Cultura

Metamorfose | Daniela Pace Devisate

Colocou o dedão do pé na água do mar, para sentir a temperatura. Estava friinha, mas não gelada. O sol ofuscava, bem no alto de um céu azul, com poucas nuvens. Ouvia risos e gritinhos das crianças que brincavam ali perto, espirrando água umas nas outras. Sentia a brisa acariciante no corpo, essa brisa marinha que há tanto tempo não sentia. Avançou, a pele arrepiada, a água já na cintura. O marido espiava, de longe, refestelado na areia, sobre a toalha vermelha, já meio zonzo de tanto álcool ingerido. Em pleno gozo de suas férias de servidor público. Ela duvidava que ele conseguisse se mexer, mesmo se ela estivesse se afogando. Fechou os olhos para não ver mais. Dobrou os joelhos, submergindo até o pescoço e deixava as ondas passarem pelo seu corpo, como se recebesse uma massagem de mãos sábias, experientes. De súbito, mergulhou. Uma onda mais forte a arrastou, e nessa luta deliciosa com o mar, não se importava de sair perdedora. Saboreava o sal na língua.

 

De repente, ouviu o marido gritar seu nome, o bigode negro tremendo:

 

– Cristina!! Cristina !!!

 

Nem ligou. Estava casada já com o mar…Como prova disso, uma onda mais violenta arrebatou-lhe a aliança de ouro. Assustou-se, tentou ainda encontrar, olhos abertos em baixo da água. Inútil. Iemanjá já devia estar de posse dele, o guardara em sua caixa de jóias, no fundo do oceano. Então, ainda mais apaixonadamente, entregou-se de corpo e alma àquelas águas esverdeadas, mergulhou o mais fundo que podia e que seu fôlego de ex-fumante permitia. Sentia-se em total fusão com a luz, o ar e as ondas. A liberdade fazia seu peito irradiar felicidade. Muito longe, como num sonho, via a figura borrada e corpulenta do marido, agora finalmente de pé, agitando os braços e abrindo a boca. Mas ela não ouvia o que ele dizia, dali só ouvia o bramido das ondas. Ofereceu o rosto ao sol, sentindo seu calor, em contraste ao corpo mergulhado na água fria. Aquele momento tinha vocação de eternidade, ela estava suspensa dentro dele. Músicas a invadiam, vindas de algum lugar desconhecido da memória. E ela cantava, espantada com a cristalinidade da própria voz. Quando cansou, boiou por longo tempo, sem pensamentos, corpo e mente flutuantes. Depois percebeu que estava no fundo, muito longe da praia. Tentou pisar no chão de areia e não alcançou. Nem enxergava mais o marido. Será que tinha ido embora¿ Ou teria ido buscar socorro¿ Queria sentir desespero, mas percebeu, novamente surpreendida, que o que sentia era um enorme alívio.

 

Foi então que suas pernas começaram a formigar. Aos poucos, iam grudando uma na outra, formando uma só carne. E lentamente, causando cócegas, foram surgindo as escamas, brilhantes, prateadas, até o umbigo. Não se assustou. Era como se tivesse esperando por isso há tempos. Como se só agora, sua verdadeira natureza pudesse ser revelada. Nadou para mais longe ainda, espadanando sua bela cauda recém-adquirida espalhando gotículas de arco-íris. Engraçado, a linha do horizonte a atraía, como uma isca no anzol. Para lá rumava, enquanto o sol descia suavemente. Logo o poente iria incendiar o céu e refletir no mar suas fagulhas avermelhadas. Encantada com sua nova fforma, ela ensaiava malabarismos aquáticos. Ainda teve um último pensamento de saudade da terra, ao lembrar do filho adolescente, seus belos olhos ansiosos e seu rosto espinhento. Mas foi só até que o cardume de golfinhos a saudasse.

Fotografia de Daniela Pace Devisate

 

Daniela Pace Devisate nasceu em São Paulo, capital, em 20 de julho de 1971. Vive atualmente em Iguape. é professora de arte, poeta e artista visual. Teve poemas publicados em diversas revistas literárias digitais, como Germina, Mallarmargens, Literatura&Fechadura, entre outras. Em 2018, participou da coletânea da antologia Voos Literários, pela editora Essencial. No mesmo ano, participou de feiras de publicação independente, onde vendia seus livros artesanais de poesia, editados por sua editora cartonera, a Verso Livre. Em 2019, lançou Haikai Tupy, edição independente com tiragem minúscula. Em 2020, participou da plaquete As luas e suas variações, organizador Cláudio Daniel; participou da antologia Simpósio dxs poetxs bêbadxs; publicou um poema na revista portuguesa T¨lön, editada por Luiza Nilo Nunes e nesse mesmo ano, publicou seu primeiro livro individual, Tantos Quartos lunares, pela editora Urutau. Em 2021, saiu no livro As mulheres poetas na literatura brasileira, editora Arribaçã. Lançou um livro pela editora Kotter, Véus de Alethea.



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