Ciência

Quando a Ciência precedeu a Ética – histórias de experiências em humanos – parte IV

O campo de concentração de Auschwitz-Birkenau simboliza hoje o holocausto que decorreu durante a Segunda Guerra Mundial. Estima-se que o genocídio só neste campo de concentração tenha ultrapassado mais de um milhão de vidas. Entre elas, muitos milhares de pessoas foram usados para efectuar experiências. A lista de experiências é longa, pelo que refiro apenas algumas. Josef Mengele, também conhecido por Anjo da Morte ou Anjo Branco, foi um médico da SS que praticou experiências com gémeos (um era usado na experiência, o outro servia de “controlo” para comparação). Por exemplo, algumas das experiências consistiram em amputações (desnecessárias), ou infecção de um gémeo com uma doença, seguido de transfusão sanguínea para o outro gémeo (para estudar a transmissão da doença). A maioria das cobaias morria no decorrer da experiência, ou era assassinada depois (para que os cadáveres fossem dissecados). Outras experiências executadas por outros médicos ou cientistas alemães (quer em Auschwitz, quer noutros campos de concentração) incluíram transplantes de nervos, ossos e músculos; estudos sobre hipotermia (isto é, matar com frio de forma a compreender em que condições é que a hipotermia pode matar); estudos de infecção com doenças e respectivos tratamentos (malária, por exemplo); experiências com armas químicas (como o gás mostarda), bem como outras armas e venenos; experiências de esterilização (para optimizar a esterilização em massa); etc. etc. Poucos foram os que sobreviveram e desses a maioria ficou com lesões para o resto da vida.

 

Como foram possíveis estas (e muitas outras) atrocidades? Será que todos os alemães envolvidos eram “monstros”? Muitos acreditavam piamente na ideologia nazi, mas será que isso chega para justificar o comportamento da grande maioria deles?

 

Nos julgamentos de Nuremberga* que se seguiram à Segunda Guerra Mundial, muitos dos acusados desculparam-se de que estavam só a seguir ordens… Seria isto uma desculpa esfarrapada? Ou seriam os alemães particularmente obedientes? Ou teríamos nós expectativas erradas sobre a natureza humana?

 

O psicólogo Stanley Milgram propôs-se a estudar estas questões. Em particular, quis observar se pessoas comuns obedeceriam a ordens que envolvessem inflingir sofrimento a outras pessoas e, se sim, onde é que definiriam o “limite” do sofrimento que estavam dispostas a causar a um desconhecido. Por outras palavras, Milgram queria perceber o quão fácil ou difícil é influenciar alguém a cometer uma atrocidade.

 

 

Stanley Milgram (1933-1984) foi um psicólogo social norte-americano. Já aqui falei de uma outra experiência famosa que ele realizou e que conduziu ao conceito dos seis graus de separação (ver InComunidade, ed. 50). É considerado um nos maiores cientistas na (ainda breve) história da Psicologia Social.

 

A Experiência de Milgram

 

Milgram colocou um anúncio no jornal a informar que queria recrutar homens para participarem num estudo sobre aprendizagem. Com esse anúncio conseguiu 40 participantes entre os 20 e os 50 anos (com vários tipos de ocupações profissionais).

 

No início da experiência, um participante recrutado conhecia um outro suposto participante recrutado (que na verdade era um actor). De seguida, um cientista com bata de laboratório (também um actor) explicava aos dois que o objectivo da experiência era estudar memória e aprendizagem e em particular estudar o efeito da punição no processo de memorização. Também informava que os participantes receberiam um pagamento pela participação independentemente de como corresse a experiência.

 

Era-lhes então explicado que na experiência um deles teria o papel de “professor” e o outro de “aluno”. De seguida, tiravam à sorte e (como era tudo uma fraude) o participante ficava sempre com o papel de professor, enquanto o cúmplice ficava com o papel de aluno. 

 

Os dois participantes eram então separados, o aluno (falso) sentava-se numa cadeira eléctrica e o professor (participante recrutado) e o cientista iam para uma sala anexa onde se encontrava um gerador de choques eléctricos. O aluno era amarrado à cadeira e o professor (participante) era informado que o gerador de choques estava ligado à cadeira. O aluno tinha então que aprender uma lista de palavras e o professor tinha que testar o conhecimento adquirido fazendo-lhe questões sobre essa lista. O cientista explicava também ao professor (participante) que sempre que o aluno errasse uma questão, o professor deveria puni-lo com um choque eléctrico (usando o tal gerador). O gerador tinha 30 interruptores cada um capaz de provocar um choque mais forte que o anterior (de 15 volts – choque fraco, 375 – choque severo, até 450 volts – XXX). Sempre que o aluno errasse, o professor deveria aumentar o nível do choque. (Assumir-se-ia que XXX seria um choque fatal.)

 

 

Esquema da experiência.
‘E’ = cientista (actor); ‘T’ = professor (isto é, o participante); e ‘L’ = aluno (actor).

 

Como tudo isto era apenas um engodo para perceber até onde estaria o participante disposto a fazer sofrer o aluno (que ele assumia que era um outro participante como ele), o aluno dava imensas respostas erradas propositadamente. Quando (se) o participante se negasse a dar um choque, o cientista pedir-lhe-ia para continuar. O cientista daria até 4 ordens: (1) “por favor continue”; (2) “a experiência exige que continue”; (3) “é absolutamente essencial que continue”; e (4) “não tem outra escolha senão continuar”.

 

 

À esquerda o dispositivo com os 30 interruptores que o participante usava para dar os choques ao aluno. À direita, o aluno a ser amarrado à cadeira e a colocarem-lhe os eléctrodos falsos.

 

Esperar-se-ia que uma pessoa com valores conscienciosos rejeitasse participar… Ou que pelo menos parasse assim que compreendesse que estava a fazer sofrer o outro suposto participante… Não foi isso que se passou.

 

Todos os participantes atingiram a marca dos 300 volts (marcada com perigoso na máquina) e cerca de dois terços dos participantes foram até ao fim dos interruptores, com os quais se podia assumir que se estava a aplicar um choque letal a um desconhecido! Não havia ideologia. Não havia ódio. Havia apenas uma ordem a seguir dada por uma figura de autoridade. Uma ordem que até certo ponto parecia ilibar o participante. Estavam apenas a seguir ordens, tal como os alemães. 

 

 

Depois desta experiência de 1963, Milgram voltou a testar outras 18 variações do mesmo paradigma com um total de 636 participantes e os resultados foram consistentes (seguiram-se outras experiências realizadas por outros cientistas, noutros locais e países, com resultados semelhantes). As variações serviram para testar a importância de certas variáveis. Por exemplo, numa delas o cientista tinha que se ausentar da sala e ficava lá em vez dele uma outra pessoa (representado uma pessoa comum, mas que era também um actor). Neste caso, o nível de obediência desceu para 20%, mostrando que o papel da figura de autoridade é importante para dar legitimidade ao acto, bem como para tirar responsabilidades ao participante. Numa outra variante, em vez de ser o participante a usar a máquina para dar os choques, havia um assistente que seguia as ordens do participante. Neste caso, 92.5% dos participantes quiseram dar o choque máximo!…

 

A conclusão de Milgram foi que pessoas comuns têm uma elevada tendência a seguir ordens de figuras de autoridade, o que pode incluir matar pessoas inocentes!

 

A experiência tem limitações claras. Primeiro, o “cenário” é bastante limitado e de certa forma irrealista (isto é, afastado de situações do dia-a-dia). Segundo, mulheres não foram testadas – será que se comportariam da mesma forma? Terceiro, os participantes voluntariaram-se para participar ao responderem ao anúncio, o que por si só faz com que sejam um grupo não necessariamente representativo da população. Por outras palavras, o facto de se terem voluntariado pode implicar a presença ou ausência de certas características psicológicas que a maioria pode ou não possuir e que pode ou não condicionar a resposta numa experiência deste género.

 

As experiências de Milgram tiveram alguns problemas éticos:

  1. Os participantes foram enganados. Pensavam que estavam a electrocutar um outro participante com o objectivo de testar se a punição seria capaz de melhorar a memorização deste. 
  2. A experiência foi extremamente stressante para os participantes. Observou-se os participantes a tremer, a suar, a rirem com nervosismo, a morderem os lábios, etc.
  3. Em qualquer experiência ética, os participantes devem ter o direito de desistir. Neste caso os participantes eram ordenados a continuar… Era uma experiência que estudava precisamente este valor ético, o que implicava que não podia ser completamente assegurado (isto é, não de uma forma clara).

 

Para mitigar estes problemas, Milgram explicava sempre o verdadeiro propósito da experiência aos participantes no fim desta e acalmava-os explicando que os comportamentos deles tinham sido normais. Milgram também entrevistou os participantes um ano mais tarde para se assegurar de que não tinha havido mazelas permanentes. 83,7% dos participantes expressaram contentamento por terem participado na experiência (depois de explicada) e apenas 1,3% afirmaram que preferiam não ter participado.

Para concluir, recordo uma frase de Steven Weinberg:

“Com ou sem ela [religião], teríamos pessoas boas a fazer boas acções e pessoas más a cometer actos malévolos. Mas para ter pessoas boas a fazer coisas más, é necessária a religião.”

Não, na verdade pode bastar uma ordem.

 

Deixo-vos uma reprodução recente da experiência:

 

“Espero que todos vós sejam pessoas independentes, inovadoras, com espírito crítico, que façam tudo o que eu disser!”

 

*Caso tenham interesse nos julgamentos de Nuremberga e no seu significado, recomendo o excelente filme “Judgement at Nuremberg” de 1961.

 

Bibliografia:


McLeod, S. A. (2017, Feb 05). The Milgram shock experiment. Simply psychology: https://www.simplypsychology.org/milgram.html

 

 

Marinho Lopes é Doutor em Física pela Universidade de Aveiro. 

 

 

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