Cultura

Tópicos do Banquete de Platão | Clécio Branco

Tomei um pequeno trecho do Banquete, o momento em que Sócrates entra em cena na conversa. Ele usa seu método, o de definir as coisas fazendo perguntas. Para Sócrates, saber significa saber definir a essência das coisas. Quem não sabe definir as essências das coisas, fala, mas não sabe nada, não diz coisa com coisa e acaba entrando em contradição consigo mesmo. Definir uma coisa, para Sócrates, é atingir a sua essência. 

 

Na intervenção que faz ao discurso de Agáton, ao invés de arranjar argumentos sobre o amor ou florear os méritos do amor, Sócrates quer uma definição do amor, deseja examinar a sua essência, quer a natureza do amor para depois verificar os seus efeitos. Sócrates pergunta: “o amor é amor de nada ou amor de algo?”.

 

 E Agáton responde: 

 

– É amor de algo. E Sócrates diria assim: 

 

E o amor deseja e ama quando ele tem isto que ele deseja e ama, ou quando ele não o tem? Agáton responde: 

 

– Quando não o tem. Sócrates montou uma armadilha para seu interlocutor. 

 

Com duas frases, faz uma desarrumação no discurso de Agáton, numa suposta atitude de quem ignora, nisto consiste a sua genialidade. Se o amor é o amor de alguma coisa, o amor só pode existir em relação a alguma coisa que está fora de si, algum objeto que o amor não possui. O homem deseja algo que não possui, algo que foi “perdido” e é esse algo que se encontra num mundo metafísico. 

 

Na busca desesperada no mundo das sensibilidades, o homem estaria, em vão, buscando aquilo que ele próprio não tem e não é. O homem busca aquilo que lhe falta essencialmente. O amor ou o desejo é carente de um objeto que não está à mão. “Quem deseja, deseja aquilo de que é carente”, sendo que não desejaria se não fosse carente. 

 

Platão introduziu a noção de objeto na relação intrínseca do desejo com o objeto, com algo que está alhures daquele que deseja. Nesse caso, diz Sócrates: “o que se deseja é simplesmente prolongar no futuro isso que já se tem hoje”. 

 

Desejar ou amar, nesse caso, seria querer o que se tem agora no futuro, prolongar futuro adentro o que se tem no presente, preservar, conservar.

 

Sócrates introduz no diálogo um outro personagem para fazer um estratégico desvio. Introduziu a parteira Diotima, que era entendida em questões de amor e, supostamente, tudo o que ele sabe sobre amor aprendeu com ela. 

 

Diotima contou para Sócrates como nasceu o amor. O amor nasceu da seguinte maneira: os deuses foram dar uma festa em homenagem ao nascimento de Afrodite. 

 

Nessa ocasião estava presente, entre os convidados, um deus chamado Poros, que pode ser traduzido por esperteza. E Pênia, que significa pobreza, invadiu a festa dos deuses para se aproveitar do momento em que Poros se encontrava embriagado de néctar. 

 

Desse encontro amoroso de uma humana com um deus, nasceu um filho. O filho de Pênia com Poros se chamou Eros. O amor é sempre pobre, no sentido em que ele é sempre um pedinte, um indigente. 

 

Isso pelo lado da mãe, mas pelo lado do pai ele é esperto, insidioso, maquinador, cheio de estratagemas e recursos. 

 

O amor, nesse mito, é filho de um deus com uma mortal, se por um lado parece ser auto-suficiente, por outro lado, é carente de algo que não tem. 

 

O amor tem uma função de complementação entre a Terra e o Céu, entre os homens e os deuses, entre aquilo que se separou. 

 

Tanto em Aristófanes, quanto nesse diálogo de Sócrates com Agáton, o amor busca algo que ele não tem, o amor busca algo do qual carece, busca algo que está fora dele, busca algo para preenchê-lo, é a mesma história de desejar ter o futuro que não tem. O amor, então, busca algo que seja perene, eterno e imortal. A perfeição do objeto deve compensar a imperfeição do sujeito. 

 

O que temos aqui? Uma transcendência, uma teologia. Em que sentido é transcendente? Algo que vem de fora, que vem de cima e que vai suprir a falta. Essa matriz transcendente está inteiramente intocada, ela permeia nosso discurso e nossa vivência do desejo. A matriz permanece intocada porque ela é desencarnada, fixa e suspensa acima do mundo. 

 

Agora, com a psicanálise lacaniana, já se é mais sofisticado, já não se acredita nesse objeto salvador, tal como fora em Platão. Em Lacan, a falta é potência em ser. Não se crê mais neste objeto que viria nos salvar. Mas esse modo de pensar não se popularizou. Ainda estamos presos à tristeza da falta, uma tristeza religiosa: se o desejo foi definido como uma carência, então, essa carência sempre anseia por uma completude, e não podemos dizer que esse anseio não seja religioso na sua matriz. 

 

O que interessa nesse texto são os pares: perfeição-imperfeição, eternidade-mortalidade, completude-incompletude. É a dialética da dependência que faz com que o homem dependa daquilo que não tem. O homem fica dependendo sempre desse preenchimento, dessa compensação que o objeto pode oferecer em relação às insuficiências, carências e precariedades. 

 

Carência e precariedade são a mesma dinâmica da religiosidade. A vida se resumiu a uma promessa, com Platão, com o cristianismo e com outras formas de aspiração à transcendência. Aqui pode se encaixar aquilo que se diz ser da natureza do psiquismo humano. Ou seja, uma ideia que se tornou comum (senso comum), aquilo que se atribui à natureza do psiquismo.

 

O homem é naturalmente religioso, o homem busca naturalmente as coisas que são do Alto ou ainda, o homem tem sede de Deus. Nessa dialética, se convencionou dizer que o psiquismo é isso. Mas valeria a pena pensar que essa concepção é histórica, nasceu lá com os gregos da Grécia Clássica.

 

Para Platão, isso não é um problema, é um propulsor que eleva o homem a uma esfera inteligível em que ele contempla a Ideia e isso só estimula o pensar filosófico, no qual pela filosofia o pensador poderia encontrar estabilidade, inteireza, justeza, perenidade que a nossa condição de mortais nos nega. A divisão do mundo, operada por Platão, instaura uma separação no seio do ser, operando, com seu método da divisão, uma diferença de natureza entre dois planos. 

 

De um lado, estabeleceu um plano divino constituído por Ideias, mundo ideal acima das estrelas, mundo das essências ou puras formas inteligíveis, lugar dos modelos superiores que implicam uma realidade verdadeira que existe em si e permanece imutável, suspensa na identidade a si mesma, apreendida apenas pelo pensamento.

 

De outro lado, o plano dos corpos sensíveis, mundo terreno das aparências, da matéria, das imagens que se refletem nos corpos sublunares, lugar dos fluxos, das mudanças e devires, sempre diferentes do que são, região inferior apreendida pela experiência sensível e que, no melhor dos casos, conquista uma realidade segunda, isto é, torna-se cópia, caso se deixe ordenar e medir à semelhança do mundo modelar das alturas. 

 

Esse modelo inventado por Platão vai se constituir em uma crítica às formas de conceber o desejo em relação à concepção na Grécia pré-socrática, o que produziu uma verdadeira reviravolta nas concepções do desejo, do amor e do amante. O amante não terá mais, como objeto dos desejos, os belos corpos, mas as formas inteligíveis das quais partem os reflexos dos corpos sensíveis. 

 

Giovanni Reale diz da tese platônica: “Platão apelou para a razão na luta contra o Eros, mas isso não lhe foi suficiente para alcançar a virtude. Indo além do racionalismo socrático, ele devia refugiar-se na mística e tentar nela a própria salvação”. Platão estabelece um escalonamento com cheiro de santificação. 

 

“O homem deve passar: 1) do amor pela beleza dos corpos, 2) ao da alma, 3) à beleza das atividades humanas e, finalmente, 4) à beleza dos corpos. Corpo, alma e saúde: o conceito de conhecimento até alcançar 5) a contemplação e a fruição do bem em si”. 

 

Não haverá mais as singularidades da beleza e dos corpos, mas uma forma universal de beleza, uma forma única de corpo belo e uma única forma de desejar. Assim, o desejo tornou-se objeto de consideração teológica que aparecerá nas práticas confessionais dos padres e pastores. 

 

Hoje, há menos confissão, elas foram gradativamente sendo substituídas pelas terapias, que preveem “a cura da alma do louco definido como doente mental e a cura da alma edipiana portadora de um desejo inconsciente interpretado como incestuoso e parricida, isto é, culpado”.1 

 

Nota

 

1 DELEUZE, G./GUATTARI, F. O Anti-Édipo. In Clécio Branco: euphilosofia.blogspot.com

 

Fotografia de Clécio Branco

 

Clécio Branco é psicólogo clínico e Doutor em Filosofia. 

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