

XXXV
Tenho um pátio andaluz no meio de mim.
Todo água, espelhos e pedras preciosas.
É lá que te quero sem verbo nem averbamento.
Secreto soneto escrito na pele.
Cumplicidade forjada em códigos de silêncio.
Existimos num plural sem conjugação nem
conjura.
Tenho, para ti, um pátio andaluz no meio de
mim, todo água e vidrinhos coloridos.
Fresco refúgio mesmo quando tudo arde.
XXIII
Quero-te com a insana brutalidade de uma
porta escancarada numa noite de tempestade.
Quero-te com a obscenidade de Kawabata, a
devoção de Santa Teresa d’Avila e uma mudez
beneditina.
Quero-te com a volúpia negra de um castelo
na Transilvânia, enredado numa obsessão fútil
de brincadeira de corte no século XVIII.
Quero-te sem permissão nem abrigo.
Quero-te num desmedido desejo onde a razão
perdeu para a vontade num tolo jogo de cartas.
Quero-te hoje.
Certas coisas só têm presente não se conjugam
noutro tempo.
Quero-te.
I
Um corpo casa. Um corpo cais. Um corpo
vulcão. Um corpo esconderijo. Um corpo escondido. Um corpo fechado. Um corpo aberto. Um corpo grito. Um corpo bala. Um corpo
mudo. Um corpo pé. Um corpo ventre. Um
corpo mão. Um corpo desalmado. Um corpo navio. Um corpo inerte. Um corpo dança.
Um corpo despido. Um corpo despedida. Um
corpo janela. Um corpo porta. Um corpo pulmão. Um corpo árvore. Um corpo erva. Um
corpo serpente. Um corpo comida. Um corpo
comido. Um corpo come. Um corpo decomposto. Um corpo decomposto. Um corpo desposto. Um corpo mar. Um corpo sargaço. Um
corpo celeste. Um corpo pássaro. Um corpo
passa.
Um corpo nuvem. Um corpo chuva. Um corpo encorpado. Um corpo escarpa. Um corpo
semente. Um corpo não mente. Um corpo na
mente.


Fotografia de Rita Tormenta
Rita Tormenta nasceu em 1970 no Porto, cresceu em Lisboa e actualmente habita em Almada.
Possui formação em Teatro. ( Estc , Flul)
Concebeu e executou vários projectos na área da educação sensível.
Foi durante duas décadas professora de expressão dramática em diversas escolas.
Quando se despenhou da montanha utópica e aterrou no cimento a que chamam realidade mudou de área.
Esteve três anos na área da hotelaria e desde 2020 é analista de conteúdos.
Tem 5 filhos, 1 gata, algumas plantas e cultiva amigos na varanda.
Em 2022 publicou o seu primeiro livro, a convite do Festival Mental e da sua curadora.
Este ano publicou “o pequeníssimo livro de ti”
Tem um gosto especial em colocar-se perante situações de desequilíbrio, para absorver o poder sedutor do desconforto e dele fazer combustível para escrita e para a vida.