Cultura

Respostas à compreensão da tradição | Lucyane De Moraes

Foto de Mohit Tomar na Unsplash

A discussão que aqui se propõe tem nos conceitos polarizados de tradição e Modernidade um – thauma – campo privilegiado de análise. Em sentido comum, o conceito de tradição significa aquilo que procura manter o que se encontra estabelecido como norma, em geral assimilada em termos de padronização. Não obstante, em um sentido dialético alude ao aspecto intrínseco que interliga a tradição ao processo histórico de renovação, dimensionando-a enquanto elemento determinante e indissociável daquilo que poderá resultar moderno em outra circunstância histórica.

 

Tal acepção encerra um aspecto de completude que dimensiona a Modernidade enquanto algo que somente se impõe como resultado do que é tradicional e vice-versa, tendo em vista que aquilo que se determina como moderno é essencialmente o que poderá vir a ser tradicional em uma visão prospectiva. 

 

Sob esse ponto de vista, um justo conceito de tradição diz respeito à ideia de continuum temporal, divergindo inteiramente daquilo que se impõe como tradicionalismo, ou seja, o que se estabelece enquanto uma condição do tradicional. Instituída, portanto, como um princípio, a ideia de tradicionalismo significa aquilo que de forma conservadora tenta preservar, enquanto valor positivo, um todo estabelecido aceito em termos coletivos. 

 

Em contrapartida, depreende-se em sentido histórico que a tradição, como modalidade, representa aspectos cíclicos muito antigos da experiência vivida, mantidos através de uma diversidade de processos de expressão singulares constituídos por formas de representação únicas, resultando invariavelmente processos outros, diferenciados, de apreensão da realidade.

 

Com isso, delimitam-se campos de abrangência das práticas tradicionais, resumindo, respectivamente, diferentes formas de trocas simbólicas entre um mesmo grupo, a assimilação dessas diferentes formas, a seleção e relativização de dados implícitos nos mesmos processos de interação e a adaptação daquelas simbologias, dando à tradição um sentido nitidamente específico de prática social.

 

Tradição versus Modernidade?

 

Na tentativa de acionar aquilo que a consciência desperta por meio da memória, entende-se ser possível conectar passado e presente em sentido crítico, sendo que o desafio de se pensar historicamente o passado consiste na tentativa de não se debruçar sobre aquilo que já se encontra ultrapassado, mas de refletir sobre o que ainda não é conhecido e que encerra o paradoxo da experiência humana, resumindo, portanto, uma crítica sobre certa ideia de tradição que se apega a determinado anseio conservador específico. 

 

Atenta-se com isso para o fato de que as contribuições sobre a noção de tradição aqui expostas buscam ir além daquilo circunscrito originariamente ou, em outras palavras, que tal acepção não indica um atrelamento acrítico com a tradição, mas, ao contrário, uma relação dinâmica, determinada pela possibilidade de conexão entre passado e presente em termos dialéticos. Nesse sentido, não é fora de propósito pensar em um contexto histórico que demande um contato não somente mais estreito, mas, também, qualificado com a tradição, sob uma ótica de progresso permanente.

 

Sob esse prisma, pode-se, por conseguinte, atribuir significado de constante invenção à tradição, sendo invenção, em seu sentido original, um dos cinco cânones constitutivos do que se entendia na Antiguidade Clássica como retórica: inventio, dispositio, elocutio, memoria e pronuntiatio. Do latim invenire, o termo resumia o sistema que fundamentava a argumentação, significando achado e descoberta.

 

Vale assinalar que na atualidade o termo invenção engloba vários sentidos, quer seja uma ação do intelecto, a capacidade de criar, aquilo que resulta de atos únicos, a intenção de conceber uma nova ideia, um pensamento original, o que é inventado em si, etc., determinando novas formas de solução para antigos problemas.

 

Por outro lado, ao vocábulo tradição, originário do latim traditio ou tradere, atribui-se o significado de transmissão, entrega e doação em sentido recíproco, circunscritos a valores ou práticas que determinam o estabelecimento de traços de identificação entre as gerações, como forma de torná-los perenes, mas, de maneira sempre viva, por meio de um permanente processo de recriação. 

 

Em seu Dictionnaire étymologique de la langue française, Albert Dauzat, então Directeur d’études à l’École pratique des Hautes Études (EPHE), assim define o verbete tradição: “advindo do latim, traditio significa ação de transmitir, de entregar a alguém alguma coisa que a ele foi destinado” (Dauzat, 1938, p. 718).

 

Por sua vez, o filósofo, sociólogo e musicólogo Theodor Adorno, em sua Parva Aesthetica, certifica que “a palavra tradição vem do latim tradere, que significa entregar algo que por sua vez recebemos”. Referindo-se à conexão entre diferentes gerações, em suas palavras, tradição diz respeito “àquilo que se passa como herança de uma geração a outra. A imagem de entregar expressa a proximidade física, a imediatez, uma mão que recebe de outra” (Adorno, 2008a: 271). 

 

De forma consequente, o pensador frankfurtiano manterá em sua teoria o significado da palavra tradição, por entender que esta é conhecimento transmitido por meio de experiências e sofrimentos vividos. A este propósito, ele afirma: 

 

O esquecimento é desumano porque faz esquecer o sofrimento acumulado: já que o traço da história nas coisas, nas palavras, nas cores e nos sons é sempre o do sofrimento passado. Por isso, a tradição hoje se encontra diante de uma contradição insolúvel. Não há nenhuma a que se apegar; contudo quando a tradição é anulada, dá-se indício de que a marcha rumo à desumanidade se inicia (Adorno, 2008a: 275). 

 

Mais tarde, o filósofo e crítico literário Gerd Bornheim, em seu ensaio O conceito de tradição, irá reafirmar a contribuição adorniana ao registrar:

 

A palavra tradição vem do latim: traditio. O verbo é tradere, e significa precipuamente entregar, designa o ato de passar algo para outra pessoa, ou de passar de uma geração a outra geração […] os dicionaristas referem a relação do verbo tradire com o conhecimento oral e escrito. Isso quer dizer que, através da tradição, algo é dito e o dito é entregue de geração a geração. (Bornheim, 1987: 18-19).

 

Em vista disso, vale reafirmar que a tradição não pode ser apagada da cultura porque é parte intrínseca dela em sua relação com a sociedade. Ignorar a tradição é, portanto, abster-se de experiências e olvidar a própria história. Significa dizer, por fim, que rejeitar a tradição não é tão-somente um ato de abandono da história, mas, é, sobretudo, um ato de desumanização. 

 

Da relação entre Tradição e Modernidade

 

Sob um prisma mais específico, é também a partir da ideia de tradição que se entende que a noção de Modernidade deve ser concebida não como ruptura, mas por uma reflexão fundamentada nas formas e procedimentos herdados da tradição. Marcada pela fugacidade dos fenômenos, a Modernidade não é uma peculiaridade de certa época, e sim um momento específico comum a todas as épocas, cada qual fundado em sua própria especificidade momentânea. Equivale dizer que na efemeridade do moderno o novo torna-se antigo e o moderno se faz superado por outro novo.

 

 Atribui-se, assim, uma ideia de continuidade ao processo de desenvolvimento das tradições ao longo de seu decurso, sendo, a propósito, a cultura aquilo que se refaz como consequência histórica. Tal pressuposto se justifica tendo em vista o entendimento de que aquilo que se considera hoje como tradicional, anteriormente foi também algo inovador, o que significa reiterar as palavras de Adorno quando declara: “a tradição afirma mediante sua própria existência que ao longo do tempo o sentido se mantém e se transmite” (Adorno, 2008a: 278). 

 

É enquanto memória produtiva que tradição e consciência histórica guardam em si o mesmo sentido, sendo mais consequente pensar a ideia de moderno como um conceito que se completa na experiência da tradição, o que justifica dizer que “Modernidade é uma categoria qualitativa, não cronológica” (Adorno, 2008b: 215). É enganoso, pois, atribuir à tradição tão-somente a ideia de passado e, portanto, algo alheio ao progresso. 

 

Se, para o entendimento comum, a noção de memória se resume a um mecanismo de apropriação de acontecimentos passados, trazidos ao presente – ou seja, um mero repositório da faculdade de guardar lembranças – é preciso lembrar, também, que a memória, mesmo como recurso de evocação do passado é, ainda assim, uma forma de capacidade produtiva voltada para novas possibilidades de experiência e reflexão a partir de reminiscências vividas.

 

Dito isso, entende-se que o passado – tal como a tradição – é história viva, ativa e operativa, permanecendo nele os traços que fazem provável que o agora se torne presente e, como possibilidade, que este se constitua como perspectiva futura. Em sendo assim, por oportuno, cabe lembrar a sentença de Samuel Beckett, em seu texto dramatúrgico Esperando Godot, quando, pela boca da personagem Vladimir, afirma: memoria praeteritorum bonorum [“O passado relembrado é sempre melhor”] (Beckett, 2006: 75).

 

Conceber, portanto, a antinomia entre tradição e Modernidade é, em justa medida, levar em conta os procedimentos da própria racionalidade instrumental, o que vale evocar o aforismo do filósofo, poeta e ensaísta George Santayana: “quem não conhece o passado está condenado a revivê-lo” (Santayana, 1920: 284).

 

Tendo em vista os processos que envolvem tudo o que diz respeito à tradição, vale ainda acrescentar que a mesma apresenta – como um seu traço característico e condicional – determinação de impropriedade a tudo o que remete a processos seriais de reprodução idêntica da realidade, sendo isso o que mais caracteriza a sua essência, demonstrando, em um sentido amplo de significação daquilo que é moderno, a capacidade de invenção e recriação, inerente à tradição.

 

Considera-se, deste modo, que invenção e tradição resumem processos que somente se estabelecem em contextos propícios, não seriais e não condicionados a qualquer ambiente restritivo de natureza estetizada. A criação é, pois, sua essência e sua essência é a re-criação.

 

Referências

ADORNO, T. Crítica de la cultura  y sociedade I. Madri: AKAL, 2008a.

 

__________. Minima moralia. Rio de Janeiro: Beco do Azougue, 2008b.

 

BECKETT, S. Esperando Godot. Rosario: Editorial Último Recurso, 2006.

 

BORNHEIM, G. et al. Cultura brasileira: tradição contradição. Rio de Janeiro: Zahar, Funarte, 1987.

 

DAUZAT, A. Dictionnaire étymologique de la langue française avec supplément lexicologique et supplément chronologique. Paris: Librairie Larrousse, 1938.

 

SANTAYANA, G. The life of reason – or the phases of human progress. New York: Charles Scribner’s Sons, 1920.

 

Fotografia de Lucyane de Moraes

BIOGRAFIA: Lucyane De Moraes – Nascida em Salvador/Bahia, é professora, pesquisadora e colaboradora em diferentes revistas acadêmicas. É também autora do livro Theodor Adorno & Walter Benjamin – Em torno de uma amizade eletiva (Edições 70/Almedina Brasil).

@lucyanedemoraes

 

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