No início da minha vida criativa
eu amava a Humanidade.
Wislawa Szymborska
1.
Nada alivia o peso da tua alma
se as leis puras da natureza
cederem à fúria humana.
Assim a Terra: adormecida na sua existência
se a vida assume a fatalidade do caos.
Nada renasce para se tornar coisa pura.
Apenas a tua cabeça de luz se deslumbra
para além do pressentimento.
E sentes uma paixão limpa:
o risco da matéria em desordem.
Ou um esgotamento num estado de purificação.
2.
Procuras a serenidade no acto de pensar:
uma serenidade ávida incerta na cabeça.
Cenas urbanas que já não te pertencem:
correcções alucinatórias.
Vais buscar à mente o que da ausência
se criou na imperfeição.
Imagens que só sobrevivem
na lenta vigilância da tua memória.
Quando tudo o que pensas se acumula
nas margens do que escreves
e da lucidez desolada do chamamento
possas sentir a lâmina de uma palavra
luzindo do coração à alma.
Quem sabe se o tempo é uma história do pensamento.
3.
Pensar é deslocar os lugares da tua história.
E somente o recolhimento te ampara
nos profundos pensamentos destinados à eternidade.
Pela linguagem física de cada palavra
também a inconsciência assume
a sobrevivência da contemplação
onde numa linha de escrita pudesses criar
a arte mais absoluta da obscuridade.
E arquivas assim o que te ameaça:
memórias demolidas pela incerteza.
4.
Outros sentidos irrompem das trevas
onde a terra é um tesouro que se funde no caos.
É o teu lugar errante – um desvio traído e mortal.
Tivesse esse movimento uma memória
tão pura e límpida, renascente e lucilante
talvez imperecível fosse o fortúnio humano.
Assim também a vida injectada num dia inválido:
indecifrável e restrita na tua realidade.
5.
É na solidão que Deus repete o que é único
porque em ti mesmo a dimensão do espaço
é uma permanência em movimento.
Uma fabricação de lugares que são multiplicidades
de instantes – ausência transferida da existência.
Eis uma história das multidões:
querer viver uns nos outros como espelhos
incrustados numa alma universal.
6.
Tu podias construir uma paisagem:
já tão pouco tempo resta para decifrar
o assombroso terreno humano.
O lugar mais duro que suporta paredes musculares e nervos
se a demência atrai a tua força – o aço contorcendo-se
por dentro da cabeça enraizada de torções desenfreadas.
Como se fizesse medo uma ideia devolver a vida
aos sítios menos inspirados da terra.
Ou então uma paisagem indomável que entrasse pela tua casa.
Esta natureza furiosa que traz a ciência nas suas formas.
7.
Um pensamento recreativo: luz que se desvia da razão
como ciência impressiva e ainda de um saber ilegível
por tudo ser uma cilada desde o começo da linguagem.
Quantas civilizações têm eco no teu espírito
se nenhum sentido explícito revelar o princípio
de uma ausência de ti mesmo refugiado no eco todo
se é ainda a contemplação toda inferida
numa linguagem infusa.
Decifrações ao alcance da humanidade.
São estas as palavras mais puras, infiltradas na terra
quando alguém escreve depois da sua morte.
8.
Toda a sabedoria acumula-se nas margens do tempo.
Não podes dizer o que sabes: é pesado o saber.
E tu és fundo com tanto silêncio inundado na cabeça.
Somente o teu pensamento é respirável
e atento ao esgotamento.
Se ainda acreditares que o tempo
é uma fonte de instantes e inquietações
mais confidencial se tornará a purificação humana.
Mas se trabalhares os símbolos da tua loucura
tudo o que deixares escrito depois do mundo
há-de revelar um profundo amadurecimento.
9.
Do outro lado do que escreves
a vida é mais sucinta e amparada.
E então ordenas os dias como uma barreira
contra a inclemência da realidade.
Desejas permanecer anónimo e eterno:
uma fortaleza do ser – uma fronteira do irracional.
Esse júbilo deslumbrante que salva a arte da inconsciência.
Essa criação de resguardar a esperança.
10.
Iluminação última: de onde o tempo
na sua engenharia corrente anuncia
o recomeço do caos.
São as tuas memórias infiltradas nas trevas.
Ecos de uma indústria remota fecundando
os novos desenhadores de civilizações.
É outro sinal do tempo – migratório em sentido mental.
Impropriedade discursiva na reflexão humana.
Uma impotente viagem no seu acidente iluminado.
Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais. Vive em Faro.
Publicou, entre outros, Na Escrita e no Rosto (poesia) – Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura; Conversas Terminais (romance) – Bolsa de Criação Literária pelo Ministério da Cultura; Brutal (romance); O Carteiro de Fernando Pessoa (romance); A Caverna de Deus (romance) – Prémio Literário Cidade de Almada; Humanidade (poesia); Arte Humana (poesia); Coreografias da Linguagem (poesia); Fuga Intempestiva (poesia); Um Estudo do Humano (poesia); Um Homem Parado na Esquina do Mundo (romance) – Prémio Literário Alves Redol; A Força Única – Escrever (crónicas).