Cultura

Sangradouro | Adriano B. Espíndola Santos

Eu disse à Lúcia que tudo tem um preço. Ela, agora, madura, vem se queixar da vida, dos graves problemas de saúde que adquiriu. Ainda tem a desfaçatez de alegar que é culpa dos outros; pouco ou nada foi responsável pelo seu destino. Quando éramos adolescentes e adultos, ela se punha como a minha líder, a quem deveria obedecer depois da morte de mamãe. Aproveitou-se do desleixo de nosso pai para ditar as regras em casa – seria injusto dizer “desleixo”, pois pai trabalhava como caminhoneiro e, segundo ele, não podia parar, sob pena de ser agarrado por um mal que acometia a sua família: depressão. Cedo Lúcia deu para fumar. Tia Cida, irmã de papai, que ficava um pouco conosco – três dias na semana –, fumava uma carteira atrás da outra, e deixava os cigarros à mostra: na mesa, nas poltronas e no cinzeiro. Lúcia pegava e fumava escondido, com apenas quatorze anos. O que eu fazia: chorava, achando que ela ia morrer como mamãe, e eu ficaria mais largado no mundo. Com quinze para dezesseis anos, Lúcia já era fumante inveterada, comprava as suas carteiras com um dinheiro que pai deixava para a nossa mantença. Nessa altura, não havia mais tia Cida, que se amancebou com um forrozeiro cantor lá das bandas de Quixadá. Ou seja, ficamos eu e Lúcia – ou eu sozinho, com Deus, muitas vezes. Lúcia cuidava de mim, fazia a comida, dava banho e botava para dormir, e, por isso, alegava que não tinha mais tempo para estudar; que estava muito cansada; mas que eu, sim, deveria estudar para virar gente e cuidar de nossa família. Não se via novidade em Oiticica. Lá, fiz até o quinto ano primário. Se quisesse estudar mais, teria de me mudar para Quixadá, Quixeramobim ou Acopiara. Passei três anos sem frequentar a escola. Trabalhava na lavoura do tio Honório, amigo de infância de pai. Nesse tempo, Lúcia deu para sair por dias, o diabo sabia do seu paradeiro. Voltava amuada, doente, sem forças. Eu que era responsável agora por cuidar dela. Nosso pai, não pisava o pé em casa por três ou quatro meses; e teve um tempo em que passou seis meses direto fora. Não foi fácil. Reconheço que Lúcia caiu em desgraça por tantas dores. Não fosse eu, que a retirei do cabaré de Jurema Braba, estaria entregue à devassidão ou à morte. No dia em que ela completou vinte anos, soubemos da notícia do fim de pai, nas estradas do Sul do Ceará. Fizeram um exame e deu consumo de cocaína e bebida alcoólica. Não penamos muito com a sua partida, sua memória já esvanecia, longe. Resolvemos nos mudar para Quixadá, uma cidade em expansão, com escola e tudo mais. Retomei os estudos, à noite, trabalhando com a enxada de dia. Lúcia fazia uma comida gostosa, então começou a vender pratinho à noite, para a vizinhança. Dava certo quando ela não caía na tentação de fumar e beber. Continuei estudando e passei no vestibular para agronomia. Fiz porque, apesar da peleja, sol a sol, gostava de cuidar das plantas e dos bichos. A dureza fez com que me formasse sete anos depois. Gritei aos céus que havia vencido, para que meus pais se orgulhassem de mim. Não tendo mais nenhuma obrigação comigo, Lúcia, após muitas queixas inúteis, largou de mão d’eu, de nós, deixando uma cartinha: “Meu irmão, não se avexe, vou procurar destino para ser feliz. Você já tá com a vida ganha. Cuide-se!”. As más línguas dizem que ela fugiu com um condenado, cangaceiro novo, ladrão de banco das redondezas. Ainda lamento sofrer com a solidão e não dar um curso à vida. Não consigo me relacionar. Penso que, se me apego, a donzela logo dará um jeito de fugir de mim. Aos poucos vou indo, morto conformado, qual bicho abatido no sangradouro.

 

Fotografia de Adriano B. Espíndola Santos

 

Adriano B. Espíndola Santos é natural de Fortaleza, Ceará. Em 2018 lançou seu primeiro romance “Flor no caos”, pela Desconcertos Editora; em 2020 os livros de contos, “Contículos de dores refratárias” e “o ano em que tudo começou”; em 2021 o romance “Em mim, a clausura e o motim”, pela Editora Penalux; e em 2022 a coletânea de contos “Não há de quê”, pela Editora Folheando. Colabora mensalmente com as Revistas Mirada, Samizdat e Vício Velho. Tem textos publicados em revistas literárias nacionais e internacionais. É advogado civilista-humanista, desejoso de conseguir evoluir – sempre. Mestre em Direito. Especialista em Escrita Literária e em Revisão de Textos. Membro do Coletivo de Escritoras e Escritores Delirantes. É dor e amor; e o que puder ser para se sentir vivo: o coração inquieto. 

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