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Partindo de Henry Miller e Anäis Nin: em torno de Eros e pornografia | Cecília Barreira

Henry Valentine Miller (Nova Iorque, 26 de dezembro de 1891 – Los Angeles, 7 de junho de 1980).

Passou a infância em Brooklyn. Foi também ativo no Partido Socialista. Frequentou aulas no City College of New York. Em 1923, casado com Beatrice Wickens, enamorou-se por uma dançarina de seu nome, June Mansfield. Houve um triângulo amoroso entre Miller, June e uma amiga desta, Jean Kronski, entre 1926 e 1927. June e esta amiga chegaram a ir para Paris sem ele, o que o deixou transtornado. Mas June voltou rápido e sabe-se que Kronski se suicidou em 1930.

Com a segunda mulher, June Miller, passou vários períodos em Paris. Mas mudou-se sozinho para esta cidade em 1930, vivendo em condições precárias e com a ajuda da escritora Anaïs Nin. Tornou-se mesmo seu amante, apesar de Nin ser casada. O jovem escritor Lawrence Durrell tornou-se amigo e seguidor de Miller.

O primeiro livro do autor foi Tropic of Cancer (1934), financiado pelo marido de Anaïs Nin e que foi banido nos EUA. Miller foi também influenciado pelo surrealismo. Em 1936 publica Black Spring e Tropic of Capricorn (1939).

O casamento com June só terminaria oficialmente em 1934. Em 1939 retorna aos EUA: morou na Califórnia entre 1944 e 1962. Um pouco antes de ir residir para a Califórnia, começou a escrever Sexus, que também seria proibido nos EUA.

Em fevereiro de 1963, Miller foi para Los Angeles viver os últimos dezassete anos da sua vida. Morreu com 88 anos, em 1980.

A Grove Press publicou Tropic of Cancer em 1961 e, em 1964 e 1965, Black Spring, Tropic of Capricorn, Sexus, Plexus e Nexus.

Também foi autor de livros de viagens e de ensaios. Fez um estudo sobre Rimbaud, O Tempo dos Assassinos. Em 1990, o realizador norte-americano Philip Kaufman realizou um filme sobre a vida de Miller com Anaïs: Henry and June, baseado nos diários de Anaïs Nin.

Miller também pintava e estima-se que produziu perto de duas mil pinturas.

Na totalidade, escreveu dezassete obras.

Os anos 60 deram liberdade editorial para as obras do autor, devido à influência hippie e às revoltadas juventudes desses anos.

Em 1981 foi fundada a Henry Miller Library, em Big Sur. Influenciou, com a sua escrita, Jack Kerouac, Philip Roth, entre muitos outros.

Michel Foucault, na sua História da Sexualidade, em A Vontade de Saber, expõe dois tipos de procedimento: as civilizações da ars erótica, tais como Roma, China, Índia, mundo muçulmano, etc., e a civilização ocidental com uma scientia sexualis. Daí o primado da confissão nesta última, em vez da iniciação sexual. Na ars erótica existe a figura do mestre que transmite essa arte, não havendo lugar para proibições.

Esta leitura foucaultiana é ainda toda ela o lugar do masculino homoerótico, apesar do apetrecho teórico inerente.

Tal como nos recorda o item Homoerotismo do citado E-Dicionário de Termos Literários, de Carlos Ceia (2010), no julgamento que prendeu o escritor Oscar Wilde, este, em carta lida no tribunal, diz que o amor entre um homem mais velho e um rapaz “é aquele amor que se encontra nos sonetos de Michelangelo e de Shakespeare (…) Neste nosso século é mal compreendido, tão mal compreendido que é descrito como o amor que não ousa dizer seu nome, e, por causa disso, estou aqui onde estou. Ele é belo, refinado, é a mais nobre forma de afeto. Nele, não há nada de antinatural. (…) O mundo zomba dele e algumas vezes põe por ele alguém no pelourinho”.

Recorde-se que no século IV d.C. surge na índia o célebre Kama Sutra, escrito por Vatsyayana.

A Idade Média trouxe o Decameron, de Boccaccio.

Segundo Eliane Robert Moraes, em O Efeito Obsceno, de 2003, a linguagem de nomeação do erotismo inicia-se no mundo ocidental com Pietro Aretino, que por sua vez influencia L’École des Filles, de 1655 por autor desconhecido. Pantagruel (1532), Rabelais, Ronsard (1578) são exemplos do Renascimento erótico pornográfico.

Em 1660, surge de Nicolas Chorier, L’Académie des Dames. No século XVIII, deu-se à estampa Les Bijoux Indiscrets, de Diderot, em 1748, e o romance Fanny Hill, de John Cleland, em 1749.

A obra do Marquês de Sade (1740-1814) é levada à exaustão em Les 120 Journées de Sodome, de 1785.

As práticas sexuais incluíam a sodomia, a pedofilia, a macrofilia, a coprofilia (in E-Dicionário de termos literários, Carlos Ceia coordenação, 2010, Literatura Erótica)

Em Portugal, não esquecer Bocage na obra Poesias Eróticas, Burlescas e Satíricas (Lisboa, 2001).

Voltando a Miller: Em 1949, no livro L’Obscénité et la loi de réflexion, reforça a indefinição de obsceno, visto que a obscenidade seria sobretudo um efeito.

Consultando o estudo de Raquel Catunda Pereira sobre Pornografia e Transgressão na obra Literária de Henry Miller (2015), Catunda Pereira faz referência de Dominique Maingueneau (2010), O Discurso Pornográfico, no qual diz que Sade ou Miller têm sequências pornográficas, sem se poder nomear na realidade de pornografia pura e dura. A Geração Beat muito deve a Miller. Desde Jack Kerouac a Charles Bukowski, onde se revelam as marginalidades do herói milleriano.

Tal como nos alerta esta ensaísta, já em Albert Camus em O Homem Revoltado (1951), se encontra a negação de um estilo de vida convencional.

Miller foi influenciado por Nietzsche. Em Assim Falava Zaratustra (1885), o filósofo refere que o Estado “é o lugar onde todos bebem veneno, os bons e os maus, onde todos perdem, bons e maus, onde o lento suicídio de todos se chama vida”. Em Trópico de Capricórnio, tradução de 2008, no Brasil, refere Miller:

“Andar com dinheiro pela multidão noturna, protegido pelo dinheiro, embalado pelo dinheiro, a própria multidão dinheiro, a respiração dinheiro, nenhum único objeto em parte alguma que não seja dinheiro (…)” (p. 108).

Como nos recorda a estudiosa acima citada, Miller não esconde as influências de Dostoievski Os heróis destes romancistas vivem à margem da sociedade. Diz Miller, em Trópico de Capricórnio, obra já citada: “ (…) Eu vagava por uma floresta de pedra cujo centro era o caos; às vezes, no centro mesmo, no coração mesmo do caos eu bebia e dançava estupidamente, ou fazia amor, mas era tudo caos, tudo pedra, e tudo irremediável e desconcertante “ (p. 60).

A ensaísta propõe os percursos de Henry Thoreau, com a obra Desobediência Civil (1849), e de Miller, devido ao entusiasmo pela escrita, embora tivessem de fazer muitas outras tarefas para sobreviver. Aliás, Miller seria profundamente devoto de Thoreau.

De notar também o belíssimo ensaio de Flávia Andréa Rodrigues Benfatt, Pornografia e Criticidade: as faces de Henry Miller em Trópico de Capricórnio sob o viés autobiográfico (São Paulo, 2013). Aí faz-se a desconstrução de um eu autobiográfico que se comporta na reverência a uma masculinidade hegemónica normal dentro de uma sociedade patriarcal. Também devemos notar a capacidade crítica do narrador entre a ironia, o humor e a metáfora.

No já citado E-Dicionário de Termos Literários, no termo Literatura Erótica refere-se como é fácil confundir erotismo com pornografia. Aí aceita-se que “a pornografia é o erotismo dos outros”, no pensamento atribuído a Chris Marker.

Em Les Liaisons dangereuses, de Pierre de Laclos (1782), convoca-se Francesco Alberoni para referir que “há uma estreita ligação entre a raiz coletiva do erotismo feminino e a sedução como manipulação e intriga” (in O Erotismo, Bertrand, 1995, p. 229).

O austríaco Leopold Maria Sacher-Masoch (1836-1895) ficou conhecido por infligir dor física em si próprio ou no Outro.

1857 é o ano de publicação de Madame Bovary, de Flaubert, e de Les fleurs du mal, de Baudelaire. Para o estudioso deste artigo, Cesário Verde é o português cuja poesia se pode considerar erótica, em oitocentos. Bem como Eça de Queiroz, sobretudo em O Crime do Padre Amaro.

A estes junta-se também Almada Negreiros, no Manifesto Futurista da Luxúria (1917), e o poema A Cena do Ódio (1915), nos inícios de novecentos.

O inglês D. H. Lawrence (1885-1930) é o célebre autor de Lady Chatterley’s Lover (1932), banido imediatamente e republicado em 1959, de novo proibido, e somente livre de circular a partir de 1960. O romance é visto como antifeminista por alguns setores do feminismo. Trata-se, como se referencia no artigo, “do triunfo do falo”.

Referem-se Miller e Vladimir Nabokov, com o célebre Lolita (1955).

Neste assunto, deve-se ler a obra de Gill Dines, Robert Jensen e Ann Russo: Pornography: The Production and Consumption of Inequality (1998). E a de Jacques Pauvert, A Literatura Erótica (Lisboa, 2001).

Do blog Arquivo Radical retirei o artigo Sobre Pornografia: quando o discurso liberal sepassa por libertador, escrito por Eliane Moraes e Sandra Maria Lapeiz. Três posições são possíveis acerca da pornografia: o discurso da Moral, o da Libertinagem e o da Libertação.

Os conservadores abominam a pornografia; os libertinos, amam-na; os da libertação acusam os anteriores grupos de fazerem o jogo do poder instituído.

Na moral vitoriana, a sexualidade estava confinada à alcova. Foi aí que nasceu o conceito de sexualidade perversa, por oposição a uma suposta normatividade.

O discurso libertino que tem, no Marquês de Sade, no século XVIII, um esplendor grande, é a favor da imensa indústria da pornografia, consumida à vontade por adultos para ir ao encontro de fetiches e fantasias. O discurso do pós-capitalismo é o do amor livre incondicional. As máscaras do desejo e do gozo não têm limites. As sociedades patriarcais formulam a dominação sexual da Mulher. Existe a Mulher Esposa e a Mulher Pecadora.

Os libertários não querem nem a moral vitoriana nem a pornografia sem limites. Pretendem reinventar o erotismo. É verdade que nos filmes pornográficos a mulher é sempre vista do lado do olhar masculino. A pornografia é machista e homofóbica. É misógina. É necessário uma pornografia que invista no olhar feminino e no olhar homossexual. Para além da dicotomia ativo/passivo.

É criticada a mais recente crítica feminista por apelidar de opressora a linguagem pornográfica, visto que a mulher aí representada é um mero objeto sexual. Eros, por oposição a “porné”, do grego, designa “cortesã” ou “prostituta”.

Mas a linguagem erótica também pode ser “pornográfica”, como poderemos ver em Anaïs Nin ou Miller. Como se explica no E-Dicionário de Carlos Ceia, a literatura erótica é uma conquista do decadentismo do século XIX, enquanto literatura sotádica, de Sotades, autor obsceno do século III, a.C.

Podíamos acrescentar que em Miller “a verdade é que a assunção da castração simbólica e do seu destino de sujeito a que o trabalho analítico conduz, não retira ao escritor o gozo fálico, linguageiro, viril, ligado à fala, semiótico” (in E-Dicionário de Termos Literários coordenado por Carlos Ceia, 2010, Falocentrismo). Também o gozo místico de São João da Cruz ou de Santa Teresa de Ávila, como lembra Lacan (La signification du phallus; Subversion du sujet et dialectique du désir dans l’inconscient, 1958).

Como nos refere Inês Cordeiro Silva Dias, na belíssima tese A Figura da Prostituta em Henry Miller e Brassai (Faculdade de Letras de Lisboa, 2007):

“Em Miller, a cidade, a mulher e a própria modernidade assentam então nessa noção de vazio que, segundo Buci-Glucksmann, é a base do eterno retorno de uma utopia catastrófica, em que a atrocidade, a fragmentação e a destruição se desenham como forças críticas. E em Tropic of Cancer, a noção de catástrofe é fundamental, sendo este o topos que lhe dá início” (p. 19).

Paris funcionou para Miller como um exílio para fugir ao “utilitarismo burguês”.

E ainda:

“Porisso Tropic of Cancer, a sua primeira obra, não é um livro, mas uma difamação(Miller, 1993, p.10, edição de London, Flamingo, 1993); a poética de Miller parte assim da devastação e do caos como ponto de partida de uma nova arte – e de uma nova verdade. E esta destruição pode ser a do próprio herói, como já vimos – mas pressupondo sempre uma renovação. Daí o útero como gerador de criatividade” ( p. 33).

Anaïs Nin, nascida como Angela Anaïs Juana Antolina Rosa Edelmira Niny Culmell (2de fevereiro de 1903 – 14 de janeiro de 1977).

Nasceu em França e viveu grande parte do tempo nos EUA. Relacionou-se amorosamente com o psicanalista Otto Rank e o escritor Henry Miller. A obra erótica Delta of Venus (1977) e Little Birds (1979) foram publicadas postumamente.

Era filha de Joaquin Nin, pianista e compositor cubano. Passou a infância em França, onde nasceu, e depois em Barcelona e Nova Iorque.

Em 1923, casa em Havana com o primeiro marido Hugh Parker Guiler (1898-1985), banqueiro.

Profundamente interessada em psicanálise, terá tido relacionamentos com René Allendy, em 1932, e com Otto Rank.

No verão de 1939, regressou a Nova Iorque. Ela própria exerceu a prática de psicanalista.

Na sua escrita, foi inspirada por Marcel Proust, Gide, Rimbaud, etc.

Nos primeiros diários referentes aos anos de 1931 a 1934 (publicados em 1966), Nin encontrava-se em Paris com o marido, a mãe e um irmão.

Tornou-se amiga de grandes figuras da intelectualidade tais como Artaud, Gore Vidal, Lawrence Durrell.

O relacionamento com Henry Miller foi explosivo, até porque incluiu um triângulo com June, mulher de Miller.

Em 1947, conhece um homem dezasseis anos mais novo, Rupert Pole, com quem se casaria em segundas núpcias.

Os originais de escrita de Anaïs estão na biblioteca da UCLA, nos EUA.

A novela House of Incest é de 1936.

No estudo/tese de Damiana Pereira de Paula, O Processo Criativo e a Personalidade Criadora: Um Estudo da Poética de Anaïs Nin no Poema em Prosa A Casa do Incesto, de 2016 (Universidade de Brasília), a ensaísta revela que Anaïs e Miller complementavam-se na literatura, na criação e no sexo.

Diz Anaïs em Incest:

“Imagino nós dois em Espanha – e tudo está fora de foco, distorcido, ampliado pelo poderoso demónio da literatura. June é personagem, é material, é aventura, mas a cópula entre um homem e uma mulher no forno da criatividade é uma nova monstruosidade de um novo milagre que irá interferir na órbita dos planetas e alterar o ritmo do mundo e ‘deixar uma cicatriz sobre o mundo’. (Incest, p. 189., Incest: from a Journal of Love. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1992).

A ensaísta Damiana de Paula referencia que Anaïs era uma espécie de Don Juan no feminino.

Cito Anaïs:

“(…) e que eu não estou interessada na possessão física, mas sim no jogo, assim como Don Juan, o jogo da sedução, da loucura, da possessão não apenas dos corpos, mas também das almas dos homens – exijo mais do que as putas (…). Eu seduzo os corpos e as almas dos homens e brinco com coisas sérias, sagradas. Como Henry uma vez disse, eu adoro um sacrilégio. Sou uma nova espécie de feiticeira (…). Sou um veneno que não age apenas na carne, mas penetra em profundezas” (in Incest p. 185-186, opus cit.).

A ensaísta citada diz que ela tanto é Eurídice como Orfeu, é a “heroína de si própria”.

Nin vive com o primeiro marido nos anos 20 em Paris, na sua apoteose.

Na obra de ficção de Anaïs, Sabina é a mais importante por contraposição a Mona, de Trópico de Câncer (1934), de Miller.

1931 é o ano em que Anaïs conhece Miller e a mulher dele, June Mansfield, e reencontra o pai, Joaquin Nin. A atmosfera parisiense, no período entre guerras, é privilegiada com o surrealismo em força.

É na década de 40 que publica os contos eróticos acima citados. Escreveu-os para ganhar dinheiro. Em 1966 publica o primeiro volume dos Diários e torna-se autora consagrada. Muito ajudou muito a mudança de mentalidades dos anos 60 e 70.

Em The Novel of The Future (The Novel of the Future. Nova Iorque: Macmillan, 1968, p. 29), diz Nin:

“É estranhamente curioso que escutemos jazz, apreciemos pintura moderna, moremos em casas modernas, viajemos em aviões a jato, e mesmo assim continuemos a ler romances escritos num estilo que não pertence à nossa época e que não se relaciona com nenhuma destas influências. (…) o novo romance poderia nascer de Freud, de Einstein, do jazz e da ciência”.

Miller diz em The Time of the Assassins: a Study of Rimbaud (Nova Iorque: New Directions, 1962, p. 130):

“Aquilo que criamos com as mãos e a fala de nada serve. O que realmente conta é aquilo que criamos a partir da nossa existência. Somente quando nos tornamos parte da criação é que começamos a viver”.

Tal como Lawrence, e retornamos à tese de Damiana de Paula, Nin incorporou em experiências tudo o que poderia ser absorvido e devolvido a uma escrita desassombrada.

Miller, Anaïs e Lawrence vivenciavam o conceito de “livingness”, tal como nos refere a ensaísta.

Miller diz, em The World of D. H. Lawrence: A Passionate Appreciation (Santa Barbara. Capra Press, 1980, p. IX):

“Aqueles que se orgulham do facto de aceitarem a vida como ela é são os próprios responsáveis por assassinarem a vida como ela é, porque as coisas nunca são, tudo está sempre em movimento, em fluxo contínuo. Aquele que aceita a presente condição aprisiona a vida. E hoje, esta é a nossa verdadeira vida: aprisionamento, permanência e morte estática.”

Anaïs deu-se com Lou Andreas-Salomé (1861-1937), escritora e psicanalista. Lou, a musa inspiradora de Freud, Rilke e Nietzsche foi a heroína de Anaïs. Influenciou Nietzsche na escrita de Assim falou Zaratustra.

Em 1937, no diário Nearer the Moon, Anaïs diz que “tocamos a terra somente através do sexo”. (Nearerthe Moon: froma journal oflove. Nova Iorque: Harcourt Brace Jovanovich, 1996, p. 278).

Na obra de L. Hunt, A Invenção da Pornografia – A Obscenidade e as Origens da Modernidade, 1500-1800 (São Paulo: Hedra, 1999), referenciada por Kátia Kormann Morel (in O caderno rosa de Lori Lamby: a escrita como objeto na pornografia de Hilda Hilst), diz que, no tempo da Revolução Francesa, a pornografia ia sendo extirpada do seu aparato de crítica para se tornar numa indústria.

A indústria cultural leva à produção em série, mas, contrariamente às considerações de Theodor Adorno, penso que há sempre espaço para o novo, o diferente, o que é original.

A pornografia vulgar é o lugar da passividade do leitor, que é estimulado pelo visionamento ou leitura de um ato sexual explícito (a ler: Jean-Marie Goulemot, Esses Livros que se Leem com Uma Mão, São Paulo, Discurso Editorial: 2000).

A linguagem cria imagens, potencia dentro do leitor o frisson de uma relação sexual explícita.

Em Miller não poderemos falar de pornografia porque o discurso é todo ele uma melancolia sobre a vida, com exceção de certos excertos em que potencia algumas sequências de sexo explícito, como em Trópico de Capricórnio (Miller, Trópico de Capricórnio, IBRASA, São Paulo, 6ª edição, 1983).

Tal como nos inspirámos nas palavras de Inês Cordeiro Silva Dias (A Figura da Prostituta em Henry Miller e Brassai), o mundo citadino milleriano é todo ele apocalíptico, maldoso e cruel. O erotismo é um espaço salvífico para o escritor desencantado. Contrapõe-se a visão de uma Paris mais acolhedora do que Nova Iorque. A liberdade libertária de Paris não tem comparação com a soturnidade de Nova Iorque.

O universo da cidade com as suas ruas decadentes, anoitecidas, é uma referência quer em Trópico de Capricórnio, quer em Dias Tranquilos em Clichy (Miller, Círculo de Leitores, 1989).

A figura da prostituta é a devolução do desejo consumado em Miller. Há uma certa ideia de vazio que não preenche este escritor solitário que percorre Paris ou Nova Iorque.

O escritor vive sempre simbolicamente na marginalidade que ele próprio assume. Quanto mais a mulher é descartável, mais o discurso porno figura, símbolo de desprendimento.

Em Dias Tranquilos em Clichy, acentua esse discurso:

“Meti um dedo dentro da sua cona para que ficasse bem molhada. Depois, puxando-a para cima de mim, enfiei-lhe o meu caralhocompletamente. Era uma daquelas conas que se ajustam como uma luva. As suas rápidas contrações musculares puseram-me logo a arfar (…)

Finalmente, com um gemido, ela caiu em cima de mim com todo o seu peso; rolámos e ela ficou de costas para baixo, puxei-lhe as pernas para cima sobre os meus ombros e penetrei-a violentamente” ( Miller, Dias Tranquilos em Clichy, Círculo de Leitores, 1989, pp. 17-18).

O discurso é violento e centrado no desejo masculino, como em qualquer trecho pornográfico. Misoginia subjacente.

“Arrastei-a para fora da cama e pu-la na posição exata para penetrar por trás. Ela passou a mão pelas virilhas e colocou o meu caralho dentro dela, ondulando as nádegas de modo convidativo enquanto o introduzia. Agarrei com firmeza, à volta da cintura, e penetrei-a até às entranhas (Miller, Dias Tranquilos em Clichy, op. cit., p. 21).

Em Passarinhos, de Anaïs Nin, com tradução de Luiza Neto Jorge (Passarinhos, Bertrand, 1981), a autora no prefácio refere o quanto lhe custou falar do mundo da prostituição. Foi em 1940 que a autora, por encomenda, escreveu contos eróticos.

“Iam andando e gostava de agarrar com a mão o pénis em ereção. Mas uma vez parou, pôs-se de joelhos e beijou-o. Ele dominava-a do cimo da sua altura, movendo a barriga um pouco para a frente. Doutra vez,mete-lhe opénis entre os seios como se fossem uma almofada e fê-lo deslizar ao de leve naquele sítio macio. Palpitantes tomados de vertigem por todas aquelas carícias caminhavam como ébrios pela areia fora” (Anaïs Nin, Passarinhos, Bertrand 191 p. 23).

A obscenidade do erotismo é o lugar do masculino enquanto figura primordial.

“as mulheres desavergonhadamente sexuais, as que têm o sexo estampado na cara, as que despertam logo no homem o desejo de lhes enfiar o pénis por ali dentro; as mulheres para quem a roupa é só um meio de tornar mais proeminentes certas partes do corpo, como as mulheres que usam enchumaços para tornarem os rabos maiores e as que usam corpetes para os seios sobressaírem mais nos decotes; as mulheres que nos atiram o sexo à cara, desde os cabelos aos olhos, ao nariz, à boca, a todo o corpo – é uma dessas mulheres que eu gosto” ( Anaïs Nin (op. cit, p. 104).

Susan Sontag, em Imaginação Pornográfica (1969), considera estas passagens como obscenas, sendo que a obscenidade é deferente da pornografia. Miller e Anaïs rompem com o discurso assertivo e moralista e referem-se de uma maneira explícita à sexualidade.

Na obra O Discurso Pornográfico, de Maingueneau(2010), diz-se que os próprios anos 50 trazem influências diferenciadas de um mundo mais transgressor. A autobiografia pretende unir o autor com o narrador e a personagem.

O próprio paradigma da obscenidade emerge numa rutura com o institucional. A Geração Beat emerge.

Miller e Anais: um diálogo entre o erótico e o obsceno.

 

Fotografia de Cecília Barreir

Cecília Barreira leciona Cultura Portuguesa na FCSH/UNL. É autora de muitos livros de poesia e ensaio. Colabora em várias revistas, entre elas a Incomunidade.

 

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