Oh, que ignóbil eu sou, que escravo abjeto! (…) Vivo na lua, insensível à minha própria causa (…) sou então um covarde? (…) Fico aqui como uma marafona, desafogando a minha alma com as palavras”.
Hamlet, Shakespeare
De acordo com uma definição comum, possível de encontrar em qualquer dicionário, uma conversa é uma ação que se estabelece entre duas ou mais pessoas. A palavra deriva do latim e costuma ser utilizada como sinónimo de diálogo ou conversação. Este diálogo pressupõe uma série de regras de conversação, de expetativas, de cooperação, de se fazer entender.
Os problemas adensam-se quando percebemos que os protagonistas ou atores das conversas são pessoas. Umas claras e diretas. Outras obscuras e intraduzíveis. Depende dos dias. Se pensarmos na personagem de Hamlet, de Shakespeare, é um bom exemplo de alguém com quem não é possível conversar, mesmo aplicando todas as categorias conhecidas, à maneira aristotélica ou estabelecendo todo o tipo de protocolos. Não existe nenhum protocolo, categoria de quantidade, qualidade, modo ou relação que consiga chegar à alma de Hamlet. Nem ele mesmo. Apenas podemos tentar. Iniciar a conversa do zero. Desconversar quando ele desconversa e conversar quando ele quer conversar. Não sei o que posso dizer sobre ele ou Shakespeare que é o mesmo. É quase uma impossibilidade epistemológica, não só porque Shakespeare está morto e não é possível saber o que quis dizer, mas porque, se calhar, não é possível dizer coisas verdadeiras sobre esta personagem tão comentada e que exerce um fascínio tão grande ao longo da história da literatura. Porquê? Que fantasmas é que Hamlet convoca dentro de nós? O que está Hamlet realmente a dizer?
É certo que quando não seguimos estas máximas corremos o risco de não ser percebidos. Deveria ser assim, mas conversar com alguém, fazer-se entender é algo mais complicado. A história da literatura está cheia de exemplos de autores que só conseguiram conversar com os outros mediados pela folha de papel, pelo espaço em branco. Joyce e o seu Ulysses seria um claro exemplo de desconversa, de alguém que nunca segue as regras, que nos coloca num território estranho de profunda incomunicabilidade. De desespero mesmo. Uma espécie de neurose comunicativa. Que só é possível chegar pela implicatura. Refazer a paráfrase várias vezes. Ir afinando. Ir tentando.
Por outro lado, num tempo em que o fundamento, o significado, o valor das palavras é constantemente vilipendiado num mundo de voragem e de informação acelerada, de distração permanente, em que a realidade é completamente fabricada, reparar no que alguém está realmente a dizer é difícil. Implica uma articulação entre língua (ou outro tipo de linguagem), pensamento, realidade. Tal como a atividade interpretativa que não é nenhuma faculdade com que vimos equipados. Algo dado de uma vez por todas. É uma construção que depende de inúmeros fatores, de ocasiões, de disposições, de ângulos, de perspetivas, dos óculos que usamos. A capacidade de parafrasear é calculada no momento. Não existem regras ou convenções que a ativem. Acontece, simplesmente. O resto é silêncio…
Ana Paula Jardim nasceu em Coimbra. Licenciou-se em Filosofia na Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa.
Desempenhou funções no âmbito da promoção da leitura e da gestão de eventos na Divisão de Bibliotecas da Câmara Municipal de Oeiras, onde foi co-organizadora, entre outros projectos, pelas obras 10 Livros que Mudaram o Mundo (publicado pela Quasi Edições, em 2005), Cesário Verde, um pintor nascido poeta (apresentado no âmbito do Colóquio que assinalou os 150 anos do nascimento do poeta, intitulado “Cesário Verde: visões de artista”, integrado nas respectivas Actas pelo Campo das Letras, em 2007) e Dez Luzes num Século Ilustrado (publicado pela Editorial Caminho, em 2013).
Integra, desde finais de 2016, a equipa do Templo da Poesia, do Parque dos Poetas, na área de programação e mediação cultural. Publicou, em Janeiro de 2021, o seu primeiro livro de poesia, intitulado Roupão Azul , Guerra e Paz Editores, que foi galardoado com o Prémio Glória de Sant’Anna, na sua 9ª edição, em Maio de 2021. Publicou em 2022 o seu segundo livro de poesia, Enfermaria, também editado pela Guerra e Paz.