Basta ler Apocalipse para perceber o quanto os estratos de diversos tempos históricos podem agenciar-se e, ao reativar antigos estratos, criar-se outro ainda mais potente.
Curiosamente, o derradeiro livro do Novo Testamento é o livro dos olhos do paganismo. João não tem um olho visionário próprio, pois as visões que ele tem a partir de Patmos são emprestadas de figuras de seus antigos rivais religiosos (pagãos).
O Apocalipse subtrai ou une os efeitos do estrato, pagão, judeu e cristão. Tanta preocupação com os deuses pagãos não impede que eles se infiltrem nas visões do Apocalipse: os dragões, a besta que sai do mar e da terra, as mulheres (a prostituta e a noiva imaculada) adornadas, são todas figuras pagãs. “Quando os profetas precisavam de visões, eram obrigados a ter visões caldeias ou assírias. Tomavam de empréstimo outros deuses para perceber o próprio Deus invisível.”
Há uma grande semelhança entre a Jezabel que enfrenta o profeta Elias no Monte Carmelo e a grande prostituta que representa Babilônia no Apocalipse. Deleuze vê, através de Lawrence, o efeito do espetáculo no célebre Capítulo XII de Apocalipse: há uma sedimentação pagã por todos os lados. “O mito pagão de um nascimento divino, com a Mãe astral e o grande dragão vermelho, vem preencher o vazio do nascimento de Cristo.”
O Deus judeu do Antigo Testamento era visto por seus adoradores com os olhos dos vizinhos e inimigos declarados: caldeus, assírios, babilônios, filisteus, amorreus etc. É o caso de Ezequiel na visão das rodas: “Ezequiel tem necessidade das rodas furadas de Anaximandro”.
O texto de João de Patmos descreve a Nova Cidade, a Santa Cidade, a Nova Jerusalém, que, com seus muros de quatro lados, representaria o próprio zodíaco. A Arca do concerto, com sua descrição detalhada no livro de Êxodo, contém os símbolos do zodíaco por inteiro. De maneira que é com os profetas do Antigo Concerto – segundo Deleuze –, sobretudo no Apocalipse, que os símbolos pagãos atingem maior visibilidade.
A vingança que se espera no Apocalipse marca o homem do ressentimento. Esse é o estrato judaico. Os inimigos do “povo escolhido” têm de pagar não apenas com a morte, mas com o sofrimento. Dando um passo adiante, vê-se o estrato cristão. A vingança é universal; é o próprio sistema de julgamento que entra em ação no Apocalipse. O povo escolhido não é mais o “puro sangue” judeu, mas, com São Paulo, a graça foi estendida aos gentios de todo o mundo: “Aquele que crê e for batizado será salvo”. Desse modo, o livro é sedimentado e estratificado em três estratos.
Segundo Deleuze, “‘esses ‘fracos’, esses homens de ressentimento, que esperam sua vingança, gozam de uma dureza que converteram em seu proveito, em sua própria glória, mas que lhe vem de outra parte”. A vingança deveria ser contra os romanos, mas o Apocalipse invade o céu. As conexões com os estratos referidos, conexões vivas com os símbolos cósmicos, permitem a maximização de abrangência universal.
Os judeus haviam estabelecido essa conexão a partir do que permaneceu neles de egípcio (foram 430 anos como escravos no Egito) e transformaram tudo na relação com o Deus único do povo eleito; “os judeus e os cristãos substituirão os símbolos pelas alegorias. Este mundo pagão, que permanece vivo apesar de tudo, que continua vivendo poderosamente no fundo de nós”.
João revive tudo no Apocalipse, mas o faz como um meio de alcançar a dupla vingança: desfigurar os símbolos, dando-lhes nova versão, e anunciar a vingança contra o mundo que desdenhou do convite à salvação. Os símbolos falavam dos começos, do princípio do mundo ou dos mundos. O Apocalipse nos fala do fim do mundo e do recomeço de um único mundo. Há uma vontade de destruição no Apocalipse, à qual João chama de Justiça e Santidade. É a paranoia da fundação de um “Estado mundial” em evidência.
A aparente ingenuidade desse homem simples (João), em sua visão do mundo, esconde “os germes de um Estado mundial; a destruição de um mundo habitável (…); a caça ao inimigo ‘qualquer”. Destruir qualquer inimigo que não está sob os mandamentos de Deus.
O programa de João inclui as marcas, “marcas da besta”, na testa dos infiéis, “marcas na palma da mão” dos seguidores de Cristo. A instauração de um Estado mundial absoluto sempre requer a destruição em massa dos inimigos da verdade. Nesse sentido, o programa do Apocalipse não é antigo, mas moderno. E essa modernidade está marcada na “autoglorificação programada, na instituição da glória da Nova Jerusalém, na instauração demente de um poder último, judiciário e moral”.
Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia.