Poesia & Conto

Poemas | Fernando Esteves Pinto

Foto de Mo

No início da minha vida criativa 

eu amava a Humanidade. 

Wislawa Szymborska

 

1.

 

Nada alivia o peso da tua alma

se as leis puras da natureza 

cederem à fúria humana.

 

Assim a Terra: adormecida na sua existência

se a vida assume a fatalidade do caos.

 

Nada renasce para se tornar coisa pura.

Apenas a tua cabeça de luz se deslumbra

para além do pressentimento.

 

E sentes uma paixão limpa: 

o risco da matéria em desordem.

 

Ou um esgotamento num estado de purificação.

 

2.

 

Procuras a serenidade no acto de pensar:

uma serenidade ávida incerta na cabeça.

 

Cenas urbanas que já não te pertencem: 

correcções alucinatórias.

 

Vais buscar à mente o que da ausência 

se criou na imperfeição.

Imagens que só sobrevivem 

na lenta vigilância da tua memória. 

 

Quando tudo o que pensas se acumula 

nas margens do que escreves

e da lucidez desolada do chamamento 

possas sentir a lâmina de uma palavra

luzindo do coração à alma.

 

Quem sabe se o tempo é uma história do pensamento.

 

3.

 

Pensar é deslocar os lugares da tua história.

E somente o recolhimento te ampara 

nos profundos pensamentos destinados à eternidade.

 

Pela linguagem física de cada palavra

também a inconsciência assume 

a sobrevivência da contemplação

onde numa linha de escrita pudesses criar

a arte mais absoluta da obscuridade.

 

E arquivas assim o que te ameaça: 

memórias demolidas pela incerteza.  

 

4.

 

Outros sentidos irrompem das trevas

onde a terra é um tesouro que se funde no caos.

 

É o teu lugar errante – um desvio traído e mortal.

 

Tivesse esse movimento uma memória 

tão pura e límpida, renascente e lucilante

talvez imperecível fosse o fortúnio humano.

 

Assim também a vida injectada num dia inválido:

indecifrável e restrita na tua realidade.

 

5.

 

É na solidão que Deus repete o que é único

porque em ti mesmo a dimensão do espaço 

é uma permanência em movimento.

 

Uma fabricação de lugares que são multiplicidades 

de instantes – ausência transferida da existência.

 

Eis uma história das multidões:

querer viver uns nos outros como espelhos 

incrustados numa alma universal.

 

6.

 

Tu podias construir uma paisagem: 

já tão pouco tempo resta para decifrar 

o assombroso terreno humano.

 

O lugar mais duro que suporta paredes musculares e nervos

se a demência atrai a tua força – o aço contorcendo-se

por dentro da cabeça enraizada de torções desenfreadas.

 

Como se fizesse medo uma ideia devolver a vida 

aos sítios menos inspirados da terra.

 

Ou então uma paisagem indomável que entrasse pela tua casa.

 

Esta natureza furiosa que traz a ciência nas suas formas.

 

7.

 

Um pensamento recreativo: luz que se desvia da razão

como ciência impressiva e ainda de um saber ilegível

por tudo ser uma cilada desde o começo da linguagem.

 

Quantas civilizações têm eco no teu espírito

se nenhum sentido explícito revelar o princípio

de uma ausência de ti mesmo refugiado no eco todo

se é ainda a contemplação toda inferida 

numa linguagem infusa.

 

Decifrações ao alcance da humanidade.

 

São estas as palavras mais puras, infiltradas na terra

quando alguém escreve depois da sua morte.

 

8.

 

Toda a sabedoria acumula-se nas margens do tempo.

Não podes dizer o que sabes: é pesado o saber.

 

E tu és fundo com tanto silêncio inundado na cabeça.

Somente o teu pensamento é respirável

e atento ao esgotamento.

 

Se ainda acreditares que o tempo 

é uma fonte de instantes e inquietações

mais confidencial se tornará  a purificação humana.

 

Mas se trabalhares os símbolos da tua loucura

tudo o que deixares escrito depois do mundo

há-de revelar um profundo amadurecimento.

 

9.

 

Do outro lado do que escreves 

a vida é mais sucinta e amparada.                  

E então ordenas os dias como uma barreira

contra a inclemência da realidade.

 

Desejas permanecer anónimo e eterno: 

uma fortaleza do ser – uma fronteira do irracional.

 

Esse júbilo deslumbrante que salva a arte da inconsciência.

Essa criação de resguardar a esperança.

 

10.

 

Iluminação última: de onde o tempo

na sua engenharia corrente anuncia

o recomeço do caos.

 

São as tuas memórias infiltradas nas trevas.

Ecos de uma indústria remota fecundando

os novos desenhadores de civilizações.

 

É outro sinal do tempo – migratório em sentido mental.

Impropriedade discursiva na reflexão humana.

 

Uma impotente viagem no seu acidente iluminado.

 

 

Fotografia de Fernando Esteves Pinto

 

Fernando Esteves Pinto nasceu em Cascais. Vive em Faro.

Publicou, entre outros, Na Escrita e no Rosto (poesia) – Prémio Inasset Revelação de Poesia do Centro Nacional de Cultura; Conversas Terminais (romance) – Bolsa de Criação Literária pelo Ministério da Cultura; Brutal (romance); O Carteiro de Fernando Pessoa (romance); A Caverna de Deus (romance) – Prémio Literário Cidade de Almada; Humanidade (poesia); Arte Humana (poesia); Coreografias da Linguagem (poesia); Fuga Intempestiva (poesia); Um Estudo do Humano (poesia); Um Homem Parado na Esquina do Mundo (romance) – Prémio Literário Alves Redol; A Força Única – Escrever (crónicas).


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