Cultura

Uma cosmovisão poética | Ronaldo Cagiano

Foto de Anton Maksimov 5642.su

 

Seccionado em quatro campos semânticos, “Fotografia de um minério” (Ed. Folheando, Belém, 2022), de Luciano Lanzillotti, rastreia, como sugere o próprio título, a mineralidade existencial, a partir de uma concepção metafórica sobre a condição humana. A partir de um olhar sobre os matizes e formas que compõem a realidade e seu entorno, como também abrindo-se a uma imersão no intangível ou no que está submerso no aluviões do inconsciente, o autor desvela as esfinges que espelham nossas dúvidas.

 

          As lentes do poeta fotografam os dilemas, tumultos, dicotomias e tensões do ser num mundo calcificado por um rol de demandas, sondam as monolíticas faces de uma experiência existencial que se constrói a partir de muitos passivos. No conjunto de poemas enfeixados em Jásper: esfinges, moradas, estilhaços;  Opala: cidades, manadas, máquinas; Quartzo: amores, despedidas, relógios; Turmalina: construções, plantas, livros, Lanzillotti disseca os escombros da caminhada, a solidão e a insularidade do rebanho humano nessa época de coisificação e etiqueta. Tudo amalgamado num simbólico enquadramento que se nomeia sob uma relação metafórica com quatro pedras angulares e de valor transcendental.

 

              O poeta vasculha os ermos das impurezas do homem, essa pedra bruta com seus palimpsestos em eterna oficina de lapidação, como ao constatar, em clave de inquirição, em Tecido mole: “Porque será mais fácil adentrar/ as profundezas da Terra e do mar/ o que se achegar ao outro?/ São muitas as camadas/ que compõem um corpo:/ armadura complexa e feita/ de um tecido mole/ mas quase impenetrável.”

 

               Em todo o livro o trabalho centra-se numa cosmovisão, na medida em que a frontalidade de cada poema visita instâncias íntimas ou percorre territórios e geografias humanas, sociais e políticas, mergulha na memória, transita pelos afetos, discorre sobre esses tempos de escuridão e barbárie, especula sobre nossas dores & delícias ou indaga sobre a certeza da finitude na corrosão dos ponteiros: “Quem conseguirá/ domar a soda cáustica/ do tempo?” No labirinto dos questionamentos que se sucedem, essa safra poética atinge um expressivo grau de reflexão, numa leitura profunda que desvela uma panóplia de inquietações. E à moda de Drummond, o poeta também perdeu o bonde e a esperança, mas não se dá por vencido, oferecendo seu contraponto, seguindo-os “pelos trilhos./ Pé ante pé/ cabeça baixa/ mas que/ certas vezes/ se levanta/ e observa o estranho margear.” 

 

            Eis uma poesia cujo ceticismo também se contamina de um certo niilismo ao registrar os infortúnios de um tempo acossado por injustiças sociais, como se colhe de Lições da contracorrente e suas ressonâncias intertextuais: “Caminho ao lado/ de pessoas com fome/ sem casa ou título. / Lutam/ pelo pão de cada dia/ pelo remédio caro da farmácia/ por um lugar no chão./ Nada sabem sobre ti, Walt Whitman./ Nem de tuas armas e escravos, Arthur Rimbaud./ E atravessam a rua como se houvesse/ algum tesouro/ ali na esquina.” No mesmo diapasão enuncia o poema “Quando foi?” (Enquanto o ônibus se movimenta/ sinto-me como passageiro/ de futuro inerte/ desamparado/ tímido./ Passo e vou lendo Alberto Caeiro/ que transita entre outeiros/ fora das cidades. (…) O que se assemelha à visão do inferno de Dante/ é apenas mais um dia/ no Rio de Janeiro/ e ao desembarcar/ carrrego insistente pergunta:/ quando foi/ que nos tornaram isso?), que reflete sobre o nosso desassossego, na mesma linhagem  de Banco, que desfere: “A saúde/ a vida/ e os sonhos devassados/ mas a poesia/ íntegra e a plenos pulmões.”

 

             Luciano Lanzillotti que em sua estreia poética com “Geometria do acaso” (Ed. Dialética, 2021) já prenunciava uma escritura segura e versátil, numa perspectiva de permanente burilamento do diamante multifacetado da linguagem, obra que consolida sua oficina criativa e aprofunda sua preocupação com as questões que nos afetam num cenário regido pela distopia e convulsões, pois a poesia é sua fartura de luz para brigar nas trevas dessa Insuportável vida, em que “Uma fruta/ apodrece/ caída/ embaixo da mesa./ Revela-se/ tão somente/ quando cor e cheiro/ evocam/ o insuportável/ da vida.”

 

             Vamos encontrar na cartografia poética de Lanzillotti um sentido que corrobora a mesma noção defendida por Nuno Júdice em seu ensaio “As regras da poesia”, para quem “a poesia nasce de uma desilusão primitiva com o mundo, de que a rejeição da palavra como objeto-do-mundo é o passo decisivo. Aquilo a que aspira o poema é a nomeação desse outro mundo para além da esfera real, que só pode ser trazido à consciência através da palavra poética, mas que logo a transcende e a transfigura no processo de sua atualização.”  E se “do assombro nasce a poesia”, como asseverou Cabrera Infante, é essa a inflexão dialética que inspira o poeta no seu polissêmico exercício. 

           

 

Ronaldo Cagiano

 

Fotografia de Luciano Lanzillotti

 

Fotografia de Ronaldo Cagiano

 

Ronaldo Cagiano: escritor brasileiro radicado em Portugal, é autor, dentre outros, de “Dicionário de pequenas solidões” (contos, 2007), “O sol nas feridas” (poesia, 2013, finalista do Prémio Portugal Telecom), “Todos os desertos: e depois?” (contos, 2018),  “Cartografia do abismo” (poesia, 2020) , “Arsenal de vertigens” (poesia, 2022) e .  “Eles não moram mais aqui” (contos, Prêmio Jabuti 2016).



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