Cultura

Cantos da pedra e do mundo: Carlos Drummond, parceiro de Chico, Caetano e Milton | Roniere Silva Menezes

Este texto objetiva  estabelecer  reflexões  a  respeito  de  intertextos  existentes  entre  a  produção  poética de Carlos Drummond e a dos compositores Chico Buarque, Caetano Veloso e Milton Nascimento. A literatura de Drummond marca-se por um ritmo singular. As pontuações éticas, políticas e sociais do poeta funcionaram como alimento aos  compositores  que  despontaram  no  Brasil  a  partir  da  segunda  metade  dos  anos  1960.  Drummond ofereceu ferramentas importantes ao desenvolvimento da MPB, inclusive com a criação de imagens que ressoam em várias canções – muitas vezes com outros sentidos –, como é o caso de pedra, caminho, anjo torto, mundo grande.

 

 

Cantos da pedra e do mundo: Carlos Drummond, parceiro de Chico, Caetano e Milton

 

Música das montanhas 

 

Ó maninha, cuidado

que o boto, o gauche, o tal Canhoto

ou que nome tenha em ond ou ade,

cheio de astúcia e de mentira,

te faz uma maldade.

Ele virá, ele virá de lira 

em punho, o safadinho,

entoando a canção da pedra no caminho

e tu, minha inocente, 

ouvindo a cantoria,

te metes para sempre numa fria.

(Andrade, Poesia errante)

 

Este trabalho visa a refletir sobre alguns diálogos existentes entre a produção poética de Carlos Drummond de Andrade e a canção popular brasileira. Mesmo a poética do autor não se revelando melodiosa, detentora de ritmos regulares, torna-se bastante comum em sua produção a presença de signos ligados à linguagem musical. Em nosso texto, pensamos avaliar algumas poesias de Drummond retomadas pela canção popular a partir da poética do controle e do descontrole, o que evoca as noções de lugar mais fechado como a Minas Gerais antiga, da memória, patriarcal, o cenário conhecido, as situações difíceis e solitárias, e o espaço aberto, ligado ao encontro, à viagem, à literatura de caráter cosmopolita, enfim, ao mundo grande. 

 

No texto, vamos apresentar um panorama intertextual relativo a algumas canções que retomam poemas do autor mineiro ou que possibilitam diálogos com a obra do poeta. Devido à extensão do corpus, trataremos mais dos diálogos entre poemas e letras de canções. Faremos breves pontuações a respeito da linguagem musical e das relações entre letra e música. 

 

Em nossas leituras, percebemos que duas imagens presentes na obra drummondiana aparecem em diversas canções realizadas a partir da poesia de Carlos: a da pedra e a do mundo. Sabemos que “pedra”, no poema No meio do caminho, revela-se, em diversas análises, objeto concreto, preciso, não termo passível de metaforização. Mas o signo é retomado em canções populares sob outros matizes, evocando sentidos próximos ao senso comum, devido mesmo à comunicação que o gênero canção estabelece com o imaginário de seu público. 

 

No âmbito na música popular, pedra expande-se para a ideia de dificuldade, solidão, ceticismo. O signo “mundo”, presente, por exemplo, em “Mundo grande”, do livro Sentimento do mundo, assinala a aventura incerta, a sensação de pequenez diante do universo que se almeja alcançar. O empecilho, a solidão e o ceticismo inserem-se na ideia da pedra e o movimento em busca de outras realidades, a experiência que se vai adquirindo ao lançar-se na estrada, mesmo que o sujeito lírico revele-se reticente ao percorrer seu caminho, liga-se à noção de mundo. O gauchismo associa-se, nesse sentido, à ideia de partida rumo a outros espaços. Muitas vezes, o isolamento relaciona-se à dificuldade de lidar com as transformações do mundo, à carência de uma verdadeira comunicação entre os homens.

 

Ao avaliar o poema “No meio do caminho”, John Gledson observa que o poeta lida com uma pedra que se apresenta de forma bem importante pois assinala: “Nunca me esquecerei (…)”, mas, ao mesmo tempo, esse objeto não aceita ser algo que não seja a pedra bruta, o mineral, aspecto ressaltado pela repetição. Segundo o crítico:

(…) o poema é uma expressão bem sucedida de um estado de espírito profundo e repre-sentativo. (…) A monotonia das frases repetidas, a recusa de dizer que a pedra é outra coisa senão uma pedra, são assaltos aos hábitos mentais de gente acostumada a outro tipo de poesia; e são também a encarnação do ceticismo intenso do poeta, a sua necessidade de eliminar ideias e maneiras de pensar convencionais. (…) Rejeitada toda construção ideológica, e até rejeitadas as metáforas de que lançamos mão para construí-las, o po-eta está reduzido a uma constatação simples, objetiva, agressiva, e quase sem sentido. (GLEDSON, 1981, p. 77)

Em relação a “Mundo grande”, o crítico inglês declara que o poeta e o mundo não encontraram a harmonia imaginada em “Mãos dadas”, poema também constante de Sentimento  do  mundo. O sujeito-lírico parece perceber também que o mundo é bem maior que ele pensara ao assinalar “Mais vasto é meu coração”, em “Poema de Sete faces”, presente em Alguma poesia. Para Gledson, existe uma relação entre “Mundo grande” e “Sentimento do mundo”. Sobre o primeiro poema, observa: “Com efeito, o eu explode na tentativa de abraçar a multiplicidade do mundo, e ao longo do poema reage de uma maneira deliberadamente melodramática.” (GLEDSON, 1981, p. 132)

 

Em Maquinação do mundo, José Miguel Wisnik observa que Carlos Drummond releva-se “um escritor tão apegado ao provinciano lugar de origem e ao mesmo tempo tão marcado por um sentimento cosmopolita do vasto mundo.” (WISNIK, 2018, p. 18). Em outro momento do livro, Wisnik assinala, corroborando nossas reflexões: 

Não por acaso mundo e pedra são palavras estratégicas no vocabulário poético de Carlos Drummond de Andrade: uma é o contrário e o equivalente da outra. Pois, se o mundo é o limiar inexprimível e inabarcável ao qual não se chega, certos objetos comparecem como a própria cifra dessa impossibilidade – empecilhos opacos e irredutíveis da totalidade inacessível. (WISNIK, 2018, p. 183)

Segundo o crítico, alguns objetos surgem na poética drummondiana como obstáculo a inter-romper o caminho. Assim, o mundo manifesta-se no lugar mesmo onde se nega a apresentar-se. 

 

A imagem da pedra em Drummond pode se relacionar a figurações da penha na produção do conterrâneo Cláudio Manuel da Costa. Segundo Antonio Candido, há no poeta árcade uma “imaginação da pedra”:

(…) esta presença da rocha aponta nele [Cláudio Manuel] para um anseio profundo de en-contrar alicerce, ponto básico de referência, que a impregnação da infância e adolescência o levam a buscar no elemento característico da paisagem natal. (CANDIDO, 1964, p. 93)

Para Candido, no momento em que o poeta deseja localizar um personagem, faz a descrição em lugar próximo a uma rocha ou sobre ela; na pedra, o sujeito lírico escreve seus lamentos. Mas é na antítese que mais utiliza a pedra buscando contrapontos: “sentimento-rocha, brandura-dureza.” O crítico assinala que a pedra e o rio são dois elementos básicos da poética de Cláudio. Às vezes, o rio nasce do penhasco. Escreve o crítico:

Esta identificação talvez tenha algo a ver com outra constante da sua obra: o relativo dila-ceramento interior, causado pelo contraste entre o rústico berço mineiro e a experiência intelectual e social da Metrópole, onde fez os estudos superiores e se tornou escritor. (CANDIDO, 1964, p. 95)

 

Tomás Antonio Gonzaga, ao final da Lira II, da parte II de Marília de Dirceu, escreve os versos que seriam retomados por Drummond, em Mundo grande, conhecido poema de Sentimento do mundo (ANDRADE, 2002, p. 87-88):

Eu tenho um coração maior que o mundo!

Tu, formosa Marília, bem o sabes:

Um coração…, e basta,

Onde tu mesma cabes. (GONZAGA, 1995, p. 60)

 

Como sabemos, a tensão entre a pedra e o mundo, entre paisagem, a vivência local e o desejo, mesmo que incerto de fuga, de questionar valores vigentes, tornam-se essenciais na compreensão da obra drummondiana. Na criação do autor, algumas vezes a pedra funciona como uma metonímia da esfera planetária, outras vezes o embate com a pedra desloca percepções, acomodações, possibilitando a abertura para novas visões de mundo. Em outros momentos, é justamente o contato com o espaço exterior, o fora, as culturas diversas que transformam o olhar do poeta em relação ao círculo familiar, à comunidade interiorana. Na maturidade, ao mesmo tempo que volta literariamente às memórias do menino antigo, o autor de Boitempo assume carregar nas veias valores da tradição familiar e desconstrói comportamentos patriarcais, conservadores e mesmo racistas dos antepassados. Esse embate, esse incômodo, essa tensão, de certa forma, molda a poética drummondiana e a aproxima, em alguma medida, dos contrastes presentes no barroco mineiro.

 

Diálogos com a canção popular urbana

 

Em se tratando de música popular urbana, Drummond escreveu pequenos poemas e crônicas que tratam dos nomes de Nara Leão, Chico Buarque, Dolores Duran, Ary Barroso, Carmen Miranda, Pixinguinha, Cartola, Heitor dos Prazeres, a família Lyra (de Carlinhos Lyra), fazem referências a canções como “Maracangalha”, de Dorival Caymmi, etc.Muitas das criações de Drummond trazem no título ou em versos signos ligados ao campo semântico da canção: “Cantiguinha”, “Cantiga de viúvo”, “Canção de Itabira”, “Canto ao homem do povo Charles Chaplin”, “Canção amiga”, “Viola de bolso”, “Canção do berço”, “Canção para álbum de moça”, “O som da sineta”, “Canto brasileiro”, “Toada do amor”, “Música de fundo”, etc. Muitos dos poemas musicados trazem aspectos ligados à solidão, à ausência de saída para alguma condição existencial, à memória – traços ligados à “poética do centramento”, “poética do controle”, da pedra, e aspectos ligados à linguagem questionadora de tempos e espaços habituais relacionados à criação de linhas de fuga, à atitude “gauche”, e que podem figurar como exemplos de uma “poética do descontrole”, do fora, da abertura, da percepção do grande mundo.

 

 Diversos relatos de compositores populares brasileiros demonstram a leitura da obra drummondiana e mesmo a memorização de vários poemas. Muitas são as composições populares realizadas a partir de poemas do autor. Mesmo apresentando musicalidade difícil, os poemas do autor foram bastante traduzidos para o universo sonoro. Além dos poemas musicados, versos, ideias do poeta aparecem de modo intertextual em diversas canções populares. Essas parcerias, paráfrases, citações, alusões ocorre, por exemplo, nas canções “E agora José”, de Paulo Diniz e Carlos Drummond; “Anoitecer”, de José Miguel Wisnik e Carlos Drummond; “Virgem”, de Marina e Antônio Cícero; “That’s play that”, de Jards Macalé e Torquato Neto; “Já fui brasileiro”, de Belchior e Carlos Drummond; “Estória de João e Joana”, de Sérgio Ricardo e Carlos Drummond; “Sonho de um sonho”, de Martinho da Vila e Carlos Drummond. Esta composição foi o samba-enredo da Vila Isabel, em 1980. Deve-se lembrar que Martinho da Vila deu o nome de Rosa do povo a um disco lançado em 1976. Em 1987, ano de seu falecimento, o poeta foi homenageado com desfile da Escola de Samba Mangueira com enredo intitulado “No reino das palavras, Carlos Drummond”. Chico Buarque participa do desfile.

 

Vamos nos deter em alguns diálogos entre Carlos Drummond, Caetano Veloso, Chico Buarque, Milton Nascimento e Fernando Brant. Acreditamos que a poética de Drummond configura-se, no campo das letras, como uma das maiores influências na canção popular no país. Sabemos dos trânsitos de entre a literatura e a música em Vinicius de Moraes, da extrema preocupação sonora na poética de Cecília Meireles, da compreensão aguda do universo musical em Mário de Andrade ou em Murilo Mendes. O menino antigo, de Itabira, trazia uma forte afeição pelo gênero musical e o trata, segundo o autor, de modo mais intuitivo que racional. A noção de ritmo melódico é intensa no poeta. Mesmo não sendo frequentemente uma estrutura poética harmônica ou melodiosa, os textos do autor, em sua diversidade, trazem característicos elementos ligados à melodia, ao ritmo, ao timbre e à dicção. 

 

Em consonância com suas preocupações com o tempo presente, o poeta consegue esculpir, no campo da literatura brasileira, noções muito fortes relativas ao Brasil e ao homem brasileiro, traços que contribuem, em termos de um ethos, para a composição de canções populares no país. Os textos são politicamente empenhados e os que tratam dos sentimentos sobre o estar no mundo contribuem para a formação intelectual, a educação sentimental e a concepção estética de jovens compositores declaradamente leitores do autor. Deve-se ressaltar que textos relativos à Segunda Guerra auxiliam na leitura do contexto da Ditadura Militar no país. 

 

As imagens “pedra” e “mundo”, presentes em diversos momentos da literatura drummondiana contribuem bastante para avaliarmos a criação do poeta e de canções realizadas em parceria ou com influências mais ou menos diretas do poeta itabirano. 

 

Sobre o poema “No meio do caminho”, há inúmeras análises, críticas, traduções, paráfrases, paródias, etc. Como sabemos, o próprio poeta escreveu um livro reunindo textos relativos ao estranho e inusitado texto: Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema (ANDRADE, 1967). O livro pode ser visto como a continuação do trabalho de recorte, colagem e montagem que está na base da confecção do poema.

 

Expansões literárias

 

Em entrevista a Augusto Massi e Lúcia Nagib, na Folha de S. Paulo, em 1985, Carlos Drummond assinala:

 

Não toco nada. Mas confesso que até hoje tenho um certo fraco pela música dolente, romântica, pela seresta, pela valsa vienense. (…)(…) É engraçado, porque se o Mário (de Andrade) notou em mim a noção de ritmo, por extensão devia-se admitir que eu tivesse um ouvido apurado para música. Foi um lapso da minha formação, da formação dos rapazes do meu tempo. Nós nos preocupávamos só com literatura, não víamos a consanguinidade das artes. A literatura está casada inti-mamente com a música, as artes plásticas etc. O princípio estético é o mesmo, o impulso de criação é único, apenas diversificado nas suas técnicas e formas de expressão. Acho que um bom poeta, um bom escritor deve ter uma formação musical. (ANDRADE, 1985)

Torna-se interessante notar a percepção que o autor detinha a respeito do ritmo de sua poesia, mesmo não tendo muito conhecimento musical. Mas torna-se interessante ressaltar um aspecto do texto: a noção do poeta da relação interartes. Em entrevista para o Jornal do Brasil, em 1982, quando da comemoração de seus oitenta anos, Drummond observa:

 

Nunca tive entendimento com músicos sobre aproveitamento musical de poesias minhas. Por temperamento, sou avesso a solicitar ou sugerir a conversão de trabalhos meus em composições musicais. Por sua vez, os compositores que me honraram com suas escolhas, jamais me consultaram a respeito. Devo confessar que, se consultado, não teria condição de prestar colaboração valiosa, pois me falta imaginação bastante para conceber o texto em outro invólucro sonoro que não o da simples palavra pronunciada vulgarmente. (ANDRADE, 1982, p. 8.)

Segundo o poeta, o fato de ter de seguir certas normas rítmico-melódicas, adequar as sílabas verbais a compassos musicais o impediriam de escrever de modo mais espontâneo, mais livre – o que não elide o rigor da forma poética do autor. Na mesma entrevista, o mineiro assinala que desde cedo procurou ouvir a melodia presente nos versos e menciona o fato de o que sempre lhe encantou na poesia foram os elementos rítmicos e melódicos. Mesmo o poema não seguindo métricas tradicionais, mesmo o verso não fazendo muito sentido, pode apresentar beleza “desde que as palavras estejam harmoniosamente combinadas. A beleza tanto pode estar nesta harmonia como nos sons que ela produz. Ou mesmo na monotonia da repetição. (ANDRADE, 1982). A função do poeta, nesse sentido, aproxima-se do trabalho de montagem. Ele precisa encontrar “as palavras certas e combiná-las de forma que produzam um efeito agradável aos ouvidos.” (ANDRADE, 1982). No texto, Drummond também toca na relação existente entre distintos gêneros artísticos: “É importante a integração entre as artes, a poesia, a literatura, a música, as artes visuais. É possível encontrar poesia numa sonata, música num poema, plástica em qualquer obra literária (ANDRADE, 1982)

 

A reflexão de Drummond revela-se bastante atual, quando liga-se à noção de literatura como campo expandido, aos estudos interartes e, ao mesmo tempo, dialoga com algumas percepções de alguns de seus contemporâneos sobre o universo artístico. No livro O banquete, de Mário de Andrade, ao se aproximarem da casa da milionária Sarah Light, construção projetada por Oscar Niemeyer, o protagonista Janjão diz ao seu amigo Pastor Fido que não gosta de arquitetura moderna. Fido argumenta a respeito dos artistas:

Seres imperfeitos, incompletos. Uns só entendem de pintura, nunca vão a um concerto; outro é músico moderno, mas detesta arquitetura moderna. Se esquecem, ignoram que só existe uma arte, é a Arte, de que as artes não passam de processos de representação. Outros esquecem que a época é uma só, explicada tanto pela música moderna como pela arquitetura moderna. Vocês são uns desequilibrados. (ANDRADE, 1989, p. 69)

 

Janjão era músico moderno, mas não se interessava por arquitetura moderna. Mário utiliza a personagem para desenvolver seus argumentos a respeito daquilo que mais tarde veio a se chamar interdisciplinaridade ou mesmo transdisciplinaridade. Drummond comunga com o paulista ideias relativas à construção artística.

 

Santuza Cambraia Naves, ao desenvolver o conceito de música crítica e a partir de reflexão do poeta Antonio Cicero, observa que, no Brasil, artistas como Caetano e Chico, ligados à geração de compositores universitários, desenvolveram uma concepção de cultura não hierárquica em que a canção passa a ocupar lugar antes reservados a outras formas artísticas: “Caetano acabou canalizando para a música o seu pendor original para a crítica, para o cinema e para a filosofia.” (NAVES, 2020, p. 24). Outro aspecto ressaltado é o de os compositores começarem a trabalhar junto com artistas de outras áreas, como ocorre com os contatos de Caetano com Hélio Oiticica ou com os irmãos Campos. Santuza Cambraia lembra também de entrevista de Chico Buarque em que esse considera típico da música popular brasileira a ausência de limites entre o erudito e o popular, como acontece em países europeus, principalmente França e Itália. Para o artista: “temos aqui mais facilidade de transitar de um campo para outro, já que os músicos costumam ter uma carga de informações que os europeus não têm.” (NAVES, 2010, p. 24). 

 

As reflexões político-sociais, as inovações estéticas realizadas por Caetano e Chico foram também feitas por Milton e parceiros, mas talvez de uma forma mais sugestiva, mais indireta, e ao mesmo tempo trazendo questões relativas ao quilombo, à mulher negra, ao congado, ao indígena, ao barroco mineiro, à América Latina. Portanto, os três se inserem na categoria de compositores da “canção crítica”. Os autores tornam-se intelectuais da cultura, intérpretes do Brasil. A literatura brasileira, no caso a produção drummondiana funciona como acha na fogueira do processo composicional. Não apenas em relação ao critério temático, conceitual, mas também devido às inovações formais que o poeta gauche instaura na linhagem poética do país. 

 

Pensando na relação entre letra e música, Luiz Tatit assegura: “No mundo dos cancionistas não importa tanto o que é dito mas a maneira de dizer, e a maneira de dizer é essencialmente melódica.” (TATIT, 1996, p. 9). Comentando a passagem, a professora e ensaísta Solange Ribeiro de Oliveira destaca: 

 

Compor uma canção significa, pois, eliminar a fronteira entre fala e canto. Combina-se, assim, a continuidade linear da melodia, cujo fluxo se adapta naturalmente às vogais da linguagem verbal, com fricção e descontinuidade oferecidas pelas consoantes, que segmentam o discurso verbal em fonemas, palavras, locuções, etc. O compositor tem de amalgamar, num todo único, articulação linguística e continuidade melódica. (OLIVEIRA, 2006, p. 326)

 

Os textos selecionados por nós apresentam modos singulares de leitura ou, poderíamos dizer, de escuta dos poemas drummondianos. Os autores penetram secretamente no reino dos poemas buscando extrair dali sua sonoridade, sua pulsação, seu movimento melódico. Articulam, assim, sua percepção dos versos com encadeamentos musicais mais lentos ou mais acelerados, de acordo com o modo como foram tocados pelo texto, pelo contexto, de acordo com o novo projeto composicional, com as “traduções” que se propõem a realizar. Assim, notamos a sobrevivência de imagens poéticas drummondianas no campo cancional, dado que favorece leituras em formas de colagens, suplementos, maneiras potentes de iniciação ao universo artístico-literário, de ampliação do horizonte cultural.

 

Chico Buarque: Já conheço as pedras do caminho

 

Affonso Romano de Sant’Anna estabelece um paralelo entre Chico Buarque e Carlos Drummond. Segundo o crítico, a obra dos dois são fundamentais para se compreender o Brasil e o brasileiro. Ambos seriam basicamente românticos: ainda que no segundo o romantismo surja em termos modernos, mas coincidindo sempre nos pontos principais com o do Chico. Por isto representam o que de mais característico e espontâneo há na sensibilidade do homem brasileiro. (SANT’ANNA, 2013, p. 177)

 

Affonso Romano lembra que Augusto de Campos traça um paralelo entre Caetano Veloso, Gilberto Gil e Oswald de Andrade e assegura que, em sua perspectiva, Chico estaria “inequivocamente” relacionado à poética de Drummond. Para justificar o pensamento, traz ao leitor versos do poema “Consolo na praia”: “Vamos não chore/ a infância está perdida/ a mocidade está perdida/ mas a vida não se perdeu./ O primeiro amor passou/ o segundo amor passou / o terceiro amor passou / Mas o coração continua.” (ANDRADE, 2002, p. 181) O tópico “desengano/ esperança”, constante na lírica drummondiana ao lado do tom ironia ácida reaparece em diversas modulações na obra buarqueana. Um dos exemplos tomados por Affonso Romano 

Cantos da pedra e do mundo: Carlos Drummond, parceiro de Chico, Caetano e MiltonLetras, Santa Maria, v. 31, n. 63,p. 26-37, jul./dez. 202126é: “Não chore ainda não/ que eu tenho um violão/ E nós vamos cantar…”:

(…) se para Drummond a infância está perdida, mas “a vida não se perdeu”, para Chico Buarque é no carnaval que há esperança de que “gente grande saiba ser criança”. A vida, então, para ambos não se perdeu. (SANT’ANNA, 2013, p. 178)

 

O crítico observa que a temática do desencanto/esperança reaparece, em Chico, por exemplo em “Pedro Pedreiro” e “Carolina”. Cumpre assinalar que em “Visão Patchwork” (Viola de bolso III), Drummond escreve: “A Carolina de Chico Buarque na janela/ (…) o concerto de música experimental serial concreta de vanguarda” (ANDRADE, 2002, p. 1457-1458). Podemos acrescentar, entre outras na mesma perspectiva, a composição “Apesar de você”. Torna-se importante ressaltar, no entanto, que a ideia da desilusão, do enfrentamento duro da realidade muitas vezes sem saída, sem esperança como vemos em “José”, começa a aparecer cada vez mais em composições mais recentes de Chico Buarque. 

 

Em 14 de outubro de 1966, após o lançamento de “A banda”, de Chico Buarque, Carlos Drummond escreve, no Correio da manhã um texto “Notas sobre “A banda””, em que podemos ler:

Se uma banda sozinha faz a cidade toda se enfeitar e provoca até o aparecimento da lua cheia no céu confuso e soturno, crivado de signos ameaçadores, é porque há uma beleza generosa e solidária na banda (…). E se o que era doce acabou, depois que a banda passou, que venha outra banda, Chico, e que nunca uma banda como essa deixe de musicalizar a alma da gente. (DRUMMOND, 1966)

 

Como sabemos, o poema “Quadrilha”, de Alguma poesia, é retomado por Chico Buarque em “Flor da Idade” (1973), composição presente na peça Gota d’agua (1975), de Chico Buarque e Paulo Pontes. Devemos lembrar que João Cabral de Melo Neto escreve seu segundo livro, intitulado Os três mal amados, de 1943, baseado no poema de Drummond. Por linhas tortas, Drummond acaba por favorecer, por ricochete, a declamação de Os três mal amados, “Joaquim”, pelo Cordel do Fogo encantado, pela voz de Lirinha: “A amor comeu minha certidão de idade”. 

 

Se no poema mineiro “Quadrilha”, que é uma dança, refere-se ao caráter imprevisível dos encontros, em Chico Buarque, a referência a Drummond aparece em canção que trata da iniciação amorosa-sexual de jovens. Havia filas pra ver Maria, os jovens se coçavam, se masturbavam por Maria. Ao final da canção, quando aparece o claro intertexto com “Quadrilha”, o ritmo se acelera, há relações diversas, inclusive entre homens, o que não se vê em Drummond. Chico canta: “Carlos amava Dora que amava Lia que amava Léa que amava Paulo que amava Juca que amava Dora (…)”. (HOLANDA, 1975). Ao final, Dora ama toda a quadrilha. Assim, revela-se o caráter marginal, não autorizado, dos encontros, da festa, da dança. A canção termina com a expressão: “Que amava toda quadrilha”. Aqui, quadrilha parece assumir o sentido irônico de conjunto de contraventores.

 

A canção se liga à poética do descontrole, à noção de gauche. Imagem central na obra drummondiana, presente no “Poema de 7 faces”, de Alguma poesia, e que aparece de modo contundente na canção “Até o fim”, de Chico Buarque, de 1978. Aqui, novamente, a entrada do espírito gauche faz com que o ritmo seja mais acelerado. O sujeito poético revela-se predestinado a seguir por uma estrada torta, canhota, à esquerda do mundo convencional:

Quando nasci, veio um anjo safado

Um chato de um querubim

E decretou que eu estava predestinado

A ser errado assim

Já de saída minha estrada entortou

Mas vou até o fim

(HOLANDA, 1978)

 

Segundo Alcides Vilaça, há em Drummond um fundamental impasse: “os valores do indivíduo e os do mundo são inajustáveis de saída, e a tarefa das imagens e dos conceitos poéticos estará em ao menos aclarar, no ritmo interno dos poemas ou na relação entre estes, os polos que constituem uma precisa discordância.” (VILAÇA, 2006, p. 18). Esse aspecto pode ser percebido no texto de Drummond e na retomada de suas ideias na composição de Chico Buarque.

 

Em “Retrato em branco e preto” (Tom Jobim e Chico Buarque, 1968), surgem os versos: “Já conheço as pedras do caminho/ E sei também que ali sozinho/ Eu vou ficar, tanto pior”. A canção, dotada de lirismo, apresenta-se como se o sujeito lírico almejasse meditar sobre cada passo a ser dado, sobre cada nota a ser emitida, mas ele não consegue se conter e volta a se entregar ao amor que já se sabe de antemão ser fracassado. A teia melódico-harmônica revela-se complexa, resultado da assinatura de Tom Jobim. A letra e a melodia trabalham com a ideia de reiteração, como no poema drummondiano. A frase melódica inicial é repetida em uma instância mais aguda da escala, como se a voz poética quisesse alardear sua ação insensata que, ao menos, servirá para a criação de novas coleções de sonetos, retratos em branco e preto, funcionará para promover a criação da própria canção que ouvimos, mesmo que as coleções maltratem o coração. A voz do cantor é suave, lembra uma conversa, uma leve confissão amorosa: “E você sabe a razão”. Nota-se a contenção característica da proposta bossa-novista de João Gilberto. Não há exagero, há delicadeza e melancolia expressas por meio da coleção/montagem de versos e notas. 

 

O que é que eu posso contra o encanto

Desse amor que nego tanto 

Evito tanto

E que no entanto

Volta sempre a enfeitiçar

(…)

Lá vou eu de novo como um tolo

Procurar o desconsolo

(JOBIM e HOLANDA, 1968)

O traçado intertextual pautado por Chico Buarque em relação a Drummond aparece também em “Cara a cara” (HOLANDA, 1969), por meio dos versos: “Tira a pedra do caminho/ Serve mais um vinho/ Bota vento no moinho/ Bota pra correr (…)/ “Vou correndo, vou-me embora/ Faço um bota fora (…)”. Aqui o ritmo é mais rápido. O sujeito lírico acredita ser necessário agir na pressa para que aconteça algo novo na vida e não seja tragado pelo que não se quer ver. A ideia é de partida, de fuga para um encontro marcado, mesmo que seja com a solidão.

 

Como sabemos, em diversos momentos Chico faz citações a nomes de músicos e de músicas de parceiros, como ocorre com a “Águas de março”, de Tom Jobim, retomada em “Subúrbio”: “Eu ando em roda/é pau, é pedra/é fim de linha” (HOLANDA, 2006). Torna-se importante lembrar que Tom Jobim dizia que os versos “É pau, é pedra, é o fim do caminho” eram influência direta de Drummond. Influência não apenas semântica, mas de construção. Jobim dizia ter tomado o método de montagem que enxergou no poema drummondiano. Como sabemos, o mesmo procedimento existe em diversas composições de Chico, como “Flor da Idade”, “Construção”, etc. Segundo Silviano Santiago, 

Há um tipo de montagem do poema drummondiano que se assemelha a uma montagem cinematográfica. Sem dúvida nenhuma que se agiganta, entre os personagens míticos da obra de Drummond, a figura de Carlitos, em uma série de poemas de altíssimo nível. (…) não haveria nitidamente a presença do cinema na poesia de Drummond. É uma coisa um pouco acidental (…). Muito mais o cinema como mito do que o cinema como arte.” (SANTIAGO. In: MORAES NETO, p. 211)

 

Caetano: Hoje eu sei que o mundo é grande

 

Caetano Veloso comenta, em entrevista a Geneton Moraes Neto, sua relação com a obra do autor de Boitempo:

 

Antes de tomar qualquer contato com a poesia de João Cabral de Melo Neto, Drummond era o meu poeta favorito. Cabral se tornou mais favorito meu – inclusive mais do que Drummond – porque tomei contato com a poesia de Cabral depois de já ter lido Drummond, Vinicius, Cecília Meireles e Manuel Bandeira – e gostando sempre mais de Drummond do que de todos. Mas João Cabral era completamente diferente, aquela coisa áspera, uma forma rígida que era uma resposta ultramoderna ao verso livre. Isso me liberou. Quando eu comecei a ficar famoso, eu tinha uma ideia fixa em poesia: minha língua portuguesa era Cabral. Drummond nunca deixou de ser aquela coisa toda. É como se Cabral fosse uma coisa só – e Drummond fosse tudo. (VELOSO. In: MORAES NETO, 2007, p. 199-200

No livro As impurezas do branco, de 1973, Drummond publica o poema “A palavra Minas”, onde podemos ler os seguintes versos:

Minas não é palavra montanhosa

É palavra abissal

Minas é dentro e fundo

As montanhas escondem o que é Minas.

(…)

Só mineiros sabem.

E não dizem nem a si mesmos o

irrevelável segredochamado Minas.

 (ANDRADE, 2002, p. 774)

Em “O ciúme”, de Caetano Veloso, o sujeito lírico, ao tratar, de um ponto delimitado do espaço, do ciúme entre duas cidades, Juazeiro e Petrolina, banhadas pelo Rio São Francisco, e talvez aproximar este ciúme entre os lugares de alguma espécie de ciúme que vivenciara ou sentira, apresenta sua perspectiva dessa Minas Gerais ancestral e cheia de mistérios:

Velho Chico vens de Minas

De onde o oculto do mistério se escondeu

Sei que o levas todo em ti não me ensinas

E eu sou só eu só eu só eu

(VELOSO, 1987)

 

Aqui, mesmo que o rio passe, o sujeito lírico está solitário, lembrando o signo pedra, pensando nos mistérios do mundo, percebendo a sombra do ciúme que paira sobre a sala. Assim, canta, cicia como uma cigarra por meio de aliterações em “s”: “E eu sou só eu só eu só eu”. A voz abre-se aos movimentos e fluxos das ondas.

 

No poema “América”, de A rosa do povo, há imagens que se relacionam tanto à canção “O ciúme” quanto a “Onde nasci passa um rio”, também de Caetano. Segue trecho do poema:

Sou apenas um homem.

Um homem pequenino à beira de um rio.

Vejo as águas que passam e não as compreendo.

(ANDRADE, 2002, p. 195)

Além de “América”, “Onde nasci passa um rio” recebe influência de “Mundo grande”, do livro Sentimento do mundo (1940):

Sim, meu coração é muito pequeno

Só agora vejo que nele não cabem os homens.

Os homens estão cá fora, estão na rua.

A rua é enorme. Maior, muito maior do que eu esperava.

Mas também a rua não cabe todos os homens.

A rua é menor que o mundo.

O mundo é grande.

(ANDRADE, 2002, p. 87)

Segue a canção de Caetano:

 

Onde eu nasci passa um rio 

Que passa no igual sem fim 

Igual, sem fim, minha terra 

Passava dentro de mim

Hoje eu sei que o mundo é grande

E o mar de ondas se faz 

Mas nasceu junto com o rio 

O canto que eu canto mais

(VELOSO, 1967)

 

A composição foi uma das primeiras de Caetano, gravada em duo com Gal Costa no disco Domingo, de 1967. Segundo o cantor baiano, o rio é a retomada da rua de Itabira: “Eu tinha consciência de que aquilo que eu estava falando era da poesia de Drummond”. (VELOSO, C. Depoimento sobre Drummond. In: MORAES NETO, G. DossiêDrummond, p. 199). O compositor assinala ter escrito, durante o exílio em Londres, um texto que trazia os seguintes versos: “O primeiro amor passou, o segundo amor nunca passou e o coração é descontínuo”, claro inter-texto com “Consolo na praia”, de Drummond.

 

Em “Noite de Hotel”, gravada em 1987, escrita durante estada em hotel em Lisboa, aparecem os versos: “Noite de hotel/ e a presença satânica é a de um diabo morto/ em que não reconheço o anjo torto de Carlos/ Nem o outro/ Só fúria e alegria/ Pra quem titia Jagger pedia simpatia”. Caetano diz que estava deprimido e na TV só passavam videoclipes o que o atormentava mais ainda. A canção nasceu rapidamente, “com raiva”, por ele ter de ver a mesma coisa toda noite. O cantor baiano diz não reconhecer o anjo de Carlos nem o outro que seria o de Torquato Neto, presente em “That’s play that”, parceria de Torquato Neto e Wally Salomão. Em Verdade tropical, ao tratar do amigo de Teresina, Caetano ressalta: “Torquato adorava Drummond e suas poesias eram francamente drummondianas.” (VELOSO, 2017, p. 157).

 

Ainda tratando de intertexto, não devemos nos esquecer de “Madre deus”, canção de Caetano presente no álbum Onqoto, de 2005, trilha sonora assinada pelo baiano e pelo paulista José Miguel Wisnik para espetáculo homônimo do Grupo Corpo. Na letra, aparecem os versos abaixo que retomam o poema “Memória”, do livro Claro Enigma, de Drummond:

Mas sei-me indo

E as coisas findas

Muito mais que lindas

Essas ficarão

Dizia

A poesia

E agora nada

Não mais nada não

(VELOSO, 2005)

A canção de Caetano intitulada “Anjos tronchos”, do álbum Meu coco, de 2021, traz intertextos com diversos poetas e cancionistas e há mesmo autocitação. A letra, retomando o anjo torto de “Poema de sete faces”, apresenta aguda percepção da contemporaneidade. Indica o enclausuramento da subjetividade na época da sociedade do controle em sua mais fina essência. O tom é pessimista em relação aos algoritmos que visam a direcionar gostos e escolhas nas redes sociais contemporâneas. O sujeito poético vislumbra pontos positivos, como a criação de Billie Eilish realizada já dentro do universo das tecnologias digitais contemporâneas, mas o aspecto geral da letra é sombrio. Com sua verve, o sujeito lírico almeja confundir os enquadramentos presentes na lógica dos algoritmos desvelando, inclusive, projetos musicais que equacionam lógica, imaginação e liberdade, como ocorre com a produção dos músicos e poetas concretos e com a criação de canções. Segue trecho da letra elaborada como lenta montagem em que o anjo confeccionado pelo escritor mineiro posta-se ao lado do artista baiano, conversando com ele, auxiliando-o na visão do vasto mundo das redes sociais:

 

Uns anjos tronchos do Vale do Silício

Desses que vivem no escuro em plena luz

Disseram: vai ser virtuoso no vício

Das telas dos azuis mais que azuis.

(…)

E nós, quando não somos otários, 

Ouvimos Shoenberg, Webern, Cage, canções”

(VELOSO, 2021)

 

Caetano também é marcado pelo signo da pedra drummondiana. O artista relata ter tentado criar, quando estava na Itália, uma canção “ultra repetitiva”: “com uma versão para o Inglês do poema “No meio do caminho” (VELOSO. Depoimento. In: MORAES NETO, p. 196), mas a criação não se realizou.

 

Milton Nascimento: Meu caminho é de pedra

 

Vamos tratar, agora, de algumas composições feitas em parceria entre Milton Nascimento e Fernando Brant. “Travessia”, de Milton e Brant, de 1967, primeira canção de sucesso de Milton, já traz embutidos signos que se mostram herdeiros da literatura drummondiana: 

“Solto a voz nas estradas, já não quero parar/ Meu caminho é de pedra, como posso sonhar.” (NASCIMENTO;BRANT, 1967) Deve-se lembrar que a palavra pedra, colocada como dificuldade presente na travessia, aparece como a nota mais aguda e mais difícil de ser cantada na composição. 

 

“Itamarandiba”, de Milton e Brant traz os seguintes versos em diálogo com Drummond:

No meio do meu caminho

Sempre haverá uma pedra

Plantarei a minha casa

Numa cidade de pedra

Itamarandiba pedra corrida

Pedra miúda rolando sem vida

Como é miúda e quase sem brilho

A vida do povo que mora no Vale

(MILTON e BRANT, 1980)

Milton e Brant herdam de Drummond o espírito mineiro ligado tanto à fruição do lugar quanto ao sentimento de opressão das montanhas e o desejo de partir, de conquistar novos mundos, como podemos perceber nos versos de “Para Lennon e Mc Cartney”: “Sou do mundo, sou Minas Gerais”. Novamente aqui percebemos a tensão entre o “dentro” e “fora”, como temos notado em Drummond. 

 

Em A vida não é útil, Ailton Krenak observa: “Quando tudo está entrando em parafuso, você tem que ter alguém pra chamar – eu chamo Drummond(…). (KRENAK, 2020, p.24). Para o pensador indígena: “Em algum ponto os poemas do Drummond e as canções do Milton se encontram.” (KRENAK, 2020, p.26)

 

Em “América”, de A rosa do povo, podemos ler:

 

Uma rua começa em Itabira, que vai dar no meu coração.

Nessa rua passam meus pais, meus tios, a preta que me criou.

Passa também uma escola – o mapa -, o mundo de todas as cores.

(ANDRADE, 2002, p. 196)

 

Em “Canção amiga”, poema de Drummond musicado por Milton, há reverberações do poema “América”, de A rosa do povo. Percebe-se, no texto, a tensão entre o ambiente provinciano e a paisagem exterior. A criação sonora lembra a figura materna, mas que também se abre a mundos desconhecidos. Os desconhecidos, segundo Silviano Santiago (2006), relacionam-se a leituras de obras universais feitas pelo poeta em sua infância na província. Ao viajar a outros países, irá reconhecer autores de quem já havia se tornado amigo por meio de leituras. De acordo com Silviano Santiago,

Articula-se, na poesia de Drummond, um gosto pela transgressão do clã e da comunidade, juntamente com um apego grande a esses valores. Há um lado revolucionário e, ao mesmo tempo, um lado extremamente conservador, o que seriam as duas linhas mestras da poesia de Drummond. (SANTIAGO. In: MORAES NETO, 2007, p. 209)

 

São esses dois momentos da poesia de Drummond tratados por Silviano que estamos chamando de poética do mundo e da pedra. Noções ligadas à temática do cosmopolitismo e do localismo encontram-se nas palavras. 

 

Silviano declara que a leitura das aventuras de Robinson Cruzoé pelo menino Drummond altera profundamente a percepção da criança de seu espaço familiar, patriarcal, provinciano. Nesse sentido, torna-se importante estabelecer um cruzamento entre a vivência da criança interiorana e a experiência que esta adquire pela leitura do livro clássico:

A nova e original mescla inaugura o lugar do menino na família e o peso e significado de Itabira na poesia de Drummond. Por um lado, a mescla delimita um domínio particular, que será próprio da criança na sua relação com a casa patriarcal e com os vários membros da família nuclear – a ilha da leitura. Por outro lado, escancara uma área geográfica ambígua e utópica – a província e o mundo, que oscila entre o privado e o público, e que servirá de lastro para definir a força e o valor de Itabira, vale dizer de Minas Gerais e do Brasil no contexto das nações. (SANTIAGO, 2006, p. 32)

No poema “América”, podemos ler: “Uma rua começa em Itabira, que vai dar em qualquer ponto da terra.” (ANDRADE, 2002, p. 196) A ideia é retomada em “Canção amiga”: 

Eu preparo uma canção 

Em que minha mãe se reconheça

Todas as mães se reconheçam

E que fale como dois olhos

Caminho por uma rua

Que passa em muitos países

Se não me veem, eu vejo

E saúdo velhos amigos

(MILTON e ANDRADE, 1978)

 

Na gravação, inicialmente aparece a solitária voz do bardo, logo em seguida surge o violão lentamente ritmado. À medida que Orfeu segue seu percurso, os amigos vão chegando com o violoncelo, a flauta. A criança oferece o que tem: sua voz. Os sons conjugam-se ressaltando a suavidade lírica do poema. O texto cantado funciona como uma carta-canção a dar boas notícias do mundo distante. A literatura pode contribuir para ampliar nossa percepção, falar sinestesicamente “como dois olhos”, mas também pode funcionar como caixa de ampliação sonora. Assim, ao colher o poema e desvelar sua música interna, Milton nos revela ancestrais diálogos existentes entre as duas artes. Com sua voz, o compositor e intérprete transforma todos nós, seus ouvintes, em mães realizadas com as viagens, as invenções dos filhos. De modo órfico, a criação busca “acordar os homens e adormecer as crianças”. Assim, aliado a Drummond, Milton desperta em nós o cuidado com o outro, a ideia de calma, pausa, a percepção da importância de que os homens abram os olhos e escutem as paisagens sonoras enquanto as crianças possam dormir e sonhar novas formas de vida. Milton e Drummond demonstram a importância da ideia de literatura expandida, dos modos de ler um poema como se estivéssemos escutando uma música. Assim, ocorre um deslocamento da grafia para a oralidade e para o olhar afetuoso presentes na gestualidade performática. O poeta e o cantor assinalam o valor dos modos de ler, ouvir e ver um poema, uma canção com a atenção em suas nuanças, suas teias verbais, imagéticas e sonoras. São modos que a arte possui de nos ensinar a fugir dos controles dos algoritmos, como pensa Caetano, de nos ajudar a ir “até o fim”, como sugere Chico. São formas de se tentar abrir os olhos de uns enquanto se acalenta outros. Ou mesmo de nos tornarmos ao mesmo tempo serenos e atentos.

 

Canto da cidade prevista

 

Entre os textos selecionados por nós, há uma recorrência da ideia de partida. Essa questão pode ser observada, por exemplo, em “Até o fim”, em “Retrato em branco e preto”, “Onde nasci passa um rio”, “O ciúme”, “Travessia”, em “Canção amiga”, etc. Imagens do deslocamento e da solidão eclodem de diversos textos realizados em diálogo com a produção drummondiana. Às vezes o sujeito lírico caminha, às vezes o mundo à sua volta é que gira – ou um rio desliza – e o eu lírico permanece estacionado, sem saber como agir, tendo dificuldade para lidar com a efemeridade das coisas ou mesmo com as pedras que surgem pela estrada.

 

A noção de reconstrução do mundo, de fundo utópico, humanista e presente principalmente nos livros drummondianos nos anos de Guerra ou Pós-Guerra parece funcionar como uma senha, um conceito sensível a despertar nos jovens compositores um desejo de alteração das condições de vida do país. Mesmo com todas as durezas, com todas as pedras presentes no caminho, é preciso seguir adiante, abrir-se ao devir. Os textos selecionados por nós trazem cenas da dureza e da maleabilidade, da frieza da parada e do aquecimento da busca. As pedras fazem parte do caminho, mas o caminho vai se compondo à medida em que se faz a caminhada em direção ao mundo aberto e inapreensível. Parece-nos que a ideia de comunidade, de vida coletiva urbana perpassam os textos. Nesse sentido, vale lembrar do poema “Cidade prevista”, de A rosa do povo, texto em que o sujeito lírico apresenta a noção do canto como gesto potente, inovador, que propicia a disseminação do desejo de que outra realidade possa existir, mesmo que “dentro em mil anos”. Assim, em vez de a aldeia tornar-se universal, o sentimento e a compreensão do mundo favorecem uma maior avaliação tanto dos caminhos de pedra, interioranos, como dos cenários mais amplos do país:

Cantai esse verso puro,

que se ouvirá no Amazonas,

na choça do sertanejo

e no subúrbio carioca,

no mato, na vila X,

no colégio, na oficina,

território de homens livres

que será nosso país

e será país de todos.

(…)Este país não é meu

nem vosso ainda, poetas,

Mas ele será um dia

o país de todo homem.

(ANDRADE, 2002, p. 200) 

Referências:

ANDRADE, C. D. de. Entrevista a Augusto Mais e Lúcia Nagib. São Paulo: Folha de S. Paulo (Folhetim), 03/06/1985.

 

ANDRADE, C. D. de. Entrevista a João Máximo e Beatriz Bonfin. Drummond, 80 anos. Rio de Janeiro: Suplemento literário do Jornal do Brasil. Jornal do Brasil, terça-feira, 26 de outubro de 1982.

 

ANDRADE, C. D. de. Notas sobre a banda. Rio de Janeiro: Correio da Manhã, 14 de outubro de 1966. 

 

ANDRADE, C. D. de. Poesia completa. In: TELES, G. M.(Fixação de textos e notas); SANTIAGO, S. (Introdução). Rio de Janeiro: Editora Nova Aguilar, 2002.

 

ANDRADE, C. D. de. Uma pedra no meio do caminho: biografia de um poema. Seleção e montagem de Carlos Drummond de Andrade. Rio de Janeiro: Editora do Autor, 1967.

 

ANDRADE, M. de. O  banquete: prefácio de Jorge Coli e Luiz Carlos da Silva Dantas. 2ª ed. São Paulo: Duas cidades, 1989.

 

CANDIDO, A. Formação da literatura brasileira (momentos decisivos). 2ªed, Revista. São Paulo: Livraria Martins, 1964.

 

GLEDSON, J. Poesia e poética de Carlos Drummond de Andrade. São Paulo: Duas Cidades, 1981.

 

HOLANDA, C. B.. Até o fim.  Chico  Buarque  – 1978. Coleção Chico Buarque. São Paulo: Abril Cultural, 2010. LP.

 

HOLANDA, C. B. de. Cara a cara. Chico Buarque de Holanda, vol. 4. São Paulo: RGE Discos, 1970. LP.

 

HOLANDA, C. B. de. Flor  da  Idade.  Chico  Buarque  &  Maria  Bethânia  ao  vivo. Rio de Janeiro: Philips, 1975. LP.

 

HOLANDA, C. B de. Subúrbio. Carioca. Rio de Janeiro: Biscoito Fino, 2006. CD. JOBIM, T.;

 

HOLANDA, C. B. de. Retrato em branco e preto. Chico Buarque de Holanda, vol. 3. São Paulo: RGE Discos, 1968. LP.

 

KRENAK, A. A vida não é útil. Pesquisa e organização: Rita Carelli. São Paulo: Companhia das Letras, 2020.

 

MORAES NETO, G. Dossiê Drummond. 2ª. ed. São Paulo: Editora Globo, 2007.

 

NAVES, S. C. Canção popular no Brasil. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2010. 

 

NASCIMENTO, M.;ANDRADE, C. D. de. Canção amiga. Clube  da  Esquina  2. Rio de Janeiro: Odeon, 1978.

 

NASCIMENTO, M.; BRANT, F.. Travessia. Milton Nascimento. Rio de Janeiro: CODIL, 1967. LP.

 

NASCIMENTO, M.; BRANT, F.. Itamarandiba. Sentinela. Rio de Janeiro: Ariola, 1980. 

 

OLIVEIRA, S. R. de. Canção: letra x estrutura musical. Aletria: Revista de Estudos de Literatura. Intermidialidade. Belo Horizonte: Faculdade de Letras da UFMG, n. 14, jul. – dez. 2006. Disponível em: http://www.letras.ufmg.br/poslit. Acesso em: 20 fev. 2016.

 

SANT’ANNA. Música popular e moderna poesia brasileira. São Paulo: Nova Alexandria, 2013.

 

SANTIAGO, S. Depoimento. In: MORAES NETO, G. Dossiê Drummond. 2ª. ed. São Paulo: Editora Globo, 2007.

 

SANTIAGO, S. Ora (Direis) puxar conversa! Belo Horizonte: Editora UFMG, 2006.VELOSO, C. Depoimento sobre Drummond. In: MORAES NETO, G. Dossiê Drummond

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VELOSO, C. Caetano. Rio de Janeiro: Philips, 1987. LP.VELOSO, C. Domingo (com Gal Costa). Rio de Janeiro: Philips, 1987. LP.

 

VELOSO, C. Madre deus. In: VELOSO, C.; WISNIK, J. M. Onqotô. Produção Independente, 2005. CD.

 

VELOSO, C. Anjos tronchos. Meu coco. Rio de Janeiro: Sony Music, 2021. CD.

 

VELOSO, C. Verdade tropical. 3ª. ed. São Paulo: Companhia das Letras, 2017.

 

VILAÇA, A. Passos de Drummond. São Paulo: Cosac Naify, 2006.

 

WISNIK, J. M. Maquinação  do  mundo: Drummond e a mineração. São Paulo: Companhia das Letras, 2018.

 

Fotografia de Roniere Silva Menezes

 

Roniere Silva Menezes possui graduação em Letras pela Universidade Federal de Minas Gerais (1991), mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade Federal de Minas Gerais (2000), e doutorado em Literatura Comparada pela Universidade Federal de Minas Gerais (2008). Em 2011, lançou o livro O traço, a letra e a bossa: literatura e diplomacia em Cabral, Rosa e Vinicius, pela Ed. UFMG. É professor da pós-graduação em Estudos de Linguagens do CEFET-MG e líder do Núcleo de Estudos ATLAS (Análises Transdisciplinares em Literatura, Arte e Sociedade). É pesquisador do Acervo de Escritores Mineiros da UFMG. Tem experiência na área de literatura e cultura, atuando principalmente nos seguintes temas: poéticas do espaço e do comum, memória cultural, música popular e processos criativos.



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