Poesia & Conto

Seis poemas | Mariana Ianelli

VIBRAÇÕES

 

O prazer que te dão as chuvas

Porque derrubam sem chance de luta

As árvores centenárias, os muros, 

Um templo com sua esfarrapada figura,

Um pouco é sonho, um pouco insulto

Da tua resistência ao rés do absurdo,

Viver quarenta noites no dilúvio

Atado a uma cama, o corpo no escuro,

Ao abrigo de uma mente lúcida.

 

O que ainda vibra nesse homem

Se ele nada mais quer, nada pode,

– Demasiada realidade exposta –

Como aceitar que no sono suporte

O lodo se intrometendo pelas bordas,

Perguntam por dentro os que estão à tua volta

E não veem a enguia se movendo,

Se esquivando, ludibriando o tempo, 

Quinze côvados abaixo das tuas pálpebras.

 

Do livro “Treva alvorada” (Iluminuras, 2010)

 

NOSSO REINO

 

Lembram eras antiquíssimas os nossos dias 

Gravados na pedra num rasgo de navalha.

Aqui, o pouco que nos acontece 

É alegria – uma riqueza de matizes 

Que vamos descobrindo na cor da rocha.

 

Cabe num desconsolo do espaço o nosso reino,

Mas afinal um reino inteiramente nosso – 

Uma abóbada de sombra e alguns ossos

E amanhã os nossos nomes lado a lado 

Na parede de uma cela, como dois apaixonados. 

 

Livro “O amor e depois” (Iluminuras, 2012)

 

ISMAEL

Para Paulo José Miranda

 

Todas essas terras disputadas,

Uma vida de alcateia e de cobiça – 

Mas nem todos nós temos essa fome.

Alguém tem apenas o deserto

De uma história que nunca foi escrita,

A saga sem metáfora de glória

De ciganos tão antigos quanto estrelas – 

Ao menos um de nós é o outro filho,

O andarilho irmão que foi banido,

E outra vida vem do fundo de um poço,

Uma flecha cruza um mundo sem divisas.

 

Do livro “Tempo de voltar” (Ardotempo, 2016)

 

VERÃO COM VENTO E GARCÍA LORCA

 

O verão deste ano trouxe um bater de asas 

À varanda. Vindo de onde? Vindo de antes.

Dos cata-ventos nas campas de pequenos anjos.

Do vazio de matas pasmas de haverem se tornado campo.

Há janelas que relutam em se apagar na noite

E não será impossível que uma hora

Nossas mais inconfessas angústias se encontrem.

Milhões de animais estão queimando.

Milhões de pequenos olhos alucinados

Estão cegando num fogo não muito longe.

Um poeta que cantava com palavras que gemiam,

Numa dessas janelas que há séculos amanhecem acesas, 

Pôs voz no que sentimos sem dizer: 

Há ossadas que ressoam. Assombros

Que não se resolvem, nuvens carregadas de meninos,

Calafrios que desovam no seio do verão um pranto azul.

Há uma revoada insana esta noite na varanda.

 

Livro “Terra natal” (Cousa, 2021)

FUNDO DE SILÊNCIO 

 

Todos vocês que se perderam

Arco de palmeira, monstera

Toda aquela sombra de folhagem

Sem flor, a não ser rente ao chão 

Da entrada de casa a graciosa e ordinária 

Maria-sem-vergonha, cujos bojos de fruto 

Milionários de sementes as crianças

Esbanjando faziam espocar entre as mãos 

Todos vocês de pensamento úmido 

Da noite, juncos, rododendros, hera 

Possuindo os muros, denso fundo 

De silêncio multiforme que saúdo 

Em torno desta mão, nesta palavra 

De conjugação escura com o que vai crescendo 

Sob a espera, abrindo bocas de treva

Ainda mudas entre folhas de antúrio,

Todos vocês que já não se perdem.

 

(2022) – Inédito

 

INÓSPITO 

 

Música maestro

Las hojas que cayeron se llevaron el río

Y el porvenir temblante voló hacia sus estrellas

Sed de la sed

Promesa de esplendor en su horizonte receloso

Canto sin cantor y flor sin tallo

Vicente Huidobro

 

Ali se desenrolam 

Os destinos de nossas rotas sofreadas

Amores suspensos precipitam-se 

E nomes que neste mundo pouco nos dizem

Ali são dos que nos mudam o sangue e a sombra

Outros livros, outros de nós

Inimagináveis bailes de lemniscatas 

Borrascas sem drama, explosões sem drama

Outros dons, outros sinais

Campos de auroras em visos de atração

Ali são outras vidas estranhamente nossas

Nenhuma raiz, nenhum cotidiano

Halos arruivados em íris que não descansam

Nem se cansam 

Transes de plenilúnios e meios-dias

Nada a prantear

Nada a prantear

Caminhos em corola irradiados

Nenhuma de nossas faces definitiva

O exorbitante tão próximo

O exorbitante tão próximo

Que mentem por bem os nossos olhos

Ao divisarem apenas um planeta inóspito. 

 

(2022) – Inédito 

 

Fotografia de Mariana Ianelli

 

Mariana Ianelli nasceu em São Paulo, Brasil, onde vive. É autora de catorze livros de poemas, entre eles a antologia Manuscrito do fogo (2019), que marca vinte anos de poesia e América – um poema de amor (2021 – semifinalista do Prêmio Oceanos 2022). Recebeu o Prêmio Fundação Bunge de Literatura (Juventude) em 2008, menção honrosa no prêmio Casa de las Américas (Cuba) em 2011 (livro Treva alvorada) e menção honrosa no prêmio Alceu Amoroso Lima – Poesia e Liberdade 2021. Foi quatro vezes finalista do Jabuti em poesia (livros Fazer silêncio, Almádena, O amor e depois e Tempo de voltar). De 2018 a 2022, editou a página Poesia Brasileira no jornal Rascunho.



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