

ALVORADA
Espera um sol esta chuva…
A noite é curta em único abraço
E o fado espreita nosso arbítrio.
Deixa eu te contar meu silêncio
E deixa eu me calar em teus lábios…
Cada beijo é um abrigo.
Deixa eu dormir em teu sonho
E ao fechar meus olhos
Mostra-me a luz.
DISTOPIA
Por tanto calarem-se à dor de outras vozes,
Por tanto desdém aos verbos atrozes,
Muitas terras conquistou o silêncio.
Quando, enfim, o pranto sentiram
E em desespero, por amparo, gritaram,
Já não era possível escutarem a si mesmos.
VASTIDÃO
Visitei as copas das árvores
E, vizinho dos pássaros,
Enxerguei-me pequeno no chão.
Creio que olhamos o céu
Para nos elevarmos à sua altura…
Do alto
O campo é mais vasto.
ELÍSIOS
Eu plantarei minha alma nos campos
E colherei a cada ano
Versos no outono.
Andarei por terras que desconheço
E forjarei sob o horizonte
Minha ausência.
Viverei como a morte, que a si consome,
Pela ânsia de vida, que a mim destina
Sonhar e seguir…
Eu cantarei no silêncio
Pra que o amor seja ouvido
E em cada prado perdido
Ressoemos enfim.
QUATRO ESTAÇÕES
Quiseras que enxergasse meu caminho
E sentisse no outono as quatro estações;
Quiseras que eu tocasse os frutos,
Antes mesmo de lançar suas sementes.
Não posso mudar o que vejo,
Mas saber o destino é pressentir a estrada…
Se deixas eu olhar a terra
E me dás a clareza dos planos,
Também fazes conhecer tal sorte
E os espinhos que escondem os ramos
Para que as mãos não temam adiante
E para que minha boca no estio plante
Sonhos na relva.
CAIS
Que silêncio dissonante ecoa ao som da noite,
Quando ao breu a luz flameja
E ao olhar a prata impera.
Que silêncio dissonante entoa a nova era,
Ao clamar pressente hinos ancestrais.
Houve um tempo que dobrava o sino
E vibrando igual, estendia a ceia.
Houve um tempo tão perene outrora,
Em que o Mar cantava à areia
E o ocaso ressoava à aurora.
Que silêncio dissonante em meu peito jaz,
Neste prumo que minh’alma arqueja,
Pelo anseio que me apressa afora.
Que silêncio penetrante se acosta agora!
Este tempo envolto faz do mundo um cais.
CASA DE LIBRA
Meu amor mora nas estrelas
E eu, às margens do céu…
Cada noite a aurora esconde sua fronte
E a face do ocaso determina outros sóis;
Cada noite se aparta a distância
E a areia alcança além desse horizonte.
Qual estrela guardaste pra mim?
E qual parte do céu me lembra teu nome?
O mundo é tão pequeno
Quando fechamos os olhos
E o tempo é tão curto
Quando enxergamos a eternidade.
RUÍNAS DE ÁGORA
Há tanta boca
E tanta voz desmedida
Nesse silêncio repetido e gritado,
Nesse vazio de palavras que ecoam esquecidas,
Onde à margem de toda prosa
Talvez repouse alguma verdade.
Há tanta boca
E nenhum som profundo;
Há tantos dentes devorando os sonhos
E tão ímpio tornou-se o mundo,
Que mastigado resta pra nós.


Fotografia de Rudá Ventura
Rudá Ventura: poeta, músico e educador brasileiro, nascido em São Paulo.
Autor do livro Preamar, lançado em 2017 pela editora Laranja Original, tem poemas publicados também em revistas literárias do Brasil, de Portugal e de Moçambique. Integra ainda a antologia Encontro de Utopias, lançada em 2019 pela editora Patuá.
Comprometido com a arte-educação, realiza palestras e apresentações de poesia recitada em escolas e eventos culturais. Publicará, em breve, seu segundo livro de poemas.