INTRODUÇÃO
À medida que a chamada “era do fascismo”, com o seu extenso rol de vítimas e iniquidades, se torna mais distante no tempo, torna-se mais premente a necessidade de não deixar cair no esquecimento os acontecimentos que deixaram uma marca sangrenta, não só na Europa, mas na totalidade do globo. Contudo, se o autor deste texto não nega a importância de preservar a memória das vítimas, defende igualmente que, com o distanciamento que a passagem do tempo confere, é possível fazer uma análise mais “desapaixonada” desta época histórica. Só assim se poderá entender as idiossincrasias que o fascismo incorporou, bem como os perigos concretos que ele representou e representa. Levando isto em conta, pretende-se fazer aqui uma breve reflexão sobre a forma como o caso português se insere no fenómeno mais alargado do fascismo e das ideologias autoritárias que assolaram a Europa no período entre guerras. Por questões de espaço, o texto será dividido em duas partes, sendo a primeira dedicada ao movimento fascista de Rolão Preto (de classificação menos controversa), ao passo que a segunda discorrerá sobre o regime de António de Oliveira Salazar (discussão mais difícil e menos consensual em Portugal).
Antes de se avançar, importa esclarecer uma ideia importante: a de que o caso português não se apresenta como atípico no universo das ideologias antidemocráticas da época e que, pelo contrário, se encontra devidamente inserido nele. O debate historiográfico português acerca da natureza do Estado Novo é demasiado amplo para ser aqui abordado, mas é fundamental referir que, tanto entre os que negam como entre os que afirmam que o regime foi um fascismo, amiúde se encontram referências às suas caraterísticas “singulares”, por vezes sendo mesmo possível descortinar uma certa visão “essencialista” da história de Portugal.1 É neste contexto que a expressão “um fascismo à portuguesa” é por vezes usada para referir a ditadura de Salazar. Rejeita o autor o recurso a caracterizações como esta, sustentando antes que o caso português, apesar das componentes especificas que todas as variantes de um fenómeno mais alargado apresentam, foi, nos seus aspetos fundamentais, semelhante ao de outras realidades nacionais, tanto a nível do movimento fascista como do regime tendencialmente conservador, construído sem a influência direta de um “movimento de rua” (e, na verdade, também a nível das interações entre os dois, movimento e regime).
OS CAMISAS AZUIS DE ROLÃO PRETO
Esclareça-se, primeiro, o que se entende por “fascismo”, através de uma definição formulada pelo autor e baseada nas seguintes componentes ideológicas: o nacionalismo; o objetivo de reforçar o poder do estado; a visão da comunidade nacional como uma síntese, isto é, uma unidade em que todas as classes e indivíduos se encontram inseridos; uma visão pretensamente revolucionária da criação de uma “nova era”; o culto da autoridade de novas elites “heroicas” e com valores marciais; e a conceção da violência como uma componente essencial da sociedade. Nas suas práticas, os fascistas caraterizaram-se pelo culto da chefia carismática; a adoção de todo um rol de simbologias e rituais; a propensão para a ação direta e a violência de rua, com recurso a organizações paramilitares; a procura da constante mobilização das massas, etc. Já nas suas tentativas de obter o poder, os fascistas pautaram-se por métodos ambíguos, podendo recorrer tanto aos legais como aos extralegais, e às alianças com elites conservadores, ao mesmo tempo que adotavam uma postura anti sistémica de contestação a essas mesmas elites.
No caso português, a organização que melhor se insere neste fenómeno mais alargado é o Movimento Nacional-Sindicalismo (MNS), estudado por António Costa Pinto. Criado no verão de 1932, em torno do jornal A Revolução, o MNS viu a luz do dia numa altura em que a ditadura militar, no poder desde 1926, se preparava para ser reconfigurada nas mãos do novo presidente do conselho, António Salazar. O MNS situava-se nas alas mais radicais do apoio à ditadura e foi liderado por Francisco Rolão Preto, figura importante da direita portuguesa que integrara a organização monárquica Integralismo Lusitano (IL). Composto acima de tudo por aderentes vindos do IL, o MNS ideologicamente assumiu-se como uma “fascização” deste último, acrescentando à sua visão corporativista uma tendência para a ação direta e o culto da juventude (expressos nas frases de Rolão Preto “isto vai, por Deus” e “todo o poder aos novos”), ao mesmo tempo que passava a secundarizar a questão do regime monárquico. Nos textos nacional-sindicalistas da época, encontra-se uma apologia da nação como uma “realidade imposta pela terra, pelo clima, pela língua, pelos costumes, pela raça e pela história”. Nos seus documentos programáticos, prevê-se a construção de um estado sindicalista, que garanta a conciliação entre as classes, o funcionamento da comunidade e que coordene a produtividade, representando assim uma síntese da nação, como foi referido por António Lepierre Tinoco. Este último era um dos militantes que mais vezes referia um dos objetivos caros ao MNS: a reinserção da classe operária na comunidade nacional. Para o alcançar, os nacional-sindicalistas amiúde mencionavam a importância da “justiça social” e diziam defender um conjunto de medidas que seriam benéficas para os trabalhadores. A visão pretensamente revolucionária do movimento, por sua vez, encontra-se expressa nas palavras de Rolão Preto, quando este refere que é necessário encontrar a “longa avenida do futuro, que é por onde se continua a marcha interrompida do passado”. Remete esta citação para a conceção de uma “nova era” que, rejeitando o regresso ao passado, procura antes construir um novo futuro inspirado pelo passado.
Tal como o IL, o MNS preconizava uma visão autoritária e elitista, uma vez que um dos seus objetivos era o de encontrar, como diz Rolão Preto, “um chefe indiscutível” que “dá ao conjunto a harmonia e o equilíbrio”. Por último, a centralidade da violência está patente nas palavras de António Pedro, que refere que, para “defender a pátria do assalto dos inimigos”, é necessário usar uma violência que não é só preventiva. Ao longo da curta historia do MNS, Rolão Preto consolidou o seu papel de líder carismático, tendo sido, por exemplo, recebido com gritos de “viva o chefe” num célebre jantar no Parque Eduardo VII a 18 de fevereiro de 1933. Além disso, o movimento adotou uma imagética de inspiração fascista, que incluía o uso das camisas azuis, a saudação romana, e o símbolo da Cruz da Ordem de Cristo. A juntar-se aos comícios e outros eventos de massas, os nacional-sindicalistas prepararam-se para os combates de rua, criando uma organização paramilitar, as Brigadas de Choque, que foi pouco utilizada. À medida que crescia, o MNS entrou em conflito com Salazar, que rejeitava a política de massas. Dizendo apoiar o regime e desafiando o novo ditador a seguir um rumo mais radical, ao mesmo tempo que conspirava contra ele em conjunto com alguns militares, Rolão Preto e o seu movimento fracassaram na tentativa de influenciar a ditadura. Salazar utilizou a censura e outras ferramentas para reprimir o movimento e, quando a disputa atingiu o seu ponto máximo, ilegalizou, por fim, o MNS a 29 de julho de 1934, pondo assim fim à curta história do movimento fascista português. Na segunda parte, abordaremos não só o Estado Novo, mas também a forma como este último e o MNS, bem como as interações entre os dois, se encontram, afinal, totalmente integrados no panorama antidemocrático da sua época.
Nota
1 Para ler mais sobre o tema, ver Luís Reis Torgal, ed., Estados Novos, Estado Novo (Coimbra: 2009).
Carlos Martins é doutorado em Política Comparada pelo Instituto de Ciências Sociais da Universidade de Lisboa e investiga sobretudo a história do fascismo e outras ideologias de extrema-direita. É autor do livro From Hitler to Codreanu: The Ideology of Fascist Leaders e, mais recentemente, Fascismos: Para Além de Hitler e Mussolini.