Na manhã cinzenta, o velho pensa e mergulha nos pensamentos porque pensar é viver dimensões insondáveis, sonhos nunca imaginados e é também o sofrimento dos velhos. Uma ave estranha o acompanha e o murmurar das árvores denuncia a ventania e a chuva que se aproxima. Faz frio como prenúncio do inverno que virá cobrir tudo: reflexões e folhas soltas no tempo insólito das vivências tardias.
Acabaram-se os espantos e apenas o grasnar daquelas aves sugere a lembrança de algo que se perdeu e que a memória é incapaz de alcançar. Que assim seja, pois há um poema que se dissolveu em torpor e nunca mais há de reviver, só os escritos fúteis, as falas inúteis e um tipo de beleza inalcançável hoje como sempre foi. Sombras trágicas, dispersas, destituídas de rosto, impossíveis de olhar.
Voltam os redemoinhos, sentimentos soltos mergulhados em poeira que os olhares antigos levantam e que haverá de cobrir tudo – as lembranças, os sentimentos confusos, as emoções que se perderam e que nem o tempo haverá de resgatar. Um pássaro negro a repetir nunca mais.
O velho ainda traz consigo alguns sonhos da infância. Não aqueles de futuro e de fantasias que se sonha acordado com olhos abertos. Mas sim os de voar contra o céu cinzento ou então cair num abismo sem fim, incapaz de agarrar-se em paredes ou em galhos inexistentes. Há também nesses sonhos a presença inesperada de homens e mulheres que morreram e foram seus amigos.
O sono transforma-se numa vida paralela. Há também indecisões, transformações de desejos, algo distinto das coisas da realidade, como se o sonhado fosse em si mesmo a concretude da vida sem impedir a existência de sonhos dentro dos próprios sonhos. Chuvas insanas, deitadas sobre terrenos que permanecem secos em estranhos desertos a formar grandes lagos salgados.
As lembranças também se juntam nos grandes lagos da memória, pensamentos loucos, delírios insensatos. Aproxima-se a chuva que o vento transforma em temporal com a violência de antigos sentimentos esquecidos, quem sabe. E algo muito próximo da tristeza, passo a passo, transforma o desejo do pranto na contemplação de coisas infinitas.
Celso Japiassu: Poeta, articulista, jornalista e publicitário brasileiro. Trabalhou no Diário de Minas como repórter, na Última Hora como chefe de reportagem e no Correio de Minas como Chefe de Redação antes de se transferir para a publicidade, área em que se dedicou ao planejamento e criação de campanhas publicitárias. Colaborou com artigos em Carta Maior e atualmente em Fórum 21. Mora hoje no Porto, Portugal.
É autor de Poente (Editora Glaciar, Lisboa, 2022), Dezessete Poemas Noturnos (Alhambra, 1992), O Último Número (Alhambra, 1986), O Itinerário dos Emigrantes (Massao Ohno, 1980), A Região dos Mitos (Folhetim, 1975), A Legião dos Suicidas (Artenova, 1972), Processo Penal (Artenova, 1969) e Texto e a Palha (Edições MP, 1965).