No final da última página – e foram mais de 300! – ele escreveu the end, por hilária imitação dos filmes de Hollywood. O fim, em língua estranha, talvez significasse uma catarse por ter concluído aquele romance que o possuíra nos últimos meses. O escritor viveu dramas e tramas desde os primeiros passos de uma menina com cachinhos à la Shirley Temple até o final da caminhada. Amores fáceis, fantasias consumistas, alheamento dos valores morais, egoísmo ao extremo. E sempre sob o olhar cobiçoso de um coronel violento, que se dizia caçador de guerrilheiros na mata, mas que usara comandados de farda e armas para aterrorizar indígenas e estuprar meninas índias. O filho do coronel, estudante revoltoso, se alia aos comunistas para atuar na clandestinidade e minar o poderio dos militares golpistas e se torna maldito aos olhos de um pai omisso e oportunista. Empresários espertalhões, políticos corruptos, mulheres mal amadas, garanhões em final de carreira, malandros da gafieira, mortes misteriosas e o inebriante e fantasioso mundo do rádio, da televisão, do teatro e do cinema, que se revela através de uma atriz que domina a arte de representar e conquistar amores e admiradores. Amores inusitados e estranhos amores, ele se esmerou em descrever.
Satisfeito com a conclusão do romance, foi à janela do apartamento e passou a observar o ir e vir das pessoas na avenida. Uns apressados, como se o tempo não fosse suficiente para o que pretendiam fazer; outros em passos lentos, pensativos, talvez temerosos do que poderia ocorrer nos próximos passos. Homens, mulheres, crianças. Quanta gente, num trança-trança entre carros, motos, bicicletas! Qual o propósito de cada um? Não saberia dizer, especular talvez. A moça de cabelos coloridos e celular grudado no rosto talvez falasse com o namorado. Ou contasse novidades para a amiga. E o adiposo veterano arfando a cada passo como se carregasse nos ombros as misérias do mundo? A mulher com um filho nos seios e arrastando outro pela mão? E o engravatado, desafiando o sol, com a bíblia embaixo do braço e orações na ponta da língua?
Se ainda fumasse – vício vencido desde quando nem se lembrava mais – talvez seguisse com o olhar a fumaça soprada pela brisa em busca de um destino qualquer. O que buscava? Uma mulher, sim, uma mulher! Da janela o solitário desenhava com os pincéis da ilusão uma que pudesse ser a parceira capaz de doar-se e receber o muito que ele se dispunha a partilhar. E como seria ela? Já não se fixava em um tipo físico ou na idade. Tivera muitas; morenas, louras, negras e até uma ruiva, todas bonitas, algumas lindas, conforme os padrões ocidentais de comparação. Fora feliz com elas e não decepcionara nenhuma. Partilharam segredos, viagens, festas, passeios, praias e matas, estradas de todos os cantos, riram, trocaram experiências e se divertiram até que… bem, nunca o infinito foi alcançado.
E agora, maduro e consciente, ansiava por uma companheira. Não apenas para o sexo, mas para a vida, com a lenta e saborosa maturação dos frutos da convivência plena. Onde estaria essa mulher?
O homem, leitor voraz, além de muitas outras, conhecia toda a obra do português José Saramago e se imaginava merecedor de ser premiado com a presença ao seu lado de uma Pilar, a musa inspiradora dos últimos 24 anos de vida do prodigioso e inventivo escritor.
Maria del Pilar del Rio Sánchez, jornalista, escritora e tradutora espanhola, leu O ano da morte de Ricardo Reis e se apaixonou pelo livro e pela Lisboa que palpitava em cada página. “Acabei de ler o livro a chorar compulsivamente porque estava a terminar e perguntava-me: que vou fazer o resto da minha se o livro está a acabar? Então decidi ir percorrer os lugares de Lisboa que aparecem no romance e pareceu-me de justiça telefonar ao escritor para lhe agradecer o livro e a emoção que me tinha oferecido.” Assim Pilar define o início do contato com Saramago.
Em entrevista ela revelou que nunca vira o autor e que a paixão pelo livro a arrastou até à capital portuguesa. E só então conheceu o escritor. Aconteceu em l986 e dois meses depois iniciaram o relacionamento. Ambos eram divorciados. Ela, com 36 e ele com 63 anos. Mas o amor não respeita o tempo. A empatia foi imediata, estreitaram as relações e dois anos depois se casaram. E desde então viveram um amor integral, com reflexo positivo na vida dos dois, na obra dele, que passou a ter com quem dialogar, trocar ideias, discutir tramas e temas. Um aprendizado!
O homem na janela da vida se perguntava: quem poderia ter sido a sua Pilar? A mãe dos primeiros filhos? Não, os tempos eram difíceis, não havia espaço para voos criativos, apenas trabalhar para viver e estudar para crescer. Vida agradável, simples, miúda, feliz, mesmo com as limitações da inexperiência. A mãe de outros filhos? Sim, quem saberia dizer? Mas ninguém é perfeito e as aspirações diferiam. Vivências repetidas, duas, três e muitas mais, nenhuma com enlace que fosse além do consumir-se em estrepolias de risos e sexo. A alternância de aventuras cansa, exaure, esvazia o que se deseja da vida.
Houve uma de olhos brilhantes que lia Jorge Amado e se deixava encantar pela baianice dele; a lourinha que citava Vinícius de Moraes e imitava Rita Lee; a locutora de rádio FM; a escultora de peças em madeira, outra das telas abstratas; e a que se imaginava compositora com dins-dons repetitivos como se ainda fosse tempo de bossa nova?
Ele ansiava por uma parceria proveitosa e feliz como a nascida entre o jornalista e escritor Ruy Castro e Heloisa Seixas. Ele, autor de muitos livros, alguns traduzidos em vários países e ela, também jornalista e escritora, com uma dúzia de livros publicados. Graças à presença de Heloisa, Ruy escapou do álcool, das drogas e venceu o câncer. Completa e autêntica cumplicidade, uma forma de ser feliz, irmanados nas luzes do espírito. Ler, escrever, conversar, aprofundar temas, buscar nas imagens de filmes ou trilhas melódicas o que outros não apreendem. Almas gêmeas na vida comum e nas artes, isso é o que o solitário da janela deseja.
Outro casal feliz na vida e nas artes: Jorge Amado pediu que Zélia Gattai lesse sua próxima coluna no jornal Folha da Manhã, edição de 02/07/1945 e os versos a seduziram: “Uma oferta do marinheiro para Yemanjá. Eu te darei um pente pra te penteares, colar para teus ombros enfeitar, rede pra te embalar, o céu e o mar eu vou te dar, um anel para teus dedos, te darei um saveiro para nele passeares, cantarei para teu sono sossegar e irei buscar a lua. Te darei meu corpo para o afogares.”
Rompido o primeiro casamento, Zélia leu e caiu nos braços do mulherengo Jorge Amado, que se endireitou de vez.
O homem da janela admirava e respeitava o amor vivido por Jean-Paul Sartre e Simone de Beauvoir, com as permutas intelectuais e afetivas desse casal pouco convencional à época; além de nunca terem se casado, eles tinham um relacionamento aberto, o que era ainda mais inesperado e escandaloso. Estavam unidos pela maneira de ver o mundo e pela escrita.
Não gostaria de viver essa experiência; sempre fora um homem de mente aberta, mas nunca amaria uma mulher de outros homens. E se ele realmente a amasse, não buscaria em outras mulheres nada além de amizades.
À espera de Pilar, daquela que seria a sua Pilar, o solitário sonhava observando o mundo da janela. Não era ninguém, apenas um ponto perdido na escrita.
(Crônica incluída na coletânea Todos os Saramagos, uma homenagem ao centenário do escritor.)
Hermínio Prates é jornalista, escritor, ex-professor universitário de Jornalismo, Rádio e Teoria da Comunicação na UFMG, UNI-BH, PUC e Newton de Paiva. Foi repórter e redator do Diário de Minas, Jornal de Minas, Minas Gerais, Rádio Itatiaia, diretor de Jornalismo da Rádio Inconfidência, chefe das Assessorias de Comunicação das Câmaras Municipais de Sabará e de Belo Horizonte e da UEMG – Universidade do Estado de Minas Gerais. Publica regularmente contos, crônicas e artigos em vários jornais mineiros. Autor dos livros Família Miranda – Vidas e Histórias ( ensaio historiográfico) e A Amante de Drummond (contos).