O BANDOLIM CENTENÁRIO
Lyslei Nascimento
O romance de estreia de Flávio Saliba Cunha, O bandolim centenário, inscreve-se numa requintada linhagem de textos ficcionais que se armam sob a ourivesaria literária do camafeu. A técnica surge em Alexandria, por volta dos anos 300 a.C. A palavra “camafeu” vem do latim cammaaeus, e significa “pedra esculpida”. Assim, esculpiam-se joias em ágata, ametista, cristal ou ônix com figuras em relevo de deuses, de mitos ou de pessoas influentes. Com a Rainha Vitória, essas joias passaram do uso em baixelas e vasos, a ser usadas como um acessório em blusas, vestidos ou fitas, como gargantilhas.
Em Minas Gerais, essa tradição literária de narrativas que podem ser vistas como essas joias, em alto-relevo, de perfis femininos, é encabeçada pelo inigualável Romanceiro da Inconfidência, de Cecília Meireles, de 1953. Esse verdadeiro monumento literário põe em destaque importantes mulheres no contexto da Inconfidência, como Barbara Heliodora e Marília de Dirceu. Maria José de Queiroz, em Como me contaram: fábulas historiais, de 1973, dá brilho a essa linhagem de mestres mosaístas da narrativa. Destaco, ainda, Uma vida em segredo, de Autran Dourado, de 1964, e A dança dos cabelos, de Carlos Herculano Lopes, de 1987. Essas intrincadas genealogias literárias desentranham as mulheres da tradição, da história, da arte.
A perfeita justaposição entre literatura, história, música e arte, em O bandolim centenário, provoca no leitor, a partir da conformação da escrita como uma galeria de camafeus com perfis de mulheres, um efeito de mosaico ou caleidoscópio. Ao fazer surgir essas imagens parciais, mas em alto-relevo do feminino, o narrador aponta para as perdas e danos da memória e da escrita. Na trama, as personagens vão compondo, assim, uma série de narrativas-camafeus, encapsuladas num tempo centenário e hermético. Assim, Valentina, Joanna, Elisa, Guilhermina, Rita, Luiza e Tia Lalá constituem peças de um enredo que vai se enovelando diante do leitor. Presas no tempo biográfico, emparedadas ou abafadas pelo engessamento do gênero, da posição social, do casamento arranjado, do embrutecimento da vida em família, esses perfis femininos vão, aos poucos, numa espécie de concerto, ou desconserto, sendo alinhavados ou desfiados pela memória, entre lembrança e esquecimento.
A referência aos bordados, às linhas e às agulhas surge como uma metáfora primorosa do texto. O trabalho feminino, nesse sentido, se aproxima da escrita e do trabalho do narrador que vai entretecendo esses retratos de mulher à vida cotidiana de uma Minas que já não há. Lemos, por exemplo, em “Valentina, 1963”, qual uma Penélope em terras mineiras, uma dessas imagens de mulher que se destaca na trama: “Recolhida em seu quarto, como de costume, a viúva Valentina dava os toques finais na colcha de crochê que, havia meses, vinha tecendo à perfeição para presentear a neta, Joanna, quando esta se casasse. Embora não tenha se casado, a moça guardou com zelo e respeito a colcha que considerava uma bela e trabalhosa obra de arte.” (p. 22). É também Valentina que “ouvia mais que falava, criando origamis ou dobrando papéis manilha em sanfonas que recortava, formando uma espécie de toalha de mesa com desenhos geométricos.” (p. 23).
Em contraponto a essa mulher tradicionalmente engendrada, que embaralha, no entanto, corte, bordado e costura e que se aproxima do narrador e da escrita, em “Guilhermina Rosa, janeiro de 1886”, temos: “Mulher de tutano, como ela própria se definia, convocou o guarda-livros, o irmão e um cunhado para lhe ajudarem a esclarecer eventuais pendências comerciais, analisar os livros contábeis e avaliar possíveis prejuízos na comercialização do café, cujos lucros, ainda elevados, vinham caindo com as variações na cotação internacional do produto.” (p. 49). Na galeria sinuosa de camafeus femininos, as mulheres são várias, como várias são as Minas dos interiores das casas, das fazendas, das cidades.
Um inventário elegante de objetos compõe, nessas histórias de mulheres, o romance como um “fato cosmológico”, como queria Umberto Eco: “Armários, mesas, cadeiras e pesados guarda-louças exigiram esforço e cautela da parte dos vários braços que os carregava de um lado a outro. Jarros de flores, aparadores, candelabros, pratos da Companhia das Índias, salvas de prata, marquesas, cadeias de palhinha, tapetes, cortinas de tafetá e de toalhas de crochê sobre as mesas deram vida e luz aos ambientes.” (p. 62).
Se, para contar, é necessário, primeiramente, construir um mundo o mais mobiliado possível, até os últimos pormenores, nas narrativas-camafeus que compõem, em mosaico, O bandolim centenário, Flavio Saliba Cunha, qual bricoleur, transformou biografias em fábulas historiais e, engenhosamente, esculpiu na página, perfis em alto-relevo, de mulheres que não permanecerão, depois desse romance, enredadas em silêncios de mil dobras, mas, astuciosamente, entre jogos de fugas e de aparecimentos.
Título: O bandolim centenário
Autor: Flavio Saliba Cunha
Editora: Quixote+Do; 1ª edição. 2021
Páginas: 120
Literatura Brasileira
ISBN-13: 978-6586942453
LYSLEI NASCIMENTO É PROFESSORA TITULAR DE TEORIA DA LITERATURA E LITERATURA COMPARADA NA FACULDADE DE LETRAS DA UFMG. DOUTORA EM LETRAS: LITERATURA COMPARADA PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE MINAS GERAIS, PÓS-DOUTORA PELA UNIVERSIDADE DE BUENOS AIRES, ARGENTINA, E PELA UNIVERSIDADE DE SÃO PAULO (USP). COORDENADORA DO NÚCLEO DE ESTUDOS JUDAICOS DA UFMG. EDITORA DA “ARQUIVO MAARAVI: REVISTA DIGITAL DE ESTUDOS JUDAICOS DA UFMG”. VENCEDORA DO 2015-2016 TRAVEL AWARD FOR LATIN AMERICAN JEWISH RESEARCH NA UNIVERSIDADE DO TEXAS EM AUSTIN, PELO SCHUSTERMAN CENTER FOR JEWISH STUDIES. UNIVERSITY AFFILIATE VISITING SCHOLAR/VISITING RESEARCHER (2015) NA UNIVERSIDADE DO TEXAS EM AUSTIN, EUA.