a poesia e o afeto (da) crônica cotidiana. A braços com as vicissitudes da escrita, De todas as únicas maneiras (7Letras, 2013), de Jorge Viveiros de Castro, enreda amorosidade a “[p]ersonagens, [a] ela. As palavras que falo, eu, as palavras que olho para ela, flores da pele, pensamento. Silêncios brincando em seus lábios, de beijar. E a voz. As coisas que ela faz” (Castro, 2013, p. 53). Narrado em voo aberto, o alcance da obra flui muito no escrutínio da falta que ama (como já diria Drummond), nos instantes e ecos internos daquele que se declara, com dileção, à personagem conhecida tão somente pelo pronome pessoal “ela”, mas que é a “[…] dona dos meus olhos” (Castro, 2013, p. 46) – em que pese a inexorabilidade de suas várias faces, pois “ela” se nos apresenta com algo de “[s]ereia, miragem, exagero” (Castro, 2013, p. 29). O encarrilhado dos termos do próprio autor é feliz por contemplar o que de construção subjetiva há em sua “narrativa”, mas também porque assaz reflete a criação literária em franca expansividade – que se chanfra e se transfunde – e a presença feminina (re)posta, que o leva, com paixão, a espelhar forma e conteúdo – qual seja: com “[q]uantas palavras [se] indefinem. E frases, e páginas, e fotos. E a falta das fotos. Falsas, essas caras. As histórias que tento contar. As pessoas. Ela, e tantas. Tantas, únicas, as mesmas. Outras. Ela” (Castro, 2013, p. 29).

 

O próprio título do livro, animado da contraditoriedade dos complementos de sua expressão – na esteira dos “[…] restos de um amor eterno […]” (Castro, 2013, p. 47) – apresenta-se, com coerência, engendrado pelo propósito de conferir o iminente recuo de uma só maneira de se entregar a outras tantas: “[a] múltipla (única) meta. Desdobrando-se em várias, ela […]” (Castro, 2013, p. 26); eis a releitura das formas – “[…] eu quis ser poeta, e nunca só” (Castro, 2013, p. 25), tendo em conta que “[…] busco a súbita realidade de um poema, como se houvesse” (Castro, 2013, p. 26), e (re)conheço que “[a]os poucos o breve encontro se transforma no eterno tempo. Repasso cada palavra, repito em voz baixa as frases não acontecidas, as perguntas ecoam no ouvido. Invento novas falas, novas cenas, um novo enredo para o pretérito. Perfeito” (Castro, 2013, p. 19). A condição provisória encontra-se, então, registrada nas (a)notações mutáveis da paisagem sentimental, assimilando-se ao momento work in progress de sua própria enunciação – com “[…] meus cadernos repletos de cartas a caminho” (Castro, 2013, p. 66) – que dá a ver a vacuidade da presença da personagem “ela” e a natureza líquida (com o olhar em Bauman) da escrita. Assim, o sema amoroso, qual o da própria diegese, integraliza-se no seu resíduo, flertado pela mediania lírica e ao avanço dos passos de cada palavra, refugindo o contorno estanque para ir ao encontro de sua reminiscência. Nesse particular, nota-se uma ode ao fragmento, à escuta da Mnemosine, àquilo que contempla, mas também excede o passado, ressoando no presente, com vistas a aperfeiçoá-lo. A precisão de sua forma irrompe justamente na sua incerteza.

 

Nessa visada, a coragem da prosa De todas as únicas maneiras reside na pena de sua rarefação, de uma história aquosa, como, por vezes, rasurável, fazendo as vezes de um palimpsesto, quando nela vemos reavivar o passado insurgindo-se de outro modo, ao radicalismo de seu cancelamento, inclusive, na medida em que o autor atenta às diversas únicas maneiras de interceptação da realidade pelo exercício literário. Tornando-o, afinal, móbile – de “[…] fronteira tênue, o limiar, […] [e com] um gesto incompleto” (Castro, 2013, p. 36). Não é impróprio, portanto, pensar que o modus operandi do autor seja, aqui, compreendido, glosando Paul Ricœur (2007, p. 25), como um “[…] curto-circuito entre memória e imaginação […]”, haja vista que “[…] essas duas afecções estão ligadas por contiguidade, [e] evocar uma – portanto, imaginar – é evocar a outra, portanto, lembrar-se dela”. Essa indefinição de onde começa e onde termina ambas as faculdades diz muito ao processo de elaboração e/ ou percepção de uma história de amor que se encontra atravessada, essencialmente, pelo (des)encontro de quem é flagrado (di)vagando “[…] pelas tonturas da imaginação relembrando cenas inexistentes, invenções escoando entre os dedos” (Castro, 2013, p. 23), e que chega, inclusive, a disparar: “[o] resto não lembro” (Castro, 2013, p. 19).

 

Tão logo, o que não perdurou ou, ainda, sequer, um dia, chegou a se consolidar, o curso do envolvimento com a personagem “ela” dota-se de mobilidade, em que os pormenores de sua relação com o narrador passam a ser vocalizados pelo ritmo e cadência de suas aparas, mostrando-se envolto da busca pela palavra ideal. “Claro que vou falar com ela, como se nada houvesse. Decoro as falas imaginárias. Digo as coisas certas, parabéns, repito cada etcétera até não ter mais erro, faço e refaço meu diálogo solitário” (Castro, 2013, p. 17). Com Jorge, memória e literatura se irmanam no processo de rasura da realidade, na propositiva de quem (re)cria, com gesto original, os arroubos de um desfecho em malogro, tendendo-o ao ensejo de se aplacar o intento da vida a dois ao estreito da escrita e reescrita – tão cara aos poetas. Assim, é que “[n]o final do livro tudo se resolv[e], enquanto isso. Nós dois sentados no meio-fio. Nós dois a caminho. Encostados no carro ou inventando passos na caçada, onde os braços não cabiam, as mãos tão excessivas, de não saber o que fazer. De não tocar. A vontade. Que não acabasse. A cena, as realidades. Sob a sombra dos luares” (Castro, 2013, p. 69). Sob a sombra tênue dos gêneros, enfim.

 

* * *

 

 De todas as únicas maneiras veio a lume pela primeira vez no ano de 1993, com publicação da editora Diadorim. Em seguida, no ano de 2002, foi publicado pela 7Letras, com o adendo “& outras”, compondo-se de textos inéditos, incluso o breve A caminho (Moby-Dick, 2001). Em 2013, novamente, a obra é publicada, porém, com o texto de origem, salvo pequenos ajustes de correção.

 

 

Referências

 

Castro, Jorge Viveiros de. De todas as únicas maneiras. Rio de Janeiro: 7letras, 2013.

 

Ricœur, Paul. Memória e Imaginação. In: _____. A memória, a historia, o esquecimento. Trad. de Alain François [et. al.]. Campinas: Editora da Unicamp, 2007. p. 25-70.

Fotografia de Letícia Ferro

 

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela UFG. Possui diversas publicações em periódicos especializados. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com.



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