O novíssimo livro da Sara F. Costa apresenta-se com um título pouco habitual no panorama literário,já que a autoraescolheu duas palavras compostas,asquais não precisaram de suprimir a grafia do hífen, por razões óbvias, mas que não deixa de ser curioso, já que as palavras compostasvão-se sucedendo ao longo das páginas, talvez para que esse rio de que a Sara nos descreve consiga contornar rochas, montanhas e falésias até chegar a uma foz provisoriamente serena, a mesma onde Deus aguarda, porventura, o milagre de ser parido por um corpo: «Deus-flecha» (p. 27); «mar-silêncio» (p. 27); «silêncio-adubo» (p. 33); «peixes-fantasma» (p. 35); «feto-agora-filho»(p. 47); «tempestades-enguias»(p. 65); «peito-alimento»(p.73); «vida-casa» (p.112); «Mãe-ferro» (p. 121); «palavra-cabana» (p. 155); «amor-instinto» (p. 155); «romances-pais»(p. 180). Há uma certa sublimação da palavra em cada poema (confesso,consegui,comesforço, dada a dimensão e profundidade, ler as 181 páginasque compõemestaobra), talvez haja uma intençãoda autora em mostrar ao leitor uma diferente descrição sobre a condição de mulher e de mãe (mulher-mãe), e que aparenta ser indissociável,a meu ver, neste trabalho poético: «flores de leite/ crescem dos mamilos» (p. 28); «uma mulher como uma manhã inacabada/ queima os dedos no olhar do filho» (p. 30); «a aleatoriedade do teu nascimento/éum pedaçode frutaquente/nomeu interioraté aquideserto»(p.27).
«Ser-rio, Deus-corpo» inicia-se com uma dedicação «ao Arthur», talvez o Arthur tenha sido parido duas vezes, a primeira vez num hospital, a segunda vez numa editora, sem que para isso se tenha descurado a beleza e a narrativa do amor, para que não restassemdúvidas de que uma poeta (nunca uma poetisa),encontrar-se-á proibida de parir, por razões que só o processo criativo poderia explicar de forma subentendida, ou pouco ilegível, mas que obriga ao raciocínio, à «devastação inteligente»defendida por HerbertoHelder: «Há-de existiruma poeta/proibida de parir» (p. 111). Atrevo-me, também, a referir que se o Arthur foi parido, o outro Arthur (Rimbaud) cambaleou sem sentidos até aos braços da autora. Passo a explicar: a Sara iniciou-se na poesia aos quinze anos com a publicação do livro de poesia«A Melancolia das Mãos e Outros Rasgos» (Prémio LiterárioSerra da Lousã, Pé de Página editores), publicado em 2003. Duas décadas, portanto, de produção poética. Uma nova Rimbaud insurgia-se, indubitavelmente, na poesia portuguesa, com uma força singular, com uma voz original e que se foi propagando até 2023. Aos 20 anos, Rimbaud, pelo que se sabe, deixou de escrever poesiae partiu para a Abissínia. A Sara, com 20 anos de carreira literária, pariu o Arthur e essa gestação foi também uma viagem, longínqua, para que pudesse encontrar um novo rio, um novo Deus, um novo Ser, um novo corpo: «nos lábiosde deus que são estaporta de saída do meu ventre:/ um rio em combustão no amor» (p. 68). A Sara, de forma (in)voluntáriaabandonariao Arthur ao parir o outro Arthur: «o nomedele é Artur/ Arthur no registo civil» (p. 161).
Há uma inquietudeno «Ser-rio»que nos remete para o abandono, e um reencontro intenso e memorável no «Deus-corpo», com imagens cinematográficas que em determinados momentos me fazem recordar «O Espelho» de Tarkovsky, já que a poeta nos apresenta poemas que oscilam entre a cor, o preto e branco e o sépia. Talvez seja nessafuga e posteriormentenoreencontro que a Sara F. Costaencontra a maior consciência de que a poesiatem, muitas vezes, uma força de nos impelir a abandonar tudo, para que sejamos dignosde voltar a poder recolher a poesiapelas raízes,no rumordavida,nossilênciosqueconversamequesóossentimosnalíngua, comoafirmou certa vez AntónioLoboAntunes, mas semdescurar o solene caminho que é o de encontrar o cordão umbilical, ensanguentado, obviamente,mas que nos ligará com ferocidade à poesia, ao discurso do amor, o amor de um filho parido, e que será sempre parido em cada instante – permitam a redundância –, a todo o momento, seja em Portugal ou na China. Ora atente-se ao seguinte poema:
«parir-te em verso, meu amor,
parir-te continuamente
em movimentos circulares
no chão de um templo taoista
parir um pássaro
entre continentes
dois mundos inteiros
que desaguam em ti.» (p. 99)
«Ser-rio, Deus-corpo» é um livro denso, profundamente metafórico, com uma linguagem hermética e simbólica, por vezes surrealista, que faz recordar, muitas vezes, a articulação de Ana Hatherly, Luiza Neto Jorge, Herberto Helder, Salette Tavares, Fiama Hasse Pais Brandão, ou até alguns dos poemas presentes no livro «Declives»,deAntónioRamosRosa (comdesenhosde CruzeiroSeixas),quando este espaçou as vogais das consoantes, as vogais das vogais, as consoantes das consoantes, como se as palavras se desmoronassem, por terem sofrido os danos colateraisde um sismoinesperado: «s o m b r a/ s o p r o v o l á t i l» (p. 140).
Não nos enganemos, estamos perante uma voz lúcida, que abraça (talvez o verbo maiscorrectoseja«abarcar»e não «abraçar»,não sei,ou comoalguém certavez mo confidenciou: «sei sempre muito pouco») não só a questão da maternidade, mas tambémda dor de se ser mulher e mãe,assimcomoo estigmade se sentir na carne os efeitos da misoginia muitas vezes disfarçada em comportamentos bem-intencionados, mas que não deixam de estar no lodo a maturar: «e por isso as árvores se desfiguram, janelas bem-educadas/ para a misoginia olha esta relíquia tão profunda e tão leve este/ sinal estrangeiro de antecipaçãofuck you nos nervos pagãos» (p. 137).
«Ser-rio, Deus-corpo» é dividido por 4 capítulos, nomeadamente: «1. Prefloração»; «2. Puerpério»; «3. Poemas de dois anos» e, por fim, «4. Deus-pai», que poderia muitobemser«Deus-mãe»,masnãooé para que oversocumpra coma profecia:«a todos os pais que são pais-nossos e putas» (p. 149), e que desta forma a poeta se aventura até à condição de «mulher transitóriana imitação dos homens» (p. 142). Em algumas «doutrinas» o número 4 é sinal de manifestação de luz, porém, não seria menos simbólico se esta obra se apresentassedividida em três capítulos, com uma verdadeiraalusãoà questãofilosóficade Mariater parido oFilho deDeus noescuro, ainda virgem. Não deixa de ser encantadora a questão da luz subsistirno escuro, a luz intocável, inicial, muitasvezes tacteada por Sophiade Mello Breyner Andresen: «anoitecer/ aconteceatodaaluzvertical»(p.103),atéporquealuz emdeterminado momento pode já não significar «dar à luz», já que o filho, o Ser, tornar-se-á na própria luz nos meandros da vida: «Por seres luz,/ matéria autónoma, película de pensamentona replicação/do corpo. Por seres um comboioque arde pelo poema» (p. 138).
Teria muito mais a acrescentar sobre este «Deus-corpo» parido pela Sara F. Costa, mas compete tambémao leitor ser cúmplice dos versos da poeta, assumir em cada verso declamado, proclamado, a sua maturidade poética, a beleza dos poemas musicados,depuradoscomlíquidoamniótico,comsémenesanguetambém:«riode sangue a violar o silêncio/volteipara o homem que me quis abandonar» (p. 176). Estamos,semdúvida,peranteum livro maior,de umapoetamaior–, se for possível, em qualquer circunstância, um poeta ser maior ou menor – um livro visceral, que arrasta os poemas até à espuma de um mar virgem e os embala «na lâmpada do quarto» (p. 16), já que um filho talvez seja o maior poema de uma mãe, visto que «todos os homens são iguais, vão e vêm/ mas um filho! Um filho é gente.»
Luís Aguiar |
04 de Março de 2023
*Esta resenha crítica foi redigida em concordância com o anterior acordo ortográfico.
Luís Aguiar, de seu nome completo Luís Filipe Gomes Aguiar Pereira, é um poeta e escritor português. Nasceu em Oliveira de Azeméis a 14 de Abril de 1979. No entanto, vive há vários anos na cidade de Águeda.
É licenciado em «Técnico Superior de Secretariado – Ramo de Assessoria de Direcção» pela ESTGA-UA e Mestre em «Línguas e Relações Empresariais» pela Universidade de Aveiro. Estudou, também, música clássica no Conservatório de Música Clássica Calouste Gulbenkian de Aveiro, fotografia analógica no Centro de Artes de São João da Madeira.
Actualmente é praticante de Karaté Goju-Ryu e estuda guitarra portuguesa na Escola de Fado de Coimbra.
Foi colaborador assíduo do Diário de Notícias (DN Jovem) entre 2001 e 2007. Tem dezenas de poemas dispersos por jornais, revistas e antologias literárias.
Foi coautor na construção do maior poema contemporâneo, O Fulgor da Língua – O Estado do Mundo, promovido pela capital da cultura – Coimbra (2003).
Foi galardoado em vários prémios literários, alguns dos quais resultaram na publicação da obra.