Cultura

EISENSTEIN OU A CONSTRUÇÃO DA ESPERANÇA III | HENRIQUE DÓRIA

Se O COURAÇADO POTEMKIN  foi uma obra lentamente maturada, OUTUBRO, filme destinado a comemorar a grande revolução bolchevique, aqueles dez dias que abalaram o mundo, no dizer do grande jornalista americano JOHN REED, foi concebido e filmado apressadamente. Escreveu o próprio EISENSTEIN que aquilo que deveria ser filmado em dezoito meses, foi filmado em seis meses. “acontecia-nos filmar sessenta horas sem descanso…Se contarmos em termos aritméticos, plano a plano, pode dizer-se que um exército de cem mil homens passou diante da câmara de “Outubro”…Não tínhamos qualquer dimensão, salvo a quarta, a nossa.”

Em OUTUBRO, a montagem intelectual atinge o seu auge: os seus 3200 planos, com momentos extraordinários na história do cinema como as multidões famintas e geladas nas ruas, a metáfora do pavão mecânico e as estátuas de Napoleão, símbolos da vaidade de Kerensky, o assalto ao Palácio de Inverno, destruição da estátua do czar, a penetração dos revolucionários no quarto da czarina ( cena altamente erotizada quando as baionetas furam os colchões e um soldado limpa a baioneta como se afagasse o seu sexo)  a utilização de cartazes e jornais ( é notável a cena do jovem que deixa cair na água  do rio Neva o PRAVDA, jornal dos bolcheviques).

Mas estava-se num  momento particularmente difícil da jovem revolução de Outubro. Trotzky acabava de ser expulso do Partido Comunista. As teorias de Andrei Jdanov começavam a tornar-se as diretivas culturais do Estado soviético-estalinista que atingiam, particularmente o cinema: o cinema não pode  ser uma arte, muito menos uma estética. Ele deve ser inteligível pelas massas e provocar emoções positivas muito mais que transmitir e suscitar ideias. Como veio a dizer Jdanov no Congresso dos Escritores Soviéticos de 1934 referindo-se à literatura, mas que se aplica ainda mais ao cinema, o cineasta não deveria ser um artista, mas face às necessidades da economia soviética, um engenheiro de almas:

“Ser um engenheiro das almas humanas significa ficar com os dois pés plantados na vida real.”

E a vida real era esta: o país era na generalidade analfabeto, a sociedade cada vez mais burocratizada, a liberdade cada vez mais cerceada,  e tudo, incluindo o cinema, se subordinava à economia e àquilo que para Jdanov era a luta da arte dita proletária contra a arte dita burguesa.  

A burocracia do Partido Comunista, inculta, sectária e obediente ao grande líder Estaline fazia valer o seu poder. Como a grande poeta ANNA AKHMATOVA era acusada de burguesa decadente, EISENTSEIN era acusado de formalista e esteta ( o que era o mesmo que decadente).

A obra seguinte de EISENTSTEIN, A LINHA GERAL, de 1929, ressentiu-se também da luta que se estava a travar dentro do Partido Comunista, e levou numa primeira fase, a que Estaline, apoiado pela direita do partido capitaneada por Bukharine e Rykov, afastasse a esquerda liderada por Kamenev e Zinoviev, afastasse depois a direita e iniciasse a liquidação dos kulaks (agricultores que usavam trabalho assalariado) e a coletivização da agricultura. Bukharine  definira, em 1925, a LINHA GERAL da economia soviética:  industrialização e modernização agrícola, esta apoiada nos kulaks. O filme fora pensado em 1926, mas a linha geral começara a mudar em 1927 como a aplicação de impostos elevados aos kulaks e a limitação ao uso de terras. Estaline obriga à mudança de título do filme, de A LINHA GERAL o filme passa a intitular-se O VELHO E O NOVO.

O filme começa com uma imagem  da estepe gelada fustigada pelo vento  e das miseráveis cabanas dos camponeses contrastando com a beleza de uma jovem mãe (afinal tão próxima das virgens dos ícones ortodoxos) paralela à Gioconda de Leonardo da Vinci, que surge fugazmente no plano ( sempre Leonardo, a beleza e a homossexualidade juntas).

A propriedade privada, que os irmãos dividiam empobrecendo todos, é um mal. A coletivização em que tudo era de todos é um bem.

Se há algum filme em que os rostos tenham sido tão filmados revelando almas, se há filme em que o rosto e o corpo, os animais e a natureza são erotizados,  é em a LINHA GERAL. A cena da máquina de desnatar apresentada pelo burocrata soviético ( quanto a este, EISENSTEIN é totalmente realista)  perante a incredulidade dos velhos e a esperança dos novos e o jorrar do leite  pela máquina tocada por um jovem nas mãos e no rosto da bela camponesa é  dos momentos mais sensuais das história do cinema. A religião castrante da igreja ortodoxa que não conseguia obter de Deus a graça da chuva caída dos céus, é substituída pela religião fecundante da natureza que fazia jorrar o leite da máquina. Essa velha  religião é substituída pela nova religião do progresso: os cavalos e os homens exaustos que puxavam os arados dão lugar aos tratores. Os miseráveis casebres cobertos de colmo escuro dão lugar a casas impecavelmente brancas onde os animais e o leite são tratados pelos processos mais modernos.

A coletivização é a Primavera, a fecundidade, o sexo dos homens e dos animais (a noiva é uma vaca!). A própria máquina suscita  o erotismo na sua relação com o homem.

Apesar da beleza do filme, A LINHA GERAL não agradou aos senhores do poder que viram nele mais sexo que discurso político que provocasse o entusiasmo das massas, mais formalismo que emoção mobilizadora do proletariado – apesar do evidente apelo à aliança operário-camponesa, o rumo da política soviética traçado por Estaline. Por isso, o poder  estalinista enviou Eisenstein para o Estados Unidos da América para aprender (!) as técnicas cinematográficas americanas ainda antes da estreia do filme, em 1929.

Porém, a sua passagem pela América, apesar de ter suscitado um fervilhar de projetos, foi um falhanço. Dos vários projetos que concebeu,  A CASA DE VIDRO, baseada num sonho do grande arquiteto Frank Lloyd Wright, ou O OURO, baseado num romance de Blaise Cendrars, e, finalmente, UMA TRAGÉDIA AMERICANA,  baseada num romance de Theodore Dreiser, nenhum deles foi levado à prática. 

Apesar de um dos donos da Paramount, David Selznick, ver  no projeto “uma experiência gloriosa ao serviço exclusivo do progresso da arte” o projeto falhou por falta de financiamento dado ser demasiado caro.

Perante o falhanço da experiência americana, Eisenstein acabou por se dirigir para o México onde, com o apoio do escritor Upton Sinclair, membro do Partido Socialista Americano, filmou o inacabado QUE VIVA O MÉXICO. Por falta de financiamento, pois Eisenstein zangara-se com Sinclair e os financiadores da obra que Sinclair conseguira,  o filme nunca foi terminado. O que Eisenstein filmou, acabou por ser montado pelo seu argumentista Alexandrov, e o resultado é considerado fiel ao que pretendia o realizador. 

 

 

O México é o país onde o misticismo e o paganismo se misturam, onde a vida e a morte se misturam, onde os mortos passeiam pelas ruas com os vivos, como podemos ver no célebre mural de Diego Rivera. A fabulosa cena do dia dos mortos é outro dos momentos mais altos da História do Cinema. 

Apesar de presença constante da morte, são sempre a vida e a luz que triunfam sobre a morte e as trevas em  QUE VIVA O MÉXICO. Mais uma vez o erotismo da natureza e dos homens e a sua força criadora são exaltados por Eisenstein. Se o touro é o rei da tourada ( novamente o touro, símbolo da força e da fertilidade, como em A LINHA GERAL) as jovens e belas mulheres são as suas rainhas. Até a morte dos três operários  rurais, sacrificados como Cristo e os  dois companheiros de suplício, faz do sacrifício  uma ato erótico, como eróticos eram  os corpos dos operários de  A GREVE e OUTUBRO, dos marinheiros de O COURAÇADO POTEMKIN ou, ainda, dos camponeses em A LINHA GERAL. Eisenstein chegou mesmo a escrever que o prazer erótico, a ereção, “ creio que é a única, a verdadeiramente perfeita felicidade.”

Regressado à URSS em 1932, a sua não submissão aos cânones do realismo socialista-estalinista faz com que seja marginalizado pelos senhores do cinema soviético. Os seus projetos são rejeitados pela SOVKINO, organização central do cinema soviético. Desesperado, acaba por fazer um humilhante ato de contrição e afirmar a sua submissão ao realismo socialista-estalinista.  Graças a este ato de contrição  é aprovado o projeto de um novo filme, intitulado O PRADO DE BEJINE. O argumento encontra-se dentro dos cânones da doutrina estalinista para a arte: um pai representando a velha ordem czarista, está disposto a sacrificar o filho, heroico lutador comunista. Mas essa  luta de classes foi transformada por Eisenstein numa obra profundamente lírica, poética e sonhadora, muito para além de uma simples história da luta de classes.

Já quase completamente montado, o filme perdeu-se durante os bombardeamentos da segunda guerra mundial.  

O aproximar da invasão da União Soviética pelo exército alemão fez Eisenstein voltar-se para a história e filmar de acordo com as preferências de Estaline. Do novo projeto resultou uma outra grande obra, com música de Sergei Prokoviev, ALEXANDRE NEVSKY.

 

HENRIQUE DÓRIA

 

Fotografia de Henrique Dória

 

É advogado e colaborou no Diário de Lisboa Juvenil e nas revista Vértice e Foro das Letras. Tem quatro livros de poesia e três de prosa publicados. É diretor da revista online incomunidade.com, e da radiotransforma.

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