

VIBRAÇÕES
O prazer que te dão as chuvas
Porque derrubam sem chance de luta
As árvores centenárias, os muros,
Um templo com sua esfarrapada figura,
Um pouco é sonho, um pouco insulto
Da tua resistência ao rés do absurdo,
Viver quarenta noites no dilúvio
Atado a uma cama, o corpo no escuro,
Ao abrigo de uma mente lúcida.
O que ainda vibra nesse homem
Se ele nada mais quer, nada pode,
– Demasiada realidade exposta –
Como aceitar que no sono suporte
O lodo se intrometendo pelas bordas,
Perguntam por dentro os que estão à tua volta
E não veem a enguia se movendo,
Se esquivando, ludibriando o tempo,
Quinze côvados abaixo das tuas pálpebras.
Do livro “Treva alvorada” (Iluminuras, 2010)
NOSSO REINO
Lembram eras antiquíssimas os nossos dias
Gravados na pedra num rasgo de navalha.
Aqui, o pouco que nos acontece
É alegria – uma riqueza de matizes
Que vamos descobrindo na cor da rocha.
Cabe num desconsolo do espaço o nosso reino,
Mas afinal um reino inteiramente nosso –
Uma abóbada de sombra e alguns ossos
E amanhã os nossos nomes lado a lado
Na parede de uma cela, como dois apaixonados.
Livro “O amor e depois” (Iluminuras, 2012)
ISMAEL
Para Paulo José Miranda
Todas essas terras disputadas,
Uma vida de alcateia e de cobiça –
Mas nem todos nós temos essa fome.
Alguém tem apenas o deserto
De uma história que nunca foi escrita,
A saga sem metáfora de glória
De ciganos tão antigos quanto estrelas –
Ao menos um de nós é o outro filho,
O andarilho irmão que foi banido,
E outra vida vem do fundo de um poço,
Uma flecha cruza um mundo sem divisas.
Do livro “Tempo de voltar” (Ardotempo, 2016)
VERÃO COM VENTO E GARCÍA LORCA
O verão deste ano trouxe um bater de asas
À varanda. Vindo de onde? Vindo de antes.
Dos cata-ventos nas campas de pequenos anjos.
Do vazio de matas pasmas de haverem se tornado campo.
Há janelas que relutam em se apagar na noite
E não será impossível que uma hora
Nossas mais inconfessas angústias se encontrem.
Milhões de animais estão queimando.
Milhões de pequenos olhos alucinados
Estão cegando num fogo não muito longe.
Um poeta que cantava com palavras que gemiam,
Numa dessas janelas que há séculos amanhecem acesas,
Pôs voz no que sentimos sem dizer:
Há ossadas que ressoam. Assombros
Que não se resolvem, nuvens carregadas de meninos,
Calafrios que desovam no seio do verão um pranto azul.
Há uma revoada insana esta noite na varanda.
Livro “Terra natal” (Cousa, 2021)
FUNDO DE SILÊNCIO
Todos vocês que se perderam
Arco de palmeira, monstera
Toda aquela sombra de folhagem
Sem flor, a não ser rente ao chão
Da entrada de casa a graciosa e ordinária
Maria-sem-vergonha, cujos bojos de fruto
Milionários de sementes as crianças
Esbanjando faziam espocar entre as mãos
Todos vocês de pensamento úmido
Da noite, juncos, rododendros, hera
Possuindo os muros, denso fundo
De silêncio multiforme que saúdo
Em torno desta mão, nesta palavra
De conjugação escura com o que vai crescendo
Sob a espera, abrindo bocas de treva
Ainda mudas entre folhas de antúrio,
Todos vocês que já não se perdem.
(2022) – Inédito
INÓSPITO
Música maestro
Las hojas que cayeron se llevaron el río
Y el porvenir temblante voló hacia sus estrellas
Sed de la sed
Promesa de esplendor en su horizonte receloso
Canto sin cantor y flor sin tallo
Vicente Huidobro
Ali se desenrolam
Os destinos de nossas rotas sofreadas
Amores suspensos precipitam-se
E nomes que neste mundo pouco nos dizem
Ali são dos que nos mudam o sangue e a sombra
Outros livros, outros de nós
Inimagináveis bailes de lemniscatas
Borrascas sem drama, explosões sem drama
Outros dons, outros sinais
Campos de auroras em visos de atração
Ali são outras vidas estranhamente nossas
Nenhuma raiz, nenhum cotidiano
Halos arruivados em íris que não descansam
Nem se cansam
Transes de plenilúnios e meios-dias
Nada a prantear
Nada a prantear
Caminhos em corola irradiados
Nenhuma de nossas faces definitiva
O exorbitante tão próximo
O exorbitante tão próximo
Que mentem por bem os nossos olhos
Ao divisarem apenas um planeta inóspito.
(2022) – Inédito


Fotografia de Mariana Ianelli
Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, Brasil, onde vive. É autora de catorze livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal Rascunho.