Poesia & Conto

Minicontos | Alexandre Brandão

Um pequeno adeus

 

Foi uma trombada feia. A lataria se retorceu toda, e quem olhava para os carros não conseguia definir os modelos. Logo depois do ocorrido, houve um disse me disse: morreu todo mundo, não morreu ninguém, um vai morrer em breve, a moça perdeu a perna. No entanto, o assunto enfraqueceu, sumiu. A polícia não fez inspeção nem abriu boletim de ocorrência. Ninguém chamou a ambulância. O morador da esquina do acidente não reclamou dos carros atrapalhando o acesso a sua casa. Os motoristas passaram a evitar a rua, inventando novos caminhos para chegar aos lugares de sempre. 

 

Os carros ficaram lá, destruídos, e, não demorou muito, com fama de mal-assombrados. Trinta anos depois, uma menina, que pela primeira vez ia sozinha à escola, aproximou-se daqueles dois monturos de ferro velho. No primeiro, ela viu um ninho de pintassilgo. No segundo, uma alma penada conformada, que lhe jogou um pequeno adeus.

A peleja

 

A briga seria na saída do colégio. Caroço era o que todos sabiam, um verme, e gostava de briga. Se elas não vinham até ele, ele ia até elas. A fofoca plantada sobre Tulipa, à medida que circulava entre os colegas, fazia ferver a curiosidade da turma. O Tulipa? Você viu? Pode provar? E Caroço disparava sua metralhadora de sins. Quando a vítima soube do ultraje, ficou uma arara, podia apanhar até morrer — e apanharia, Caroço era um urso —, mas não aceitaria desaforo. No final da aula, a turma marchou pelos corredores do Wenceslau. Tulipa e Caroço na frente, o bando atrás. Os brigões, quietos, concentrados; a massa rugindo, apostando, gargalhando.

 

Pela primeira vez na vida, a mãe de Caroço o esperava à porta. Ela fez carinho no cabelo de Tulipa, reclamou de seu sumiço e o fez prometer que iria brincar com o Jaime — “não gosto do apelido que vocês inventaram pro meu filho” — um dia desses. Depois, pegou o Jaiminho pelas mãos, e sem desgrudarem subiram a rua. Caroço não se lembrava de ter andado daquele jeito com a mãe, nem de ter se sentido tão feliz. Torceu para irem longe.

Rocambole de São João

 

Ao escolher o rocambole da região de São João del Rei para acompanhar o café, fazia seu último pedido antes de se apaixonar. As mãos que depositaram a xícara e o pratinho à mesa, descobriu Aurora, não poderiam passar pela vida sem possuírem as suas.

Vai um poema aí?

 

À tarde mimeografaram os poemas. Por volta das nove se encontrariam perto do Maletta, molhariam as palavras — não as da poesia, mas as que diriam ao vendê-la — e sairiam de boteco em boteco oferecendo de sonetos a versos-piadas, tudo da melhor qualidade e feito ali mesmo, em Minas. 

 

O Maletta deu-lhes as costas. Ao longo da Augusto de Lima, nem os bares de rua, nem os pontos de ônibus quiseram saber deles. Na São Paulo, a porta do cursinho e a de algum comércio ainda aberto os ignoraram. Incansáveis, anunciavam uma trova, um poema de sacanagem, olha, se gostarem, tem até limerique, mas Belo Horizonte não se interessava por nada daquilo. Alcançaram a Afonso Pena e, na rodoviária, fizeram uma performance. A poeta de Diamantina recitou uns versos maliciosos, o escritor alto e desengonçado, em alexandrinos, protestou contra as enchentes do Arruda e o bardo exilado do simbolismo disse que ele, e não só Augusto dos Anjos, sofria a má influência do zodíaco e era profundissimamente hipocondríaco. A rodoviária, indiferente, arrastou malas e embarcou, antes da hora, os viajantes. Os vates, liristas, versejadores, estupefatos, resolveram seguir até o Mangabeiras, por onde nunca circulavam, desconfiados de que lá não se curtia poesia. Quando, na saída da rodoviária, perfilados como combatentes, olharam a Afonso Pena em toda sua extensão, viram as lágrimas nos olhos, o vermelho no nariz e a boca ressequida de Belo Horizonte. Algo grave acontecera à revelia dos poetas.

Problemas com o cara

 

Fomos comer um baião de dois no Gois, no Itaim Bibi. Eu não gosto de comida nordestina, mas não queria me indispor com o cara, já tínhamos problemas demais. Vesti então o fato da diplomacia e o acompanhei. Se o esperado era um lugar quieto, onde poderíamos conversar e comer bem — ele comeria bem —, não foi o que encontramos. Naquele dia, de uma maneira amadora, eu diria tosca, gravavam, para um canal comunitário qualquer, um programa explorando a tradição nordestina em São Paulo. No tablado, que não se inibiam de chamar de palco, ora se apresentava um grupo de forró, ora um cantor, uma cantora, um embolador. Todos dançavam, gesticulavam e dublavam. Isso mesmo, ninguém cantava à vera. Enquanto o cara se mostrava indignado, onde já se viu isso, ele perguntava, eu me distraía como havia muito tempo não me distraía. Chamaram então ao palco, naquela altura eu me convencera de que era um palco, uma cantora de coco, não sei se não disseram o seu nome ou se eu não o escutei. Ela, uma senhora, chegou com tudo. A música mal saiu da caixa, ela rodou a saia, girou o corpo e levantou os braços ao dublar. Aquela voz era a da dona Selma do Coco, claro, como eu não reconheceria a cantora resgatada pelo Chico Science e naquela altura morta? A tia, alheia a essa apropriação, emulava a rainha do coco em uma performance contagiante. Não sei se foi impressão minha, mas aumentaram o som e o show ficou ainda melhor. Aquele coco — “minha rosa, cheirosa do meu jardim, eu não vou te espantar, isso é muito ruim…” — foi me tomando, me inflando de coragem, então me levantei e subi ao palco. Abracei a tia e nós, um homão e uma mulher atarracada, começamos a dançar, a dançar, a dançar até ela deixar de fingir que cantava. Ninguém me tirou de lá, ninguém mandou parar a filmagem, ninguém fez nada. Quer dizer, o cara, quando a música parou, gritou que me amava.

O rabo do cachorro 

 

À moda de Clarice Lispector e para ela

 

Violeta adotou o cachorrinho mais feioso, um trapinho de vira-lata que precisava de muita ração para conseguir derrubar uma mísera lata. O bichinho pedia socorro. Espera que Violeta já te salva. E lá se foram a partir de então a dona e a coisa inominada. Violeta adaptou, a seu modo de mãe, as orientações recebidas de como lidar com o filhote — o que dar de comer, a forma de falar, os limites a impor logo de cara. Depois de vinte e quatro horas, ela amava, e o objeto de seu amor não tinha ainda nome. Ela o colocou no colo e, enquanto acariciava seu pelo fino, espetado pelos ossos, o batizou de Milagre. Testou o nome: pula, Milagre; deita, Milagre; passa, Milagre. Pareceu um bom nome. E Milagre, vencido pela carícia, nem soube, na hora exata de seu batismo, o nome que carregaria. Depois vieram todas as demandas da vida de um cachorro doméstico: vacinas e vermífugos, castração, lições de bom comportamento, recusa às lições e a consequente destruição de móveis. À Violeta restou conformar-se com tudo, levar Milagre para passear na praça, protegê-lo das feras dos vizinhos, mandá-lo para banho e tosa, dividir a cama com ele. Milagre cresceu forte, mas, o que é estranho, nunca abana o rabo. Violeta desconfia de que ama a coisa triste.

Grêmio Recreativo Escola Carioca de Poetas 

 

As alas foram planejadas em detalhe. A comissão de frente teria coreografia concretista e seus membros seriam paulistanos. No carro alegórico, uma sala com estantes e uma mesinha com máquina de escrever, um poeta ora estaria sentado, ora caminhando da mesa às estantes. Ele seria calvo, usaria óculos, um Drummond menos tímido, mas sem amante. A primeira ala, de forte impacto, vermelha, diabólica, lembraria os tempos nos quais os poetas, românticos e trágicos, morriam de tuberculose ou assassinados por outros poetas. Para quebrar a impressão da ala Rubra, a Solar seria formada pelos jovens que a partir do Pier de Ipanema esfaquearam a sobriedade dos poetas sisudos. Sungas, topless, cervejas e cigarrinhos suspeitos vestiriam corpos magros, meio desleixados, mas potentes mesmo assim. Na ala Bandeira desfilariam, em trajes discretos, os sobreviventes da ala Rubra misturados com vozes isoladas de modernistas de outras geografias. Vestidas de saias rodadas e esvoaçantes, as poetisas ocupariam a metade direita da ala Tradição, e as poetas, a esquerda. Entre elas haveria um fosso. O batuque sairia de surdas máquinas de escrever de variadas marcas e tamanhos, algumas elétricas, mas nenhum teclado; de agogôs de canetas vagabundas e reco-recos de pigarros de fumantes inveterados; de repiques de arquivos atolados de originais e de uma cuíca, pura, chorosa e indispensável. Na ala dos Contemporâneos, a última, uma mixórdia só, viriam, no terço inicial, poetas que não fariam feio na ala Rubra, seriam aceitos na Bandeira e se assemelhariam aos macérrimos da Solar; no segundo terço, jovens poetas ribombando originais revolucionários aos próprios olhos, talvez só a eles; na parte final, a turma do slam não aceitaria estar onde estava e, indisciplinada, avançaria não só pelas partes iniciais da ala, como cruzaria pelas outras (é possível que encontrassem abrigo entre os da ala Rubra).

 

Tudo bem planejado, escrito da forma mais precisa e feito com zelo e amor. Que os poetas chegassem, vestissem as fantasias e se espalhassem pelas alas. Mas onde estão? Alguém sabe? Devem estar nos bares, nos leitos proibidos, nas rinhas de sempre, escondidos no cu do mundo, enfim, em qualquer lugar em que ao mesmo tempo em que gozam, se consomem. 

 

O GRECAPO desfalcará o desfile.

 

A cidade reunificada

 

Caminhava pelo calçadão desde o Leblon e, em Copacabana, tropeçou e quase caiu. Quando voltou a caminhar, não estava mais em Copacabana, não estava mais à beira-mar, muito menos na Zona Sul. Pisava uma rua mal asfaltada e sem calçadas. Passou em frente da cabine da Polícia Militar e subiu o beco logo adiante. No seu caminho, um mar de barracos colados uns aos outros. Teve sede. Onde encontraria sua água de coco? Procurou sem sucesso um bar, um isopor, qualquer coisa. Manteve o passo. Finalmente chegou a um quadrado, onde, ao lado de adultos sentados sob uma árvore, meninos e meninas brincavam numa quadra. Uma voz saiu de lá em sua direção: “ô, branco, chega junto, fecha o time aqui”. Antes de entrar no jogo, com um sorriso, uma mulher ofereceu-lhe água, que ele, grato, aceitou. Achou pouco simplesmente dizer obrigado, então abraçou a mulher tão negra e receptiva ao carinho. Entrou na quadra, deu dois dribles, levou quatro, fez um gol, levou outro. Na casa de não soube quem, almoçou macarrão com salsicha e cocada branca e preta de sobremesa. Cochilou vendo o filme da televisão e, ao acordar, como não tardaria a anoitecer, preocupou-se com a volta para casa. Precisava voltar, mas não queria. Um menino parrudo, sorridente, segurou-o pelo braço e disse: “bora, branco”. Desceram o beco, passaram pela cabine da polícia e, bem ali, tropeçou no asfalto esburacado e quase caiu. Ao voltar a caminhar, estava em Copacabana. O menino que o acompanhava ficou para trás e, de longe, já girando o corpo para ir embora, lhe deu um até logo.

Fotografia de Alexandre Brandão

Alexandre Brandão é cronista, contista e poeta, tendo nove livros publicados. Seu inédito “Zerinho ou um” ganhou, em 2022, o 1º Prêmio Literário Flipoços|Kindle e deve vir a público ainda este ano. Os minicontos aqui publicados fazem parte de um livro em elaboração, a ser estruturado em quatro partes, cada uma delas ligada a uma das cidades que o autor viveu. Nesse sentido, os dois primeiros estão relacionados a Passos (sua cidade natal, em Minas Gerais), os seguintes a Belo Horizonte, imediatamente depois a São Paulo e, por fim, ao Rio de Janeiro.



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