Política

Raul Soares: prisão flutuante e núcleo de tortura e morte durante a Ditadura no Brasil | Lucas Vasques

O navio esteve ancorado no Porto de Santos, no litoral do estado de São Paulo, após o golpe militar de 1964; um dos sobreviventes relembra o sofrimento que passou.

 

 

O Brasil ostenta ainda hoje uma complexa, não resolvida e trágica relação com suas Forças Armadas. A ditadura militar no país (1964-1985) apresentou inúmeras faces cruéis, uma mais odiosa do que a outra. Torturas e mortes eram manifestações cotidianas do regime e a “criatividade” dos militares em descobrir novas formas de colocar em prática seus desejos mais sádicos era infinita.

 

Um dos exemplos foi a utilização do navio Raul Soares como prisão flutuante de militantes de esquerda, homens que se posicionavam contrários ao regime ou, até mesmo, pessoas que não tinham nenhuma relação com o cenário político da época.

 

A embarcação ficou ancorada à margem direita do Porto de Santos, no litoral de São Paulo, logo após o golpe militar em 1964, e foi utilizada como local para as mais variadas maneiras de tortura, tanto físicas quanto psicológicas. 

 

Construído em 1900, na Alemanha, e batizado inicialmente como Cap Verde, o navio mudou de nome para Raul Soares em 1925, quando foi comprado pela empresa Lloyd Brasileiro.

 

Raul Soares foi um político brasileiro. Vereador, deputado estadual e federal, além de senador, ministro da Marinha e governador de Minas Gerais. Porém, não completou o mandato, pois morreu em 1924.

 

Durante a Segunda Guerra Mundial (1939 a 1945), o Raul Soares transportou soldados da Força Expedicionária Brasileira (FEB), que participaram de conflitos na Itália.

 

Após a guerra, se transformou em navio-prisão para encarcerar militares que participaram da rebelião dos sargentos. Depois disso, a embarcação foi desativada.

 

Apenas em abril de 1964, após o golpe, o Raul Soares foi transferido do Rio de Janeiro para a cidade litorânea paulista, onde serviria de prisão política.

 

Por estar atracado no Porto de Santos, servia como aviso. Do local de trabalho, todos podiam ver o Raul Soares. Assim, era mais uma forma de intimidação dos trabalhadores para conseguir minar a militância política e cultural do município.

 

Uma das pessoas que foram aprisionadas no navio foi Osmar Alves de Campos Golegã, hoje com 90 anos. Depois de trabalhar na Companhia Docas de Santos, passou a ser funcionário burocrático do Sindicato dos Empregados na Administração dos Serviços Portuários de Santos, São Vicente, Guarujá e Cubatão (Sindaport). Porém, ele não possuía nenhuma relação direta com grupos políticos de esquerda.

 

Mesmo assim, acabou preso no Palácio da Polícia, acusado de subversão. Logo foi transferido para o Raul Soares. 

 

“Não cabia mais ninguém. Foram buscar o navio para ser a prisão política, para ser dos prisioneiros políticos. Começaram a vir todos os sindicalistas, sem distinção, não importava a categoria. Como o tempo, começaram a trazer dos outros lugares também”, relembra Osmar, em depoimento ao livro “Sobrevivi ao Raul Soares – Memórias de uma Época Sombria”, escrito por mim e por meu filho Fellipe R. Vasques.

 

Inferno em alto mar

 

A vida de Osmar se transformaria em um inferno. “A prisão no navio foi uma arbitrariedade descomunal para todos. O que fizeram foi um acinte ao respeito humano, do cidadão. Fiquei seis meses nessa agonia”, conta.

 

No livro, Osmar revela alguns detalhes do que passou na embarcação. “A primeira impressão que dava era que ninguém ia sair vivo do navio. Falavam isso frequentemente na sua cara, debochando dos prisioneiros: ‘Não se preocupa, não tem muito para se preocupar, daqui a pouco acaba’, diziam”.

 

Osmar relata episódios de tortura psicológica. “Deixavam beber água com a arma apontada para nós. Banho, só uma vez por semana, com duchas de água gelada, também com metralhadoras apontadas, enquanto estávamos nus. O mesmo acontecia no momento de fazer as necessidades fisiológicas”.

 

É quase impossível detalhar o tratamento dispensado aos prisioneiros no Raul Soares, já que muitos que saíram do navio evitavam comentar, minuciosamente, as torturas a que foram submetidos. Obviamente, passar por um processo violento deixa marcas profundas, para toda a vida. E, dependendo do grau de sofrimento imposto, é compreensível que as pessoas se recusassem a falar, criando uma espécie de bloqueio mental.

 

“Eu sabia que havia tortura, porque muita gente comentava que eles davam surras em determinados presos. Era uma ignorância. Qualquer motivo era suficiente para apanhar”, afirma Osmar, que também foi alvo do sadismo dos militares, sendo vítima de torturas físicas e psicológicas.

 

Ele destaca um caso emblemático da rotina no Raul Soares. “Houve um prisioneiro, chamado Zeca da Marinha, que ficou completamente louco, devido às condições a que foi submetido na prisão. O homem era estivador, tinha um corpo atlético. No cais, ele pegava os cachos de banana como se fossem de uva. Porém, no navio, ele não suportou as torturas. O homem precisou que os colegas de cela cuidassem dele. Quando tomava banho, se não o tirassem do chuveiro, ele ficava lá por horas. Ao acender um cigarro, se esquecia de fumar e deixava queimar inteiro, até a brasa alcança os dedos. Só se alimentava se dessem a comida na boca. Sua situação era deplorável. Tortura e violência foram demais. Morreram pessoas lá dentro, mas os prisioneiros não ficavam sabendo quem e como”.

 

Assim como estas, Osmar tem em sua memória inúmeras outras histórias que exemplificam bem a tragédia vivida pelo país a partir do golpe militar.

 

Convivência com dramas interiores

 

O martírio a que ele foi submetido no navio-prisão terminou em setembro de 1964. Após deixar o Raul Soares, seguiu a vida ao lado da família, convivendo com seus dramas interiores da forma mais leve que conseguiu.

 

Porém, a ação nefasta da ditadura estava apenas no início. Milhares de pessoas sofreram, de diferentes maneiras, os efeitos causados pelo regime militar, que deixou graves sequelas, frequentemente, irreparáveis.

 

Os governos fardados, a cada general que ascendia ao cargo máximo da nação, deixava claro o desejo de se perpetuar no poder. Tanto que os militares foram perdendo o pudor e escancararam, sem disfarces, sua vocação genocida, perseguindo, torturando e matando inocentes cada vez mais.

 

O ápice sanguinário foi a instauração do temido Ato Institucional número 5 (AI-5), no dia 13 de dezembro de 1968, no governo do general Costa e Silva, quinto dos 17 grandes decretos emitidos pela ditadura após o golpe de 1964.

 

O pútrido AI-5 concedia poderes ilimitados ao general de plantão, como cassar mandatos executivos, legislativos, federais e estaduais; suspender os direitos políticos; demitir, remover, aposentar funcionários civis e militares, além de juízes; proibir manifestações populares de caráter político; decretar estado de sítio sem restrições; confiscar bens; legislar por decreto; suspender direito a habeas corpus; obrigar acusados civis a serem julgados por tribunais militares sem direito a recurso; além de chancelar, não oficialmente, é claro, prisões injustas, institucionalizando a tortura no país. Portanto, o pior ainda estava por vir. Mas essa é outra história. 

 

Serviço:

“Sobrevivi ao Raul Soares – Memórias de uma Época Sombria”

Autores: Fellipe R. Vasques e Lucas Vasques

Editora Autografia

 

Onde encontrar em Portugal: pelo e-mail fellipe.rojas@hotmail.com

 

Em Portugal e demais países da União Europeia por este link: https://eautografia.quares.es/apex/r/quares/landingweb/detalle-producto?p2_id=46828&session=7712406504379

fotografia de Lucas Vasques

Lucas Vasques – jornalista, redator, repórter, editor em inúmeros veículos de comunicação do Brasil e escritor. Também é autor do livro “Entrevistas: Visões de mundo”.

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