Poesia & Conto

O fogo frio das crianças | Cecília Garcia

Foto de Pierre-Etienne Vilbert na Unsplash

Nenhum de nós sabe o que é isso, nenhum de nós tem o músculo do coração preparado para o mistério. Não eu com meu corpo de balé de terças e quintas. Não Danilo com sua maneira de roubar isqueiros, não Tomate e seu medo cabuloso de crescer. Nem Joana, nossa líder, calada como o fim da noite. Mas mesmo assim fomos achados. Nos foi confiado algo tão precioso quanto um Kinder Ovo ou a lacuna entre as aulas que forma o pátio do recreio. Temos uma responsabilidade que brilha como uma lâmpada na minha mochila.

 

O que agora é nosso eu encontrei na nossa praça. É preciso dizer que a praça é nossa por conquista, não presente. Para tê-la, expulsamos idosos de legging, adolescentes de olhos avermelhados, crianças mais novas. Para assustar os velhos, usamos fogos pequenos. Danilo trouxe um isqueiro verde, disse que furtou, mas Danilo sempre devolve seus furtos, então não furta nada. Das folhas de almaço tatuadas com meus trabalhos escolares fiz flores de fogo, queimei-as perto dos aparelhos de ginástica. Os velhos com medo de tudo não gostaram e não voltaram mais. Às vezes os vejo correr, no perímetro, incapazes de transpor o medo da fogueira das crianças.

 

Foi Joana, com sua voz rara, que sugeriu fogos mais arriscados para a conquista definitiva da praça. Trouxe rojões na mochila e os soltamos no entardecer. Crianças mudas e adolescentes chapados assistiram à nossa pirotecnia arrancar o braço magro das árvores, queimarem pipas reféns do cerol. O terror da nossa fumaça, a promessa de outras, afastou todos e nos fez rainhas e reis de ouvidos tapados.

 

Todas as noites que não cai chuva nem bronca dos pais, nos encontramos. Sou sempre a primeira a chegar. Depois chegam os cachorros de memória curta, incapazes de reter o perigo do incêndio ou o medo de quem o produziu. Danilo e Tomate são os próximos, inseparáveis como suas casas lajeadas, fedendo almiscarados em sua aversão de banho. Joana chega por último e, sem intenção, nos cala com seus dias incomparáveis, sem escola, com muito aventura. Brincamos até a hora do jantar. Joana geralmente come na minha casa. Meus pais oferecem arroz, feijão, farofa, querendo cavar com a ponta dos grãos os segredos da boca sempre educada de Joana. De barriga cheia, ela não nos conta nada da sua casa, da família, da vida.

 

Ontem era um dia igual a todos os outros que vieram antes, mas nunca igual aos que viriam depois. Cheguei na praça vazia carregando o pôr do sol nas costas. Meus pés doíam do balé e meu collant rosado, quase novo, tinha linhas finas de suor, nas quais meus músculos se dobravam para alcançar a graça das posturas. Sentei num dos bancos de concreto, tirei as sapatilhas, um cão lambeu meu dedo e não gostou. Atrás da sua cabeça caramelo, no triângulo junção entre a orelha caída e o pescoço, percebi algo cintilar. É brinco, pensei empolgada, as joias negadas numa casa onde a vaidade permitida e expandida é eu fazer uma dança sem futuro. É brinco, e se tiver sorte, serão dois. Descalça de um pé, evitando armadilhas da grama, me aproximei de um monte de sacos de lixo dos mercadinhos do bairro. Afastei-os com a respiração presa.

 

Agora me faltam palavras, talvez no futuro elas cheguem, ou talvez ainda não haja, sim, acho que isso é o mais certo dizer, não existem palavras na língua para dizer o que encontrei. Pegá-lo no braço foi um movimento sem hesitação, o que era raro porque sou desconfiada de tudo, mas a coisa deslizou com tanta facilidade até as quinas do meu braço e do meu antebraço que pensei que o encontro era pra ser. É uma coisa que brilha. Como uma estrela fraca, como poste de luz da rua, falho e irreparável. É quente e mole. Tem uma espécie de vida, não igual à minha, nem como a dos cachorros desinteressados. Mas é vida, porque pulsa feito a veia do meu pulso que ele ilumina. Apertei-o contra o peito, sentindo um calor inofensivo. Meu pé suspenso aterrou no chão.

 

Danilo e Tomate chegaram no fim da tarde, quando tudo era dourado e impaciente. Os dois estavam de braços dados, invencíveis na certeza de uma noite como as outras. A invencibilidade foi esmorecendo quando me virei para eles, no meu peito a coisa brilhando, menos pálida agora, assumindo a cor do meu uniforme de balé.

 

“Que é isso?”, Danilo perguntou, esticando os dedos. “Que bonito. Posso mexer? Parece um ouriço-do-mar”.

 

Ouriço-do-mar é bicho de praia, eu nunca fui lá, mas Danilo também é bicho de praia e traz recordações. Danilo pôs a mão, a coisa tremeu, mas continuou na mesma palpitação tranquila.

 

Tomate tinha os olhos agigantados, o medo lívido de um menino que aprendeu muito cedo que correr é menos pior do que apanhar. “Larga, larga isso. Você não sabe o que é isso e já vai segurando?” Ele ficou atrás de Danilo, sua fortaleza de sempre. Ganhava no rosto as cores que possibilitaram seu apelido, que faziam sua pele castanha virar fruta. “Muito feio esse negócio. O que será que é?”.

 

Ficamos em silêncio, olhando. Nunca estamos em silêncio. Há algo em nós sempre crepitando, indo para todos os lados. A coisa nos fez ficar quietos. Tomate saiu de trás de Danilo. Também tocou o achado. Ficamos os três parados, nossas mãos de tamanhos parecidos formando uma capa na criatura.

 

“Ainda tá achando feio?”, Danilo perguntou.

 

“Quero segurar, mas tô com medo de quebrar. Sempre quebro tudo”, Tomate respondeu.

 

Quando Joana chegou meus olhos já ardiam. Os olhos dos meninos também, cheios de água por não piscarem, esperando qualquer movimento da coisa que explicasse sua existência. Joana estava brava. Não gostava que as brincadeiras começassem sem ela.

 

“Vocês sempre me esperam”, ela nos acusou. Estendeu os braços compridos e a coisa iluminou cada uma de suas pequenas cicatrizes. Entreguei sem relutar. A coisa brilhou mais. Éramos um círculo brilhante, os cães também estavam ao redor de nós, deitados, não nos olhavam, pareciam nos proteger. O ar tinha cheiro de xixi de cachorro, a fragrância sutil das pulgas.

 

A coisa ganhou contornos vermelhos. Os cinco cães amarelos se levantaram. Achei que tinha feito algo errado. Tomate também. Danilo se afastou. Joana me entregou a coisa num movimento certeiro e virou de costas pro círculo, as mãos ao lado do corpo em punho fechado. Uma ronda escolar iluminava a praça com luzes vermelhas e brancas.

 

“Fiquem quietos e me sigam”, ordenou Joana.


Dobrados sobre nossas barrigas, fomos até debaixo de um túnel de pedra de brinquedo que parecia um trem sem ambições. Danilo tentava como nunca conseguir respirar pelo nariz. Fizemos uma tenda com nossos braços e testas. Menos Joana. Vigilante, era um corpo sem cabeça e pescoço observando da chaminé do brinquedo o que acontecia na praça. Eram dois guardinhas, um homem e uma mulher, ela com a lanterna nas mãos. Os cães latiam.

 

“Será que estão procurando a coisa? Será que é deles?” “Nunca. Nada é deles. O problema sempre foi esse. Lembra da bola do Rui? Tiraram a bola do Rui e nunca devolveram. Era o único brinquedo dele.”

 

“E o que a gente faz? Se eles acharem vão levar embora. Talvez pro zoológico talvez.”

 

 “Isso não é bicho, Tomate!”

 

“Mas tá vivo. Então talvez eles matem. Eles fazem isso.” Joana pescoçou mais uma vez. Quando voltou com a cabeça para dentro do brinquedo, brilhava no olho a resolução que a tornava nossa heroína, nossa menina mais amada. “Eles tão indo e voltando sem saber o que fazer. Vou pegar a lanterna e sair correndo. Vocês pegam a coisa, protegem a coisa, e fogem daqui. Encontro vocês depois.”

 

Rápida na desproporcionalidade de suas pernas longas e braços curtos, Joana pulou para fora do brinquedo. A luz ameaçadora se extinguiu num grito estrangulado no pescoço da guardinha. Foi a vez de Danilo ficar sem cabeça. É como uma ciranda, ele descreveu a cena, admirado. Os policiais corriam atrás de uma criança que não enxergavam, protegi- da por escuro e arbustos, os cães saltitantes entre eles.

 

Agachados, fizemos o caminho contrário de Joana, nos afastando da praça, subindo uma ladeira pequena até chegar ao ponto de ônibus um pouco mais iluminado, não muito, não o suficiente para entender as expressões de fúria e medo nos nossos rostos. Pensei ter ouvido a risada de Joana.

 

Tomate deu um abraço rápido em nós três, as costelas inchadas de amor pela coisa apertada no meu peito. Daniel foi mais devagar. Me abraçou molhadamente, ainda respirando pelo nariz. “Cuida bem dela. A gente nem precisa falar mais disso, talvez dê até azar. Nem precisa trazer ela de volta. Só garante que a coisa vai ficar bem”.

 

Sob a luz falha do poste abri a mochila, fiz espaço entre cadernos, os de português muito usados, os de matemática sem uma única dobradura, botei as espirais danosas dela para baixo e coloquei com muito cuidado a coisa entre o uniforme de dança. Fechei o zíper. Olhei pra praça. Os cachorros atrás de seus próprios rabos, os guardinhas corriam em círculo atrás de algo, não mais de Joana. Ela não estava ali.

 

Agora, no meu quarto, a mochila brilha forte como um abajur. Abro o zíper. Agora nós duas vamos esperar Joana.

 

fotografia de Cecília Garcia. Crédito da foto: Anali Dupré

Cecília Garcia é escritora e jornalista. Acaba de lançar seu primeiro livro de contos, Jiboia, pela editora Aboio. É co-criadora do Bestiário Brasileiro (@bestiariobrasileiro, no instagram), projeto literário e de ilustração científica sobre animais reais e imaginários do Brasil. Já teve contos publicados em coletâneas literárias como o Prêmio OFF Flip; Linguateca, organizada pelo escritor Marcelino Freire; e também Desnamorados, livro da Editora Empíre.

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