Poesia & Conto

Poemas | Rui Tinoco

ficas melhor assim vestida de não,

ficas mais quieta na minha memória.

a solidão é deste modo: a coragem

de escrever sozinho o final da nossa história.

adiciono pontos finais ao final da nossa história:

estás quieta na minha memória, os ges…tos

sem cor, um enorme não cerceando a tua boca.

estás também nua. aproximo-me de ti com o que de mais

humano consigo invocar: ensina-me o final

da nossa história! ficas mais quieta vestida de não,

completamente nua na minha memória.

onde se desenha a tua sombra recolho

estes versos: quando traí a nossa história?

Revista DiVersos – Poesia e Tradução, nº13

** 

peço que as desculpas
me perdoem. mastigo o meu
pão. mastigo o meu pão
para somar gestos. sabes bem
que os gestos me servem
de escudo, que a pose
se tornou uma amiga
fiel. não é com ela
que queres falar? compreendo.
sabes bem que desde que partiste
recomecei a contar tudo
desde o zero, colecionei
monólogos como o mais
excêntrico magnata. sabes bem
que tenho ficado até de madrugada
preso ao não sei quê das
palavras… beijaste-me
e é claro que podes entrar,
mas fica sabendo: os meus defeitos
estão a ver televisão no sofá do escritório.
sentamo-nos a seu lado?

” O Segundo Aceno “, Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011

 

**

«é uma mentira mas é
a minha mentira». as mulheres
vivem uma sabedoria diferente,
próxima da bruxaria: pegaste
na caneta e afundaste-a no
cabelo. «fico melhor com
ele preso atrás.» a mim,
pareceu-me apenas uma forma bizarra
de dizer que não querias falar.

” O Segundo Aceno “, Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011

**

diseuse? é para ti que falo.
imagino-te como uma voz
feminina, macia e doce,
impregnada do mistério das
mães. à medida que lês,
estas palavras adquirem
existência e depois voltam-se
a calar. fico envergonhado:
sei que não consigo estar
à tua altura. há também
a tua boca, diseuse: pinto-a
como uma ave a pôr asas
em tudo o que toca.
é neste momento que deves dar
a entender que caí nestas folhas
à procura de não sei quê
e que depois me debato,
neste lado, para estar ao pé
de ti, como um dos melhores
amigos da alegria. quando
estiveres a ler o texto seguinte
ficarei sentado, numa das mesas
defronte, a ouvir-te,
entretendo nas mãos uma
pequena chávena de café.
é preciso dar lugar à vida.

” O Segundo Aceno “, Edições Sempre-Em-Pé, Águas Santas, 2011 

**

dispunhas as sobrancelhas
dispunhas as sobrancelhas
no rosto como letras
desconhecidas de um alfabeto
exótico. gostaria de aprender
esse idioma. em vez disso
ergo a chávena de café
olhando de soslaio os teus
movimentos.

“A Mão Heteronómica”, Volta d’Mar Edições, 2017

**

«estás sentado sobre o
assunto de sempre: a ira: a
mágoa: sempre no mesmo dia
seguinte à inscrição da ferida:
as mãos em sangue: a injustiça:
a incompreensão: deixaste-me
só com o último verso interrompido:
leio-o uma e outra vez:

                                           (a António Gamoneda)

“poema aberto ao silêncio”, Eufeme, 2020

 

Fotografia de Rui Tinoco

 

Rui Tinoco (1971), poeta, psicólogo bracarense, nato em Vila Real, a viver no Porto, dispersou vários poemas e outros textos literários em diversas revistas materiais e electrónicas. Em 2011 publicou o seu primeiro livro de poesia intitulado O Segundo Aceno. Seguiram-se Era Uma Vez o Branco (2013); Causas da Decadência de um Povo no seu Lar, obra a quatro mãos (2015); A Mão Heteronómica (2017); a teoria do verso em rosebud (2017) e poema aberto ao silêncio (2020). Mantém os blogues Ladrão de Torradas e Psicologia, Saúde & Comunidade. 




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