Cultura

Nani e a cidade | Alexandre Brandão

Tão logo se desmontaram, e ele, ainda um pouco ofegante, disse que a amava, Nani fechou os olhos e sentiu — e era como se pudesse ver além de sentir — o resto de gozo percorrer partes do corpo não associadas ao sexo. A batata das pernas tremia, os ombros movimentavam-se autonomamente, o lóbulo das orelhas esquentava e esfriava com suavidade, o dedão do pé esquerdo pulsava. 

 

Levantou-se, vestiu a saia comprida e verde, a bata creme, calçou as sandálias rasteiras, penteou o cabelo e o prendeu em uma travessa, espalhou um pouco do batom discreto e, porque não conseguiria ficar, saiu.

 

Tomou o metrô de Botafogo. 

 

Queria ir à Tijuca, bairro de seus avós e associado à sua infância. Planejou andar pelos arredores da Saenz Peña, procurar saber se ainda existiam aquela sorveteria, aquela doceria, o café. Checaria se o avô por acaso não jogava numa das mesas de dama; quem sabe sua morte não passara de um golpe, um jeito de ele voltar ao bairro que amava para, sem ter de dar explicações a ninguém, gastar o tempo com os amigos. 

 

Entrou no trem errado, no que ia à Pavuna, e só se deu pelo engano quando se distanciara muito do centro e a operação de baldeação seria trabalhosa. Iria então até o fim. Pavuna. O que haveria lá? Milicianos? Traficantes? Gente pobre e cordata? Rodas de samba em todo canto? Churrasquinho de rua? Em não sabendo de nada a respeito da Pavuna, conjecturava a partir das notícias mal ouvidas nos telejornais. Bateu pernas pelas ruas ao redor da estação, não podia ir longe, perder-se. Olhava tudo com enorme curiosidade. A cidade ali era menos cuidada ou mesmo abandonada. Pelo celular soube que depois da Pavuna já era outro município, São João do Meriti. Nunca fora tão longe. Uma mulher passou ao seu lado falando alto, ria de uma bobagem que ouvia ao celular para, em seguida, prometer que a noite os dois, as duas?, se entenderiam daquele jeito que sabiam se entender. Com discrição, Nani escrutinou a mulher absolutamente comum, sem nada de especial, mas cujas passadas eram tão seguras, convictas, que Nani teve vontade de conversar com ela. Faltou-lhe coragem.

 

Entrou numa padaria. Pediu uma garrafa d’água e, atraída pela vitrine, um salgado que lhe pareceu apetitoso, e que, sim, de fato era. Pastel Chinês, é? É, é esse o nome. Na Pavuna as coisas se mostravam simples, embora fosse um lugar quente, muito quente. O corpo, o abençoado corpo que não fazia muito tempo despejara descargas elétricas de prazer, o corpo satisfeito que de certo modo a levara até ali, naquele instante se retraía, seco, duro e quente. Teve medo. Os milicianos. Os traficantes. Perguntou à atendente se ela tinha medo. Que espécie de medo?, eram tantos. Nani não soube responder. Não soube de pronto, na realidade. Depois explicou-se: falava de assaltos, da guerra do tráfico, dos milicianos. A moça riu e disse que Nani andava vendo muita televisão. De todo jeito, acrescentou, gente preta tem medo mesmo é da polícia. Mas, olha, no subúrbio, se cultivassem muito esses medos, não viveriam. Ela tinha medo de barata; disso sim, morria de medo.

 

Nani quis tomar as mãos da moça, lhe dizer alguma palavra… Que espécie de palavra? Não fez uma coisa nem outra. Não havia nada mais aterrorizante que baratas, concordou a meia voz. E ratos, acrescentou. Rato, a moça repetiu e emendou: deles não tenho medo, porque são grandes, fáceis de matar. Fáceis de matar? Nani nunca pensara nisso.

 

Pagou a conta e, antes de sair, quis saber se seria perigoso tomar um táxi. O que não é perigoso?, ouviu da moça. De fato, o que não era? 

 

Entrou no táxi e não disse seu destino. O carro ficou parado até o motorista, sem demonstrar impaciência, mas precisando da informação, perguntar aonde iriam. Nani não sabia. Achava uma boa ideia ir à Barra? O senhor não respondeu, simplesmente colocou o carro em movimento. Ele iria levá-la à Barra, ela supôs e torceu.

 

O carro passava por lugares que pareciam a Nani inóspitos e acolhedores, feios e atraentes. Onde estamos? Passamos por Coelho Neto. Entramos em Irajá. Chegamos a Inhauma. Essa avenida grande, qual é? Linha Amarela, moça, Linha Amarela. Tem um pedágio. Sim, tem, nunca ouviu falar? Ouvi? Nunca passou por aqui? Passei? Agora, moça, estamos na Barra, viemos rápidos, quarenta minutos. Vai descer em que lugar? Perto daquele shopping grande. Perto? No shopping? O shopping é aquele? Sim. Então desço aqui.

 

Conhecia a Barra, quer dizer, já estivera ali inúmeras vezes, mas sempre com alguém e sem precisar prestar atenção nas ruas, em nada. Para alcançar o shopping deveria atravessar a avenida movimentada; bastava isso. O sol estava forte e mais impiedoso do que na Pavuna, terra de um ótimo pastel chinês, talvez o melhor. Seria uma invenção de lá? Da moça destemida? Não importava. Talvez porque andasse lentamente, no tempo em que o sinal esteve aberto, conseguiu atravessar apenas meia avenida, ficando retida no canteiro central. Ao lado espalhava-se um grupo de meninos, meninas e adolescentes, todos com as mãos ocupadas; balas, garrafas com um líquido azulado dentro, isopores; suas mercadorias, Nani deduziu. Um senhor mais velho, sentado um pouco longe do grupo, segurava uma placa com o anúncio de um lançamento imobiliário. Quando o sinal se abriu aos pedestres, aquele grupo todo invadiu a avenida e se dirigiu aos carros oferecendo os produtos. Nani ficou encantada, mais que encantada, paralisada. Perdeu o tempo do sinal. Na volta daquele grupo ao canteiro, ela puxou assunto com uma garota que deveria ter uns quinze anos. Estava sempre ali, não estudava? A menina mexeu os ombros, dando-lhe uma resposta incerta, nem sim nem não. Nani quis insistir, mas a menina tomou-lhe a palavra e ofereceu-lhe um saco de bala, que estava mais barato que nas Lojas Americanas. Nani comprou três e deu dinheiro a mais. Não queria o troco. A menina baixou os olhos e, ao se mover na direção do grupo, respondeu sobre os estudos, tinha um filho, precisava bancar a comida dele. Apontou para um menino de dois ou três anos espremido num carrinho velho. Por sorte, o sinal de pedestres se abriu e Nani atravessou correndo a avenida. Entrou correndo no shopping e, ainda correndo, procurou o banheiro. Sofria de urgências. Sabia que não suportaria não chorar e não queria chorar no meio de tanta gente, na porta das lojas. No banheiro, ao se ver no espelho, acalmou-se. Retocou a maquiagem, ou por outra, não pôde fazê-lo, estava suada, a pele oleosa. Lavou o rosto, molhou a nuca, ajeitou a travessa. Encarou-se e quase deixou escapulir o que passava em seu pensamento: ora essa, então quer dizer que você conheceu a Pavuna! Conhecera a Pavuna, transitara por Coelho Neto, Irajá, Inhauma e, via Linha Amarela, por outros bairros. Lá moravam os traficantes? Os milicianos? Aquela mulher de andar seguro, a atendente que enfrentava ratos? A mãe de quinze anos? A menina de quinze anos com seu menino de dois. Ao se dar conta de que as balas compradas da menina estavam na bolsa, a lágrima retida ou esquecida esguichou de seus olhos. Nani nem tentou disfarçar. Uma senhora ofereceu-lhe ajuda. Ela agradeceu, que não se preocupasse, ao contrário do que parecia, aquele era o dia mais feliz de sua vida. Seu homem, Nani disse, a amava. A senhora sorriu. Sei bem o que é isso. 

 

Nani andou pelos corredores do shopping. Tomou um sorvete. Entrou nas Lojas Americanas a fim de conferir o preço da bala, mas não havia daquela nas gôndolas. Certa vez um professor lhe dissera que quando não existe o produto à venda, o preço dele é infinito. A menina de quinze anos, mãe do menininho que mal cabia no carrinho que mal se mantinha sobre as rodas, não mentira. Não sabia se sentia esperança pelo fato de a menina não ter mentido ou se perdia de vez a esperança porque a menina precisava se virar para alimentar o filho e deixara a escola, perdera o futuro. Quem fora o homem da menina? Ele a amara? Ainda amava? É um daqueles, o que limpa os vidros dos carros? Melhor pensar no pastel chinês da Pavuna, na vendedora valente, na mulher de andar convicto, que, às gargalhadas, marcava um encontro amoroso, na senhora que lhe oferecera ajuda ainda agora. Havia mulheres amadas em todos os cantos da cidade. Nani era uma delas, a de Botafogo. 

 

Tomou um táxi e dessa vez foi taxativa: a deixasse no Leblon. Desceu na Bartolomeu Mitre. Poderia ter descido no Baixo, mas não o fez e agora ia para lá. Seus olhos estranhavam as ruas, as vitrines, as babás de uniforme, os adolescentes saindo aos gritos das escolas, o mendigo falando sozinho num dos bancos da rua, as duas amigas de papo na esquina, três meninos, à porta da farmácia, esmolando um pacote de fraldas, os bares com os primeiros clientes do happy hour. Estranho? O que havia de estranho? O Leblon não era a Pavuna, não era a Barra, pouco se parecia com Botafogo. Lugares diferentes, uma só pessoa. Ou nem isso. Àquela altura, depois de tudo, Nani era outra.

 

Que dia! 

 

Lembrou-se do momento da declaração de amor de seu homem. O som e a melodia que lhe saíram da boca eram doces e atingiram não só a audição de Nani, eles se espalharam pelo corpo, atiçaram o gozo que ainda reverberava. Ela sentiu, ela quase viu o percurso das palavras. Sua reação foi a de sair sem dizer adeus. Saiu porque era necessário e urgente. Explorando o Rio de Janeiro, onde nasceu, foi criada e, no entanto, pouco conhecia, ela se expandiria e, para ser amada, deveria ser não imensa, mas maior do que era. Parou diante de uma vitrine e, usando-a como espelho, passou um batom mais intenso nos lábios.

 

Talvez fosse a hora de voltar e dar-se ao amor. Mas, veja isso: a volta pela cidade lhe ampliara de tal modo que, agora, não era mais apenas uma questão de ser amada e aceitar ser amada. Era preciso amar igualmente. Amava seu homem?

 

O espelho da vitrine não soube responder. 

 

A prudência achou melhor Nani aconselhar-se com um chope no Jobi.

 

Fotografia de Alexandre Brandão

Alexandre Brandão, escritor brasileiro, lançou em 2022 “O sol pelo basculante” (Editora Urutau), seu segundo livro de poesias e que se soma a outros sete entre contos e crônicas. Em 2022 seu romance (inédito) “Zerinho ou um” ganhou o primeiro lugar no 1º. Prêmio Literário Flipoços|Kindle.





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