Cultura

Relações públicas │ Lindevania Martins

RELAÇÕES PÚBLICAS

 

Quando Carina entrou na Sala da Diretoria, a executiva a esperava com um sorriso largo e a mão estendida:

 

— Parabéns! Você conseguiu um das vagas mais disputadas da empresa. Superou vários candidatos e candidatas.

 

Com a respiração rápida e ofegante de tão emocionada, Carina apertou a mão que executiva lhe estendia e sentou na cadeira moderna, de estofado branco que a outra lhe indicara. Na frente dela, uma placa em metal com inscrição em preto:  Miriam Goldfarb.

 

— Obrigada. Estou pronta para começar.

 

De origem humilde, o peito de Carina subia e descia, ansiosa por aquele futuro grandioso que ela e sua família tanto sonharam. Lembrava dos empregos anteriores: quando muito jovem fora recepcionista, depois professora de inglês, em seguida trabalhara como repórter em emissora local, por fim, o emprego que abandonara para ingressar na Goldfarb  e Cia, de assessora de comunicação em uma pequena empresa. Prática, a executiva organizava uma pasta com papéis:

 

—  Aqui está seu contrato, Carina.

 

— Sempre quis esse contrato de trabalho. 

 

— Não é um contrato de trabalho. Você não será nossa empregada. É um contrato de parceria. Por isso nunca poderá mover contra nós ações trabalhistas. Você nos presta um serviço, nos representando. Nós lhe prestamos outro, a remunerando.

 

—  Ótimo. Sempre quis esse contrato de parceria.

 

A  executiva colocava novos papéis dentro da pasta:

 

— Está tudo escrito. Seus direitos e deveres. Você tem direito a alguns equipamentos pessoais que ficarão à disposição para seu uso particular: um celular, um notebook e um carro. Seus deveres serão divertidos. Frequentar festas, dar entrevistas na televisão, ir a eventos, fotografar. Tudo isso fará parte das suas funções. Você será uma mulher pública. Se tornará famosa. As pessoas vão querer saber tudo sobre você: o que faz, o que come, com quem vai para a cama, o que pensa. Talvez alguém tatue o seu rosto na própria perna, ou no próprio peito, bem acima do coração.

 

A imagem mental que a executiva criara em sua mente a incomodou e Carina ergueu as sobrancelhas:

 

— Isso é um tanto bizarro. É sério mesmo?

 

Miriam Goldfarb riu:

 

— Até parece que você não conhece esse mundo. Quanto mais sucesso você tiver em sua função, mais requisitada você será. Mais olhos se voltarão para você. E ficarão chateados se você não atendê-los. Se não sorrir o suficiente. Se sorrir demais. Por isso, é importante não ter dúvidas e se comprometer.

 

-—  Sou muito comprometida. Farei tudo certo.

 

— Esperamos que sim. Como seus parceiros de negócios, esperamos que não se envolva em escândalos, que seja altiva, mas educada, polida e principalmente confiável. Precisamos que as pessoas confiem em você para confiar em nós. Esperamos que você seja vigilante e competitiva. Muitos matariam você para ter esse emprego e esperamos que você seja hábil em se manter viva.

 

— Vou conhecer a empresa? Estou ansiosa.

 

Miriam Goldfarb fechou o sorriso e falou em um tom formal:

 

— Alguma coisas você vai  conhecer, outras não. E digo assim porque para nós a palavra limite é muito importante. Queremos que pense por si mesma, que consiga ser ágil em suas respostas, mas que saiba que certos limites não poderão ser ultrapassados. Importante é que você saiba que não haverá diferença entre você e a empresa. Seu rosto será o rosto da Bureaus Enterpreneuer. Vocês dirá “a minha empresa” para o público, mas nós saberemos que a empresa não é sua, senão que você que é nossa. Você irá falar muito e poderá falar tudo, desde que esqueça suas próprias palavras. E quando abrir sua boca serão as nossas palavras que dela sairão. Comunidade, partilha, ética. São vocábulos que você repetirá sempre, mesmo que eles nada signifiquem.

 

Carina quis demonstrar que entendera:

 

— Não se preocupe. Comunidade, partilha, ética. Comunidade, partilha, ética.

 

A executiva ergueu uma sobrancelha, fechando a pasta:

 

— Você pensará que está consumindo tudo de melhor que o mundo pode lhe oferecer, mas é você que estará sendo consumida. Pensará que está representando, mas um dia irá perceber que nada tem além da representação vazia que se tornou você. Estará no  cerne do espetáculo, mas não terá qualquer poder sobre ele. E quando você se sentir muito à vontade com os aplausos, deverá lembrar que é apenas uma casca. Sem a Bureaus Enterpreneuer a lhe dar suporte, você nada é, você nada pode. E antes mesmo que se canse, já gasta  e deteriorada para nosso gosto, a substituiremos por uma garota nova, um rosto novo.

 

Carina franziu a testa, respiração irregular. Sorriu sem graça, parecendo nervosa:

 

— Suas palavras são cruéis. Por que me diz tudo isso?

 

Miriam Goldfarb colocou a mão sob o próprio queixo:

 

— Para que você não reclame quando acontecer. Para que saiba, que apesar de não ser para sempre, é preciso que haja amor enquanto dure.  Aceita os termos do contrato?

 

— Aceito.

 

Miriam Goldfarb pegou um último documento e o posicionou na frente de Carina:

 

— Preciso da sua assinatura.

 

Carina pegou uma caneta de grife que estava sobre a mesa, mas a Executiva puxou delicadamente o objeto da sua mão, guardando o mesmo em uma gaveta:

 

— Somos uma empresa moderna, mas em contratos importantes como este preferimos ser  tradicionais. Você vai assiná-lo com seu próprio sangue.

 

Quando a  Miriam Goldfarb sacou um punhal dourado, Carina já estava com o braço estendido, oferecendo o punho.

 

 

Fotografia de Lindevania Martins

Lindevania Martins é graduada em Direito, Mestre em Cultura e Sociedade e Mestranda em Direito Constitucional. É defensora pública  de Defesa da Mulher e População LGBT. Contista e poeta. Venceu o 6o. Prêmio CEPE Nacional de Literatura-contos. Publicou os livros “Anônimos” (2003), “Zona de Desconforto” (2018), “Longe de Mim” (2019) ,“Fora dos Trilhos” (2019), “A Moça da Limpeza” (2021) e “Teresa Decide Falar” (2022).

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