Política

Portugal na era do Fascismo (II) | Carlos Martins

O ESTADO NOVO

 

Se na última parte deste ensaio nos debruçámos sobre o movimento Nacional-Sindicalista de Rolão Preto, chegou agora o momento de nos focarmos com mais atenção no regime que ficou conhecido pelo nome de “Estado Novo” e que oficialmente durou entre os anos de 1933 e 1974 (ainda que a ditadura militar que o precedeu tenha tido início em 1926). Uma vez que a caraterização dos regimes da época é menos consensual entre os especialistas, desta vez não começaremos pela apresentação das caraterísticas de um fenómeno mais alargado, como fizemos com a definição de fascismo antes de descrevermos o movimento de Rolão Preto. Ao invés, e sempre mantendo em mente que um regime é particularmente complexo de analisar (incluindo em si diferentes alas ideológicas e passando por diversas fases ao longo da sua evolução), procuraremos resumir as principais componentes do pensamento do homem que liderou o Estado Novo durante a maior parte da sua existência: António de Oliveira Salazar. Talvez o local mais eficaz para realizar essa tarefa seja a de prestar atenção ao discurso pronunciado pelo ditador português a 30 de Julho de 1930, no qual foram apresentados os fundamentos daquele que seria o partido único da ditadura: a União Nacional. 

 

Neste discurso, Salazar manifesta-se contra os excessos do “individualismo, do socialismo e do parlamentarismo” (manifestando a sua oposição à democracia liberal e às ideologias da esquerda socialista) que trouxeram a desordem a diversos países europeus, ao mesmo que se demarca dos fenómenos do nacionalismo e do anti-individualismo “arrastados para extremismos doutrinários” (uma referência a fenómenos como o do fascismo). Para encontrar uma solução que resolvesse os problemas nacionais, e que servisse de alternativa às principais correntes políticas às quais o futuro ditador se opunha, importava “preparar as modalidades de vida pública pelas quais possam coexistir em paz e tranquilidade todos os elementos políticos e sociais”. A visão política de Salazar exposta neste discurso é fortemente anti-liberal e anti-socialista, e gira em torno de conceitos centrais como Nação, Estado e Ordem (este último remete para um princípio que preocupou o líder português ao longo de toda a sua vida). Afirmando acreditar na “existência independente da Nação Portuguesa” com o seu património histórico e a sua pretensa missão imperial, Salazar pretende também reforçar o poder do Estado (mais precisamente do poder executivo), que estenderá o “manto da sua unidade, do seu espírito de coordenação e da sua força”, e poderá criar uma sociedade onde reine a harmonia, a disciplina e se resolvam as questões sociais que originam conflitos internos. Apesar disso, refere também que “deve o estado ser tão forte que não precise de ser violento”. 

 

Com base nos princípios expostos neste discurso, Salazar aproveitou a oportunidade que lhe foi concedida em 1932 (ao tornar-se presidente do conselho de ministros) para reformular à sua medida a ditadura militar então existente. O novo regime que oficialmente surgiu em 1933 possuía, assim, uma visão corporativa da nação, destinada a criar a “unidade” e a “harmonia”, ao mesmo tempo que rejeitava formas radicais de mobilizações das massas, o culto explicito da violência, bem como a apologia do “homem novo” heroico que “vive perigosamente” (componente central do regime de Mussolini). Tal não impedia que o Estado Novo adotasse uma linguagem claramente influenciada pelo fascismo (ao falar de “revolução” ou de “novas elites”), ou que algumas das suas alas estivessem mais próximos do exemplo italiano, sobretudo as que, vindo do movimento de Rolão Preto, se integraram no regime. O início da Guerra Civil espanhola criou um ambiente em que a aproximação ao fascismo se tornou mais evidente, com a criação da Mocidade Portuguesa e da Legião Portuguesa (ainda que o radicalismo desta última tenha sempre sido controlado pelo governo).      

 

REFLEXÃO FINAL SOBRE PORTUGAL NA ERA DO FASCISMO 

 

Resumidas as principais caraterísticas do movimento de Rolão Preto e do regime salazarista, importa que se faça uma reflexão sobre a forma como cada um destes fenómenos se insere no universo do fascismo e da direita anti-democrática do entre-guerras. No que toca ao Nacional-Sindicalismo a questão parecer ser mais simples, uma vez que, com as devidas exceções, não despertará grande controvérsia entre os especialistas a afirmação de que Rolão Preto e os seus camisas azuis representam o exemplo mais acabado de fascismo português. Este movimento assemelhou-se, assim, ao de Benito Mussolini em Itália (e a muitos outros que surgiram noutros países), partilhando com ele as caraterísticas de organização e estilo, bem como as componentes fundamentais do conteúdo ideológico. Recuperando a definição de fascismo que apresentámos na primeira parte deste texto, o Nacional-Sindicalismo foi, assim, um movimento nacionalista, cujo programa procurava o reforço dos poderes do estado, criando uma síntese nacional e realizando aquilo que se pretendia ser uma revolução, ao mesmo tempo que almejava respeitar a autoridade das novas elites e não rejeitava a utilização da violência. Algumas afirmações de Rolão Preto então proferidas, segundo as quais o próprio rejeitava o Fascismo italiano e o Nazismo, ao mesmo tempo que alegava respeitar os direitos da “pessoa humana”, não são suficientes para alterar a nossa conclusão. A demarcação dos fenómenos estrangeiros facilmente se pode explicar pelo desejo de apresentar o seu movimento como original e puramente nacional, ao passo que o discurso sobre a “pessoa humana” não está ausente de movimentos fascistas de outros países (incluindo a Falange espanhola e o Fascismo italiano).

 

Já no que diz respeito à inserção do regime nos fenómenos da sua época, uma análise cuidada levará, acima de tudo (e independentemente das conclusões que retirarmos) à constatação de que, ao contrário do que tantas vezes se refere, o Estado Novo não representou um caso único ou “excecional”. Trata-se de um regime que uma grande parte da historiografia internacional prefere chamar de “conservador” ao invés de fascista, uma vez que sempre rejeitou as formas mais radicais de mobilização de massas como forma de legitimidade política e que dispensou o objetivo de criar uma “nova elite” heroica que cultivasse os feitos violentos (uma das componentes essenciais do fascismo). Tal não significa que o Estado Novo não usasse métodos violentos contra os seus opositores (como é sabido, fê-lo), mas simplesmente que o funcionamento e evolução da ditadura portuguesa se diferenciam, por exemplo, da de Mussolini. Ainda assim, o objetivo de criar uma “unidade nacional” através de um sistema corporativo certamente aproximava o regime Salazarista do Fascismo italiano, ao mesmo tempo que as influências fascistas no discurso e ideologia dos seus líderes se tornavam evidentes em alguns momentos (por exemplo, na referência à “revolução”), mesmo antes da criação da Legião Portuguesa. Em suma, fará mais sentido situar a ditadura de Salazar algures na interseção entre o conservadorismo e o fascismo (ainda que a primeira ideologia fosse a mais importante), um “conservadorismo fascizante” que conheceu inúmeras manifestações em diversos países europeus, como na França de Vichy, na Roménia do rei Carlos II e na ditadura austríaca de Dollfuss, um estado corporativo e clerical que terá sido o que mais se aproximou do caso português (demonstrando, assim, que faz pouco sentido olhar para o Estado Novo como excecional).

 

OBRAS CONSULTADAS: 

 

António Costa Pinto, Os Camisas Azuis e Salazar (Lisboa: 2018).

 

António Costa Pinto, O Estado Novo de Salazar: uma terceira via na era do fascismo (Lisboa: 2022). 

 

António de Oliveira Salazar, Discursos e Notas Políticas 1928 a 1966 (Coimbra: 2015). 

 

Luís Reis Torgal, ed., Estados Novos, Estado Novo (Coimbra: 2009).

 

Stanley Payne, A History of Fascism 1914-1945 (Madison: 1995).

 

Fotografia de Carlos Martins

 

Carlos Martins é doutorado em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e investiga sobretudo a história do fascismo e outras ideologias de extrema-direita. É autor do livro From Hitler to Codreanu: The Ideology of Fascist Leaders e, mais recentemente, Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini. 




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