Quando a Ciência precedeu a Ética – histórias de experiências em humanos – parte III
Já terão de certo ouvido a alegação de que os video jogos, bem como a violência em geral que é transmitida em inúmeros programas televisivos pode ter um impacto negativo no desenvolvimento das crianças. Em particular, poderá torná-las mais propensas a comportamentos violentos. Será que esta alegação tem alguma base científica? De que forma é que a poderíamos testar?
Depois da história de Mary Rafferty (ver InComunidade, ed. 99) e da Experiência com o Pequeno Albert (ver InComunidade, ed. 101), vou-vos agora falar das famosas experiências de Albert Bandura com crianças e o boneco Bobo.
No início da década de 1960, Albert Bandura propôs-se a estudar uma questão semelhante à de cima: será que comportamentos violentos podem ser adquiridos através de observação e imitação? Ou melhor, será que uma criança se comporta de forma mais violenta se exposta a comportamentos violentos?
Na sua primeira experiência de 1961, Bandura recrutou 72 crianças, 36 rapazes e 36 raparigas, com idades entre 3 e 6 anos. Reconhecendo que as crianças poderiam ter já de início uma tendência diferente a comportarem-se de forma violenta, Bandura e os seus colaboradores estudaram primeiramente os comportamentos das crianças no infantário e classificaram os seus comportamentos (natos ou adquiridos) em termos de agressividade.
Seguidamente, as crianças foram divididas em três grupos, cada qual com 24 crianças, 12 rapazes e 12 raparigas. Estes grupos foram formados de forma a que o tal nível de agressividade pré-observado fosse em geral mais ou menos o mesmo em cada um dos três grupos. A divisão estratificada serviu para criar três grupos semelhantes de crianças.
Definiu-se então que o primeiro grupo ia ser exposto a comportamentos violentos; o segundo grupo ia ser exposto a comportamentos sem violência; e o terceiro grupo não ia ser exposto a qualquer comportamento. A ideia era comparar a resposta comportamental de cada um dos grupos de forma a compreender se a exposição à violência fazia alguma diferença no comportamento dos miúdos expostos relativamente àqueles que não tinham sido expostos.
Em que consistia a “exposição a comportamentos violentos”?
Cada criança, individualmente, entrou numa sala onde observaram um adulto a ofender verbalmente e fisicamente um boneco Bobo. O boneco insuflável Bobo media cerca de um metro de altura e tinha uma massa considerável na sua parte inferior, o que fazia com que o seu centro de massa fosse relativamente baixo. Isto fazia com que ele se equilibrasse muito bem em pé e fosse basicamente impossível derrubá-lo.
Durante um período de cerca de 10 minutos, cada criança do primeiro grupo viu um adulto a agredir o boneco (desde socos e pontapés, até ao uso de martelos contra o pobre boneco).
O segundo grupo observou um adulto a comportar-se de forma “inofensiva”, sem prestar particular atenção ao boneco.
O terceiro grupo não foi exposto a qualquer adulto.
Nos primeiros dois grupos de 24 crianças houve ainda uma subdivisão: 12 crianças em cada grupo (6 rapazes e 6 raparigas) observaram o comportamento num adulto do sexo masculino, enquanto que as outras 12 crianças do grupo observaram o comportamento num adulto do sexo feminino.
Feita esta primeira parte, todas as crianças (de todos os grupos) foram levadas para uma sala com brinquedos ao seu gosto. Mas mal começaram a brincar foi-lhes dito que estes eram os melhores brinquedos disponíveis e que por isso não podiam brincar com eles, pois deveriam ser destinados a outras crianças. Dito isto, levaram as crianças para uma outra sala. O objectivo deste interregno tinha sido irritar as crianças, de forma a suscitar algum tipo de reacção na sala seguinte.
Esta terceira sala tinha tanto brinquedos “normais”, como lápis de cera e ursos de peluche, como também brinquedos potencialmente violentos, como um bastão e uma pistola de dardos. E, claro, o boneco Bobo também lá estava. Cada uma das crianças foi deixada na sala durante 20 minutos e foi observada através de um espelho reflector (de forma a que a criança não soubesse que estava a ser observada).
Quais os resultados? Podem ver as filmagens feitas na altura:
Como seria de esperar, os miúdos que observaram a violência do adulto no boneco Bobo demonstraram uma propensão muito superior à dos outros dois grupos a comportarem-se de forma violenta, em particular, imitando o adulto nas agressões físicas e verbais contra o Bobo. Não só imitaram, como também usaram por vezes tipos de agressão que não houveram observado.
Os rapazes tiveram uma maior propensão a imitar adultos do mesmo sexo (homens), do que a imitar os adultos do sexo oposto (mulheres). O mesmo não aconteceu com as raparigas: raparigas que viram um homem a agredir o Bobo tiveram uma maior propensão a imitar as agressões físicas deste, enquanto que as raparigas que observaram uma mulher a agredir o Bobo tiveram uma maior propensão a imitar as agressões verbais desta.
Em geral, os rapazes tiveram comportamentos de maior violência física que as raparigas, mas quase nenhuma diferença em termos de violência verbal.
A conclusão genérica parece evidente: as crianças podem comportar-se de forma violenta através de um processo de aprendizagem por imitação. Os resultados parecem fidedignos pois foram usados grupos de controlo para comparar o comportamento das crianças e os grupos de crianças eram de facto comparáveis entre si (idade, sexo e comportamento “nato” foram tidos em conta). Além disto, os resultados foram replicados usando um paradigma experimental semelhante: em 1963, Bandura expôs crianças não aos adultos “ao vivo”, mas a videos com os adultos a comportarem-se de forma violenta. De novo os resultados foram semelhantes. Note-se que na altura haviam psicólogos que defendiam que observar comportamentos violentos poderia conduzir a um diminuir da vontade de agir de forma violenta. Como se observar fosse uma forma de consumir e dissipar uma necessidade biológica de sermos violentos (ainda hoje há quem o defenda). Como Bandura refere no video, estas experiências constituem uma forte evidência contra essa hipótese.
Não obstante, deve-se também reconhecer as limitações do estudo, em particular caso se queira extrapolar conclusões sobre os processos através dos quais os filhos podem imitar comportamentos violentos dos pais. Esta experiência dificilmente nos diz algo sobre isso visto que as crianças não conheciam os adultos em causa e não tiveram qualquer interacção com estes. Também é importante reconhecer que todas as crianças foram recrutadas de um infantário da Universidade Stanford, o que implica que não era um grupo representativo da população em geral. Por outro lado, o estudo foi demasiado curto para compreender se haveria efeitos a longo prazo. Por exemplo, poder-se-ia verificar se as crianças se comportariam da mesma forma daí a uma semana ou um mês…
E é precisamente neste ponto que reside a falta de ética deste estudo: as crianças em causa podem ter sido treinadas a tornar-se mais violentas. É improvável, mas é possível. Não é uma experiência tão anti-ética quanto as que descrevi na primeira e segunda partes, mas parece pelo menos moralmente errado irritar crianças e mostrar-lhes como ser violentas. Por outro lado, poder-se-ia argumentar que as crianças serão quase de certeza sujeitas a este tipo de experiência no seu dia-a-dia, ainda que não de forma intencional.
Para concluir, refiro ainda que em 1965, Bandura e os seus colegas mostraram também que o comportamento das crianças pode ser afectado pelas consequências que as mesmas observem nos adultos. Nestas experiências, um subgrupo de crianças observou adultos a serem congratulados pelo seu comportamento violento, enquanto que um outro subgrupo de crianças observou os adultos a serem punidos pelo comportamento. Como seria de esperar, as crianças que observaram as consequências negativas tiveram uma propensão muito menor de imitar os adultos.
Na quarta parte irei falar das famosas experiências de Milgram com electrocussão.
Bibliografia:
McLeod, S. A. (2014, Feb 05). Bobo doll experiment. Simply Psychology. https://www.simplypsychology.org/bobo-doll.html
Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro.