Quando a Ciência precedeu a Ética – histórias de experiências em humanos – parte VI | Marinho Lopes
Nas partes anteriores deste artigo falei da história de Mary Rafferty, da Experiência com o Pequeno Albert, das experiências com o boneco Bobo, das atrocidades científicas dos nazis a par da Experiência de Milgram e ainda da Experiência da Prisão de Stanford. Nesta sexta parte vou descrever de forma algo breve três estudos: o Estudo Monstro, o Estudo sobre Sexo em Espaços Públicos e o Estudo da Sífilis (não tratada) em Tuskegee.
O Estudo Monstro
Do inglês, “The Monster Study”. Este estudo realizado em 1939 em Iowa, Estados Unidos, supervisionado pelo psicólogo Wendell Johnson e realizado pela sua estudante Mary Tudor, pretendeu demonstrar que a gaguez na infância é (ou pode ser) consequência da forma como as crianças são criticadas pela forma como falam. De acordo com Wendell,
“… stuttering begins, not in the child’s mouth but in the parent’s ear…”
Isto é, “a gaguez começa, não na boca da criança, mas nos ouvidos dos pais”. Tudor recrutou 22 crianças de um orfanato para realizar o seu estudo. 10 crianças tinham problemas de gaguez, enquanto que as outras 12 crianças eram “normais”. Tudor dividiu as crianças em dois grupos, cada um destes com 5 crianças gagas e 6 crianças “normais”. Crianças no primeiro grupo seriam elogiadas pela forma como falavam (independentemente de serem gagas ou “normais”), enquanto que as crianças no segundo grupo seriam criticadas de forma negativa pelos seus sinais de gaguez (quer os tivessem, quer não). A experiência demorou cerca de 6 meses durante os quais Tudor teve várias encontros com as crianças para falar com elas… A maioria das crianças que não tinham problemas de fala mas que foram submetidas às críticas negativas passaram a mostrar-se conscientes de si mesmas, constrangidas, embaraçadas e com dificuldades claras em se expressar, com receio de não conseguirem comunicar de forma perfeita. De acordo com relatos posteriores, algumas delas sofreram de danos psicológicos e problemas de comunicação para o resto da vida. Em 2001, isto é, 61 anos após a realização do estudo, um artigo de investigação jornalística trouxe esta história a público (note-se que o estudo original nem houvera sido publicado). Deste artigo resultou um processo em tribunal que acabou com um pedido de desculpas da Universidade de Iowa às vítimas do “Estudo Monstro”, assim como uma compensação de 925 mil dólares para seis das “crianças” submetidas à experiência (nesta altura já idosos). O estudo ficou conhecido como estudo “monstro” por se terem usado crianças de um orfanato sem consideração aparente sobre o bem estar destas.
Se por um lado os resultados do estudo são em geral inconclusivos (hoje considera-se que a gaguez, ou disfemia, pode ter múltiplas causas), por outro a falta de ética na experiência parece incontestável. Não só as crianças não foram informadas sobre o tipo de experiência a que iam ser submetidas, como não se considerou as consequências adversas que a experiência poderia ter nelas. Aliás, é pior que isso: tentou provar-se de que de facto haveria consequências negativas como resultado da experiência!
O Estudo sobre Sexo em Espaços Públicos
Refiro-me ao “The Tearoom Sex Study” realizado pelo sociólogo americano Laud Humphreys nos anos 60 do século XX. Como projecto de doutoramento, Humphreys propôs-se a estudar as relações sexuais impessoais praticadas por homossexuais em casas-de-banho públicas (relações entre homens apenas). Qual a motivação? A homossexualidade era proibida e a maioria das detenções ocorria de facto em casas-de-banho públicas, pelo que Humphreys queria perceber o porquê dos homossexuais se exporem a este risco de detenção. De forma a obter a informação que procurava, Humphreys fez-se passar por um “watch queen” junto de casas-de-banho públicas, isto é, fez-se passar por alguém com o fetiche de observador de relações sexuais homossexuais. Em troca de poder observar, Humphreys voluntariava-se para ficar de sentinela (caso aparecesse um estranho ou um polícia, Humphreys tossia de forma a alertar os seus “cúmplices”). No decorrer de um ano, Humphreys observou centenas de actos sexuais. Mais ainda, para completar o seu estudo, Humphreys perseguiu muitos dos seus “cúmplices” de forma a poder entrevistá-los! Humphreys tinha registado as matrículas dos carros dos “participantes” no seu estudo e com elas conseguiu encontrá-los. Após cerca de um ano após a “observação inicial”, Humphreys mudou o seu cabelo, aparência e forma de vestir para ir entrevistar os “participantes” fazendo-se passar por um investigador em saúde social. O objectivo era descobrir indícios na vida dos indivíduos que justificasse o seu comportamento.
Os resultados foram surpreendentes (para a altura): 54% dos “participantes” eram homens casados (com mulheres), cidadãos aparentemente exemplares. 38% não eram nem bissexuais nem homossexuais, sendo que apenas 14% dos “participantes” se identificaram como homossexuais. De acordo com o estudo, os estereótipos partilhados pelo público e pela polícia estavam completamente errados.
Como deverá ser óbvio, para lá dos resultados, o estudo foi muito criticado devido a problemas éticos. Humphreys invadiu a privacidade dos seus “participantes” e mentiu de forma descarada (já para não falar que foi cúmplice daquilo que seriam crimes na altura). Para mais detalhes sobre o estudo podem ler o artigo mencionado na bibliografia [*]. Ou ler o livro que Humphreys publicou em 1970: “The Tearoom Trade: Impersonal Sex in Public Places”.
O Estudo da Sífilis em Tuskegee
A sífilis é uma doença sexualmente transmissível que pode causar uma variedade de sintomas, desde úlceras na pele, até problemas neurológicos e cardíacos em estágios mais avançados. Esta infecção bacteriana é conhecida como a “grande imitadora”, pois pode causar sintomas semelhantes a muitas outras doenças.
O serviço de saúde público dos Estados Unidos conduziu um estudo ao longo de 40 anos, de 1932 até 1972, em Tuskegee, no estado de Alabama, num grupo de cerca de 400 afro-americanos sobre a forma como a sífilis progride naturalmente ao longo do tempo sem tratamento. Os participantes receberam tratamento médico, refeições e seguro de enterro gratuitos. Contudo, os participantes não sabiam de facto em quê que estavam a participar, pois não lhes foi dito que tinham sífilis, nem esta foi em momento algum tratada. Dadas as características da doença, as vítimas foram não só os participantes, como também as suas famílias: esposas e filhos contraíram também a doença. Muitos morreram devido a complicações derivadas da doença não obstante o facto de por volta dos anos 40 já ser sabido que a administração de penicilina era um tratamento eficaz para a sífilis.
Em 1966, o investigador Peter Buxtun enviou uma carta ao director da divisão responsável sobre o estudo a denunciar a falta de ética neste. Uma vez que o estudo continuou, no início dos anos de 70 Buxtun recorreu à imprensa e só assim é que se pôs fim a este estudo que é considerado um dos mais horríveis na História dos Estados Unidos. Pouco ou nada se descobriu com o estudo, para lá de evidenciar o racismo de quem o praticou. Como consequência, em 1979 publicou-se o relatório de Belmont (“Belmont Report”) e criou-se o gabinete de protecção de investigação humana. Só em 1997 é que o Presidente Bill Clinton pediu formalmente desculpa pelo estudo.
“Lamento, mas há uma grande diferença entre Médicos sem Fronteiras e Médicos sem Restrições.”
Bibliografia:
Algahtani, H., Bajunaid, M., & Shirah, B. (2018). Unethical human research in the field of neuroscience: a historical review. Neurological Sciences, 39(5), 829-834.
[*] https://sexinfo.soc.ucsb.edu/article/tearoom-trade
Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.