Poesia & Conto

Três pequenos contos | Rafael Sousa Santos

o protesto

 

No dia em que tudo se passou, amotinavam-se às portas da nossa assembleia, o antigo convento de Pianezzer, vários milhares de pessoas. Reforços foram chamados, mas vai que na espera os ânimos se exaltam, logo tratou a guarda civil de montar defesa ao convento, bloqueando entradas e saídas, guardando janelas e balcões. É então que da grande escadaria desce o regedor Ugo Salaviza, homem atarracado e farto, filho e neto de militares, homem duro de disciplina e trato, um tanto rezingão – por muitos chamado de beiçudo – e por demais experimentado nas coisas da vida e dos homens, dos quais, como para Terêncio, nada lhe era estranho. Cruzou depois o átrio marmoreado da assembleia, direito à entrada principal, perante o olhar confuso da guarda civil. Senhor regedor, o que está a fazer?, perguntou-lhe então o tenente Pozzi, responsável do contingente. Ugo Salaviza não ouviu, ou fez por não ouvir, pelo que seguia imperturbado o seu caminho. Senhor regedor?, insistiu o tenente. O que é que você quer? Vou almoçar, já viu as horas? Como diz?, almoçar? E de facto, Ugo Salaviza preparava-se para abrir a porta monumental da assembleia – uma bela porta, há que dizer – entretanto bloqueada por tenção defensiva. Precisou ainda de enxotar o jovem guarda que, seguindo ordens, se mantivera a esta firmemente agarrado. Dê-me licença, sim? Não saia agora senhor regedor, é perigoso. Qual quê?, aquilo são uns curiosos. Isso nem lhe fica bem tenente Pozzi. Veja lá é se não os deixa entrar, senão depois é um vê-se-te-avias. E saiu ele para o meio da multidão enfurecida. Os primeiros manifestantes estacaram a olhar o regedor, que lhes aparecia assim de caras, sem escolta que se visse, disposto a atravessar aquela irada turba pelo próprio pé. É pá, saia-me da frente. O tenente Pozzi olhava do alto da escadaria, estupefacto com a audácia ou inconsciência do regedor, que à força de braço lá ia atravessando aquele mar de gente. Dirigia-se então Ugo Salaviza para o pequeno restaurante onde todos os dias almoçava, infelizmente já desaparecido nos nossos dias. Se não me engano, chamava-se Mamma Rosa. Nesse momento já a palavra se havia espalhado, e uma grande parte dos manifestantes sabia que entre eles, sem qualquer apoio ou cautela, andava o volumoso regedor. Ali vai ele, a caminho do restaurante, disse alguém. Estes tipos só sabem comer e beber, disse um outro. Lambuza-te aí, ò porcalhão. Que não tenham sido estas as palavras exatas, servem-nos ao relato na perfeição. A verdade é que o regedor Ugo Salaviza não chegou a almoçar nesse dia, e a bem dizer, em nenhum outro. Não chegou sequer a sentir o cheiro guloso do pitéu que na cozinha fumegava, e que era nesse dia à base de carnes gordas e feijão – note-se o detalhe a que se prestam os nossos jornais. Depois de se sentar e de lhe encherem o copo de vinho, levantou-o à luz para examinar-lhe o tom e a consistência, reclinando-se tanto que a cadeira acabou por ceder. Ali caído, não mais o pesado regedor se voltaria a levantar. Já sobre as responsabilidades deste trágico desfecho, muito as opiniões se têm dividido. Uns vêm atribuindo-as ao próprio regedor e à sua ampla compleição, por constituir uma carga excessiva, e portanto, insustentável para o mobiliário mais banal. Outros, no entanto, têm responsabilizado a fraca constituição da cadeira, não fosse o Mamma Rosa um restaurante antigo e modesto, pouco dado a ações de beneficiação e manutenção dos seus móveis. Existem ainda os da terceira via, já por várias vezes ironicamente chamados de moderados, que consideram a culpa tanto do farto regedor como da débil cadeira, uma combinação tantas vezes fatal, como este caso afinal o comprova. O certo é que a cadeira cedeu e que Ugo Salaviza caiu, indo a sua nuca encontrar certeira um degrau de aresta viva, o que, como o povo muito bem diz, não é coisa que dê saúde.

 

o sequestro

 

Coronel, não vejo qualquer necessidade disso. Não interessa, disse-me ele, sozinho é que você não vai. E foi como uma sentença. Vejo-me agora enfiado num jeep, escoltado por um sargento e dois soldados, a caminho de uma sapataria. Imagine-se. O sargento vai à frente com o condutor, e eu vou atrás, entre dois soldados fortemente armados. É verdadeiramente patético. Até para comprar sapatos preciso de sair com a escolta. É por estas e por outras que ninguém se aguenta cá por muito tempo. Desculpem lá isto, deviam ter coisas mais importantes para fazer…. Ora essa senhor Karlsson, temos muito gosto em acompanhá-lo, disse o primeiro soldado. A verdade é que não podia lá ir sozinho, disse o segundo soldado, em tom de reprimenda. Todo o cuidado é pouco, acrescentou o primeiro. Sem dúvida, rematou o segundo. O sargento, esse, ia em animado palratório com o condutor desde que deixamos o quartel. O fumo não o incomoda, pois não senhor Karlsson?, perguntou ele entre baforadas. Felizmente surgia já da vegetação baixa a silhueta da cidade de Kadar. Seria boa ideia comprar também um chapéu, que com calor assim ainda me dá uma coisinha má. Na minha terra havia uma mulher que tinha enlouquecido, segundo se diz, por apanhar muito sol na cabeça. Com isto levei a mão à minha própria cabeça, que estava, como seria de prever, a escaldar. Senhor Karlsson, posso fazer-lhe uma pergunta?, disse um tanto a medo o primeiro soldado. Claro, pergunte o que quiser. A verdade, é que tenho andado cada vez mais esquecido, desde que tive a feliz ideia de vir para cá. Também as mãos me tremem, mas não sei se haverá alguma relação. Bem, começou o soldado, diz-se que o senhor já foi sequestrado pelas milícias. Sim, duas vezes, e olhei para o boné do soldado. Duas vezes?, e não ficou com medo de andar por aí sozinho? Costuma dizer-se que não há duas sem três, atirou da frente o sargento, jocoso. Não tem outro boné consigo, pois não?, perguntei eu. Outro boné?, repetiu o soldado. Lamento muito senhor Karlsson, só tenho este, e dar-lho-ia de bom grado, mas é contra as regras, disse olhando para o sargento. Depois procurou nos bolsos. Mas tenho um lenço, talvez ajude. É muito amável, disse eu, e coloquei o lenço na cabeça, segurando-o pelas pontas. Era um lenço branco de linho, e cheirava a lavado. No entanto era demasiado fino, e serviu por isso de pouco alívio. Já o segundo soldado ia lançado em entusiasmado relato, aleatório e indecoroso, quando foi interrompido por uma brusca manobra do condutor, que por pouco não nos lançou contra uma árvore. O jeep estremeceu, descendo a vala de pneus rasgados, até batermos no fundo. O lenço desceu-me para os olhos e na confusão pouco percebi do que ia acontecendo. Ouvi disparos e gritos. Então, alguém me arrancou o lenço da cara com a ponta de uma semiautomática. Vejam bem, disse o homem, se não é o nosso amigo Harry Karlsson. Assim como assim, sempre se poupa em apresentações. Vá, tragam-no. Cobriram-me a cabeça com um saco, o que, dadas as circunstâncias, não deixou de me ser agradável. 

 

 

 

a campanha

 

Nosso alferes, é capaz de me dizer onde fica afinal essa maldita cidade de Navn? Sim meu capitão. Segundo as nossas cartas, Navn fica do lado de lá daquela colina. Mas quando as duas companhias, excecionalmente comandadas pelo capitão Einar Birro, chegaram ao ponto mais alto da colina, constataram tristemente, que mais uma vez, a realidade teimava em não corresponder com as cartas que traziam. Antevendo já aquele desfecho, parecia o capitão prestes a rebentar. Raios me partam. Afinal onde foi o nosso alferes desencantar essas cartas? Deixe-me cá ver isso. E logo arrancou as cartas da mão do alferes Fröding, que coçava a cabeça como frequentemente faz quem está confuso. O que é isto? Diz aqui que a nordeste, a menos de uma milha, deveria haver uma linha de água. E espetou com as cartas no nariz do alferes. Está a ver alguma linha de água? Diga lá Fröding, está a ver? Não meu capitão. Pois claro que não. Estas cartas são inúteis, e você ainda não foi capaz de perceber isso. Gosta de passear Fröding, gosta? Então vá passear e poupe-nos da sua incompetência. E logo ali, rasgando-as em quatro, se desfez das cartas o capitão. Liguem-me ao posto de comando, e rápido. Cauteloso se aproximou o responsável das transmissões. Estamos fora de alcance meu capitão. Valha-me nossa senhora. De tal maneira a cólera e a abstinência lhe entorpeciam o pensamento, que vendo-se assim à mercê do acaso, por pouco não mandou o capitão o chapéu às urtigas. No entanto, à falta de evidência contrária, foi também devido ao acaso que naquele momento se cruzou com o invulgar regimento um peregrino. Assim foi, um peregrino, de compridas barbas e cabelos, trouxa às costas e bordão, que olhava aquele aparato com curiosa solicitude. Dirigiu-se-lhe logo com a sua habitual cortesia o capitão Birro. Ouça lá, sim você, por acaso sabe onde fica a cidade de Navn? Um pouco surpreso da brusca interpelação, ainda olhou em volta o peregrino, não fosse a outro a pergunta endereçada. Sim, respondeu então, sei bem qual a direção de Navn. Entre as linhas de soldados ouviram-se incontidas manifestações de alegria. A sorte sorrira afinal àqueles homens, de forma totalmente inesperada. De tão contente, se apressou a atalhar o alferes Fröding. Pode então dizer-nos onde fica Navn? Poder posso, começou o peregrino, mas não o farei. Não tivera tempo o alferes de assimilar tão inesperada resposta, lhe caiu logo como um trovão o capitão Birro. O quê? O que é que você quer dizer com isso? Acha que andamos aqui a brincar às tropas? Deixou o peregrino que amainasse a exaltação do bruto, para então lhe expor a sua razão. Como vos disse, conheço bem a direção para Navn. No entanto, recuso-me a colaborar com uma operação militar, seja de que natureza for. Considero os exércitos desnecessários e até prejudiciais às sociedades. As armas são instrumentos malévolos e o conflito antagónico da virtude. Lembrem-se o que diz Mateus, bem-aventurados os pacificadores, pois serão chamados filhos de Deus… Ò homem, cale-se lá com isso, cortou o capitão Birro a sermoneada do peregrino. Era só o que me faltava, vir para este fim de mundo para ouvir a catequese.

 

Fotografia de Rafael Sousa Santos

 

 Rafael Sousa Santos (Portugal, 1991) é arquiteto, investigador e doutorando em arquitetura na Universidade do Porto. Em 2021 foi investigador visitante no Politecnico di Milano, onde colaborou na didática de dois cursos de projeto de arquitetura. Neste momento é investigador visitante e bolseiro da Fulbright no Massachusetts Institute of Technology. Tem publicado sobre tópicos como o ensino do projeto, o papel do desenho, métodos de pesquisa qualitativos, ou planeamento urbano. Em ficção, publicou o conto “Nada a fazer” na revista Arcádia, e o conto “A regra” na revista Desassossego.





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