Poesia & Conto

Três pequenos contos | Rafael Sousa Santos

I

 

Hans voltava a casa, enfiado dentro de um casaco claramente desajustado à sua compleição, de sujeito alto e esguio, mas nem por isso adequado à estação invernal. Fazia naquela noite um frio de rachar, e o casaco, que sendo largo, era ligeiro e curto, deixando-lhe expostas as pernas ao gelado vento, ocasionalmente trazendo pingo de água que, como solução corrosiva, lhe penetrava impiedoso nas calças para lhe lembrar a sua mortal condição. Ainda assim, não era apenas o frio que apoquentava Hans naquela noite. Não era sequer o frio que lhe impunha a apressada marcha, ruas afora, com tal balanço que se diria fugindo de tunante ou gandim. Tornara-se norma nos últimos meses para Hans acabar as noites de quinta-feira no bar Leopold, estabelecimento insalubre e de frequência muito pouco recomendada, por pressão dos colegas de trabalho, e a bem dizer, por falta de satisfatórias opções nas redondezas. Impunha-se ele próprio a aceder ao rotineiro convívio, entendendo a semanal interação como uma obrigação, um requisito mínimo para se poder dizer parte de uma comunidade de indivíduos. Todas as quintas-feiras, no entanto, sentado ao balcão do viscoso bar Leopold, bebendo e fumando demais, inevitável excesso, à força de suportar as conversas idiotas com os colegas de trabalho, acabaria por se arrepender do autodeterminado compromisso convivial. Todas as quintas-feiras, acabaria também por desvalorizar as suas inevitáveis urgências fisiológicas, passando de largo das tenebrosas casas de banho do bar Leopold, onde se diz que fora concebido pelo menos um terço da população local, para se ver assim em marcha urgente e trôpega, com a boca amarga do vinho e do tabaco, e com a bexiga prestes a explodir. Só então, em aguda aflição, se lembrava que no caminho para casa, ainda longo, de uma dúzia de quarteirões, não havia uma só esquina discreta onde pudesse alijar-se de seus males. E como incapaz fosse de certos indecoros, como servir-se de inocentes árvores ou marcos do correio, fechava os olhos em dor, esticava o nariz para diante, e avançava a toda a velocidade pelas ruas desertas, atravessando cruzamentos com temerário ímpeto. Tendo toda a sua presença de espírito aplicada na contração esfínctica, e do torpor alcoólico, que já ia fazendo sentir, não se apercebeu Hans da diligência que surgia veloz de rua transversal, e que o abalroou de forma brutal e definitiva. Estilhaçadas as pernas, ainda contou pelo menos duas pancadas com a cabeça, até se ver, finalmente, estendido no chão. Não sentia dor, apenas um calor a alastrar-se no interior da cabeça, e com alívio, a bexiga a esvaziar-se.

 

 

II

 

Chegou à minha mesa, e assumindo desdenhosa postura, de mãos na cintura e anca inclinada, sempre para a direita, me atirou à cara, qual pano encharcado: o que é que tu queres? De imediato me surgiu na cara um sorriso largo e apaixonado, de lábios finíssimos, quase inexistentes, seguidos de proeminentes e orgulhosas gengivas. Estás muito bonita hoje. Olha-me este, disse ela, revirando os olhos com afetada impaciência, logo me havia de calhar um pinga-amor. Era de facto bonita, o motivo da minha militante presença naquele café. Não que tenha muito mais o que fazer, mas ainda assim… É verdade, estás muito bonita. Sorte a minha… Se não queres nada põe-te a andar, que há mais quem queira e as mesas são poucas. Todas as manhãs chego cedinho e sento-me aqui, frente ao balcão. É o melhor sítio para a ver passar. Quase sempre encontro o Salvatore ou a dona Alda, com quem fico a conversar. Depois saio e vou almoçar a casa da minha tia. O raio da velha está cada vez mais insuportável. Traz-me um café então. Beh, bufou irritada e virou costas. Falando nisso, não tarda para o meio-dia. À tarde é mais difícil conseguir esta mesa, por isso costumo sentar-me no canto, que tem vista para toda a sala. Depois já só saio à hora de fechar, a mais das vezes sacudido à vassourada. Toma, diz-me ela, lançando-me o café para a frente, e se quiseres açúcar vais tu busca-lo. Voltou depois junto do balcão, sem me dar tempo de lhe agradecer. Um sujeito vindo da esplanada aproximou-se dela. Tinha bom aspeto, e à primeira estupidez fê-la sorrir. Depois pediu-lhe uma cerveja, fazendo passar-lhe a mão pelas costas. Grande canalha. Olha lá, o patrão diz que não podes pedir um café e passar aqui o dia. Não era infundada a advertência. Normalmente pedia dois cafés, um de manhã, outro à tarde. Por vezes, em dias de tentação, um bolinho. Mas era raro. A vida não está nada fácil, e para ir ao café todos os dias, era o quanto podia gastar. Dantes ainda roubava uns trocos à velha, mas ela deve ter-se apercebido, porque agora esconde sempre a carteira. Desgraçada, para que precisa ela do dinheiro? Trazes-me uma cerveja?, e à semelhança daquele homem, também eu lhe passei ao de leve a mão pelas costas nuas, o que a fez dar um salto. Atrevido de merda, se me voltas a tocar parto-te a cara, e varou furibunda pelo café, na direção do balcão. Pelo sim pelo não, nessa tarde achei melhor ficar por casa.

 

 

III

 

Alguém chamou o velho elevador, maquinário rafado e barulhoso, o que resgatara Aleksandar de um torpor profundo e assaz prolongado. É ela!, pensou o jovem Aleksandar, por alturas em vésperas de exame, e por isso, defrontando de frouxa vontade um grossíssimo tomo sobre a reprodução das plantas. É ela, só pode ser ela. Tratou logo de abandonar o escritório, em tempos de seu pai, ao qual se referia tinhosamente como a masmorra, e de correr para a porta de entrada, onde cravou à fechadura. Como estará vestida?, pensou ele, anda sempre tão bonita. Deteve-se então o vetusto engenho, rangendo e apitando, como se estivesse na sua derradeira viagem. Ouvindo passos, e de coração desgovernado, esperava Aleksandar o momento de flagrar a beldade, quando a realidade se impôs, trágica e devastadora. Não era afinal ela, mas a vizinha da frente, a atarracada e birrenta senhora Benedetta, arrastando o seu minúsculo cachorro, o qual, à falta de evidência contrária, se poderia perfeitamente tratar de uma ratazana. Todas as manhãs, estando Aleksandar ainda a desadormecer, se junta a senhora Benedetta à vizinha de cima, a viúva Frabotta, para interminável sessão de chá e mexerico, fazendo-se acompanhar de frenética guincharia e raspar de unhas no soalho. Desolado, tornou ele à masmorra, para encontrar inalterado cenário de livros e papelório, com o colossal tomo sobre a reprodução das plantas a arrematar a secretária, e tudo aquilo lhe causava uma inefável e indescritível tristeza. À falta de melhor ocupação, puxou do tabaco e fumou dois cigarros. Ao terceiro, recordou o inesperado e vergonhoso encontro que tivera com ela há dias, quando saia à rua, momento raro, para levar o lixo. Teria em mãos uns impressionantes cinco sacos, cheios até ao limite, o plástico esgaçado, abrindo por todo o lado alarmante rasgos, e pingando pelo chão inevitável e fedorenta aguadilha. Da excessiva carga lhe entorpeciam os movimentos, fracassando repetidas tentativas de fechar a porta, quando ela saiu para o corredor. Os sacos bloqueavam a passagem, e exasperado com a presença da formosa, Aleksandar tentava por tudo fechar a porta. Acabou por desfazer-se um dos sacos, depois outro, espalhando pelo corredor atroz de fedentina imundice, onde ele ainda foi capaz de enfiar pés e mãos, nesta se revolvendo como um danado. Nenhuma palavra fora trocada. Ela correu de volta a casa. Aleksandar, a instantes do colapso, correu também, mas para a rua, tão rápido quanto foi capaz. Voltou muito mais tarde, depois de varar pela cidade, destruído e humilhado. Cruzar-se-ia ainda no corredor com a senhora Benedetta, de ratazana atrelada, que não desperdiçando a oportunidade, lhe atirou de imediato: badalhoco. Como podia então o jovem Aleksandar, depois de episódio tão abominável, resolver-se a falar-lhe, a elogiar-lhe os bonitos olhos, a convidá-la enfim para um refresco na feira popular? Não podia. Ficara irremediavelmente marcado, recordado com sacos do lixo, a redemoinhar naquela porcalhice infecta, e o fedor, meu deus, o fedor, pensava Aleksandar. Foi então que novamente, alguém chamou o velho elevador. É ela, agora é ela de certeza. E lá voltou à porta Aleksandar, deslizando pelo soalho, para suspirante enfiar o olho na fechadura.

 

Fotografia de Rafael Sousa Santos

 

Rafael Sousa Santos (Portugal, 1991) é arquiteto, investigador e doutorando em arquitetura na Universidade do Porto. Em 2021 foi investigador visitante no Politecnico di Milano, onde colaborou na didática de dois cursos de projeto de arquitetura. Neste momento é investigador visitante e bolseiro da Fulbright no Massachusetts Institute of Technology. Tem publicado sobre tópicos como o ensino do projeto, o papel do desenho, métodos de pesquisa qualitativos, ou planeamento urbano. Em ficção, publicou o conto “Nada a fazer” na revista Arcádia, e o conto “A regra” na revista Desassossego.


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