Poesia & Conto

A fragrância de um míssil e outros poemas inéditos | Mírian Freitas

Foto de Oo Jiflip

1.

A fragrância de um míssil

 

Acordar cedo para ouvir os pomares 

crescer os pés na relva misturada ao frescor do orvalho

é como a vida deveria ser nos campos de oliveiras

e damascos

se não houvesse constantes guerras

se o poder não fosse a moeda que

compra,  paga,  mata

  os filhos da terra.

Conhecer as batalhas sangrentas

sentir o cheiro da pólvora

de dentro do útero de uma mãe

é como já nascer no caixão.

O cordão umbilical é o corredor 

dos sentimentos de pavor, indignação

e repulsa.

 

De nada adianta nascer os pomelos no deserto

se o gosto desta boca só conhece o chumbo

e a fragrância de um míssil.

 

 

Cessar fogo sobre o povo palestino

é um pedido de misericórdia

vindo do além-mundo.

Agora,

eis o fogo nos pulmões do deserto

eis a chama queimando sempre

alguma coisa

ou  alguém

 

depois vem a fumaça curtindo os ossos

e  as fagulhas do sol

a penetrar nas costelas do inverno.

 

Perto do horizonte,

um anjo de asas incineradas

cai de joelhos

clamando  pela absolvição  da terra 

e de seu povo.

 

3.

A  terra ferida

Naquele lugar de tantas órbitas e canteiros de ramis 

coelhos já foram azuis,

hoje são  espíritos brancos 

ocupando o sonho

no precioso silêncio da memória.

Depois de tão longa data

o que restou da história das abelhas, dos canários

 e das dezenas de  coelhos

que viviam por entre as plantas e o rosto das árvores?

Se fosse consentido roubar dos deuses a capacidade de transformar

as batidas do coração em  permanentes constelações

não haveria nenhuma escuridão

ou sequer se  escutaria no vento

os gritos das almas no umbral.

Além do tempo que nos roubou tantas vidas

o que foi feito  desta terra de rastros melancólicos

por onde passa um rio de águas esquecidas 

quase mortas

sem os risonhos rumores da eternidade?

Nestes escombros da casa, aqui e lá fora,

há o espólio daqueles que abandonaram

o lugar e o amor

pelo desejo de querer morrer

antes mesmo do corpo das galáxias

acenderem no crânio sonâmbulo da noite

o último instante

da ferida 

no coração dessa terra

onde a partir de agora 

o homem

aceita a humildade de viver sozinho. 

 

4.

Por mais que a abelha explique à mosca que a flor é melhor que o lixo,

a mosca não entenderá, porque cada um vive na sua realidade. (WILLIAM  SANCHES)

 

Me diga  que foi pela miséria

e não pela verdade

a fome de seu corpo por mais uma guerra.

 

Que foi em vão o mel e as maçãs  

em infusão 

escoando as suas sombras

no oco da casa.

 

Nada é mesmo tão real

quanto a queda dos que 

já nasceram aturdidos pela garganta

em feridas 

de um egoísmo incendiado  

na colisão entre as abelhas e as moscas. 

 

Uma vez quis salvar a sua pele

da morte

quis esfregar a imundície para 

clarear a sua língua:

esfreguei

esfreguei

  até descobrir um rosto

  com uma lâmina

      apontada para o meu coração.

 

Será um erro meu amar 

as ovelhas canibais?

 

De nada adiantou crer que 

        se fechasse meus olhos

       ninguém poderia me ferir

que se abrisse a  antiga caixa de memórias

conheceria um coração acordado

desperto

em forma de uma árvore de natal. 

 

Quem poderia imaginar 

tantas  estrelas nascendo no vazio

de um copo? 

É inútil a beleza do silêncio

quando  granadas 

explodem flores mortas

nos pátios da alma.  

 

Aprender sobre a inocência

  custa  a vida

        e ainda muito mais

        é como sentir 

uma metralhadora atirando pedras

dentro do peito.

 

Responda, sem mentir,

esta lua atravessando meus olhos  

é um pedaço de sua carne morta

na boca da noite?

Que  dimensões tem a crueldade

de seus dentes mordendo  um punhado de 

estrelas?

 

Cada palavra arremessada  com amor

em seu caderno de ficções

  desidratou-se

como lírios do campo no deserto.

Cada palavra-amor encravada 

na carne de suas gengivas

dissipou-se

nos templos da estranheza

 tal qual  nuvens de um céu

coberto de mariposas.

 

Fotografia de Mírian Freitas

Mírian Freitas é doutora em Literatura Comparada, escritora e professora de Letras no Instituto Federal de Educação Ciências e Tecnologia do Sudeste de Minas Gerais. 

Tem 7 livros publicados: 5 de poesia, 1 de conto e outro de ensaios.

Tem textos publicados em várias revistas e antologias, tais como CULT, Vallejo&Co, Innombrable, TramaBodoque, Mal de Ojo, Jornal Rascunho, Acrobata, a revista galega Palavra Comum,  Caliban, Kurumata, Arara, Ruído Manifesto, Mallarmargens, antologias portuguesas, brasileiras, e outras.

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