1.
A fragrância de um míssil
Acordar cedo para ouvir os pomares
crescer os pés na relva misturada ao frescor do orvalho
é como a vida deveria ser nos campos de oliveiras
e damascos
se não houvesse constantes guerras
se o poder não fosse a moeda que
compra, paga, mata
os filhos da terra.
Conhecer as batalhas sangrentas
sentir o cheiro da pólvora
de dentro do útero de uma mãe
é como já nascer no caixão.
O cordão umbilical é o corredor
dos sentimentos de pavor, indignação
e repulsa.
De nada adianta nascer os pomelos no deserto
se o gosto desta boca só conhece o chumbo
e a fragrância de um míssil.
Cessar fogo sobre o povo palestino
é um pedido de misericórdia
vindo do além-mundo.
Agora,
eis o fogo nos pulmões do deserto
eis a chama queimando sempre
alguma coisa
ou alguém
depois vem a fumaça curtindo os ossos
e as fagulhas do sol
a penetrar nas costelas do inverno.
Perto do horizonte,
um anjo de asas incineradas
cai de joelhos
clamando pela absolvição da terra
e de seu povo.
3.
A terra ferida
Naquele lugar de tantas órbitas e canteiros de ramis
coelhos já foram azuis,
hoje são espíritos brancos
ocupando o sonho
no precioso silêncio da memória.
Depois de tão longa data
o que restou da história das abelhas, dos canários
e das dezenas de coelhos
que viviam por entre as plantas e o rosto das árvores?
Se fosse consentido roubar dos deuses a capacidade de transformar
as batidas do coração em permanentes constelações
não haveria nenhuma escuridão
ou sequer se escutaria no vento
os gritos das almas no umbral.
Além do tempo que nos roubou tantas vidas
o que foi feito desta terra de rastros melancólicos
por onde passa um rio de águas esquecidas
quase mortas
sem os risonhos rumores da eternidade?
Nestes escombros da casa, aqui e lá fora,
há o espólio daqueles que abandonaram
o lugar e o amor
pelo desejo de querer morrer
antes mesmo do corpo das galáxias
acenderem no crânio sonâmbulo da noite
o último instante
da ferida
no coração dessa terra
onde a partir de agora
o homem
aceita a humildade de viver sozinho.
4.
Por mais que a abelha explique à mosca que a flor é melhor que o lixo,
a mosca não entenderá, porque cada um vive na sua realidade. (WILLIAM SANCHES)
Me diga que foi pela miséria
e não pela verdade
a fome de seu corpo por mais uma guerra.
Que foi em vão o mel e as maçãs
em infusão
escoando as suas sombras
no oco da casa.
Nada é mesmo tão real
quanto a queda dos que
já nasceram aturdidos pela garganta
em feridas
de um egoísmo incendiado
na colisão entre as abelhas e as moscas.
Uma vez quis salvar a sua pele
da morte
quis esfregar a imundície para
clarear a sua língua:
esfreguei
esfreguei
até descobrir um rosto
com uma lâmina
apontada para o meu coração.
Será um erro meu amar
as ovelhas canibais?
De nada adiantou crer que
se fechasse meus olhos
ninguém poderia me ferir
que se abrisse a antiga caixa de memórias
conheceria um coração acordado
desperto
em forma de uma árvore de natal.
Quem poderia imaginar
tantas estrelas nascendo no vazio
de um copo?
É inútil a beleza do silêncio
quando granadas
explodem flores mortas
nos pátios da alma.
Aprender sobre a inocência
custa a vida
e ainda muito mais
é como sentir
uma metralhadora atirando pedras
dentro do peito.
Responda, sem mentir,
esta lua atravessando meus olhos
é um pedaço de sua carne morta
na boca da noite?
Que dimensões tem a crueldade
de seus dentes mordendo um punhado de
estrelas?
Cada palavra arremessada com amor
em seu caderno de ficções
desidratou-se
como lírios do campo no deserto.
Cada palavra-amor encravada
na carne de suas gengivas
dissipou-se
nos templos da estranheza
tal qual nuvens de um céu
coberto de mariposas.
Mírian Freitas é doutora em Literatura Comparada, escritora e professora de Letras no Instituto Federal de Educação Ciências e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais.
Tem 7 livros publicados: 5 de poesia, 1 de conto e outro de ensaios.
Tem textos publicados em várias revistas e antologias, tais como CULT, Vallejo&Co, Innombrable, TramaBodoque, Mal de Ojo, Jornal Rascunho, Acrobata, a revista galega Palavra Comum, Caliban, Kurumata, Arara, Ruído Manifesto, Mallarmargens, antologias portuguesas, brasileiras, e outras.