POEMAS
Jacarandás
Vou falar sobre jacarandás.
O cheiro das ruas ao final da tarde.
Vou escrever sobre jacarandás.
Um pássaro esmagado contra o alcatrão.
Uma velha empiriquitada, debruçada à janela.
O puto na paragem de autocarro com meias desportivas e chinelos.
Mas eu vou falar sobre jacarandás.
Uma mulher terá gemido de prazer durante um concerto de uma orquestra sinfónica.
Coros de filhinhos da puta ensaiam, encenam e ensinam cantos de óxum.
Mas eu vou falar sobre jacarandás.
Ainda há uma guerra na Ucrânia, outra na Síria, uma outra na Palestina e em Israel, e talvez uma no corno de África mas não passa na televisão.
Mais um barco de migrantes terá naufragado e centenas de pessoas terão morrido.
Milhares de pessoas habitam a barriga da abjecção em guetos de toxicodependentes nas ruas de Detroit.
E eu vou falar sobre jacarandás.
Há um velho a fazer cálculos na farmácia para decidir se leva o ansiolítico e o anti hipertensor, se leva apenas um deles ou se aguenta mais uns dias e não leva nenhum.
Uma mulher vai somando as parcelas dos víveres enquanto os depõe no tapete rolante da caixa do supermercado, para trás deixa ficar as uvas, as amêndoas e um molho de brócolos.
Um miúdo foge do pica.
Um funcionário de uma qualquer empresa rouba mais um iogurte do frigorífico comum porque já é dia 12.
Mas eu vou falar sobre jacarandás.
A corrupção alimenta, numa obscenidade latino-americana, populismos moralistas, chauvinistas, racistas e fascistas de todos os extremos.
Anunciam -se ditaduras e dentaduras.
Eu …
Eu só vou falar sobre jacarandás
(2023)
Palavras ainda no colo.
Frases inteiras ainda na memória.
Silêncios ainda no leito.
Os dedos como adagas rombas e a voz feita de verbos afiados.
Lavou os vocábulos mas eles não se arredondaram.
Lavou as mãos, mas elas permaneceram gumes.
Levantou-se de supetão, as palavras caíram-lhe do colo e rolaram pelo chão.
Sem as histórias que a si mesmo contava.
Colecionou neblinas e uivos de bichos selvagens.
(2023)
Os meus céus são pintados a dramas e tempestades.
Escrevo a escopro e martelo, não brota da inspiração ou de toques divinos.
Vulcânica, palavras lava queimam-me as mãos.
Delas retiro a seiva morna, cicuta e mel, veneno e antídoto para uma loucura em estrofes descompensadas.
Sem morfinas, dores e prazeres, latejando na jugular.
Claro, escuro e tenebroso.
(2023)
Rita Tormenta nasceu em 1970 no Porto, cresceu em Lisboa e habita desde 2018 em Almada.
Possui formação em Teatro. (Est , Flul)
Concebeu e executou vários projectos na área da educação pela arte.
Foi durante duas décadas professora de expressão dramática em diversas escolas.
Em 2022 publicou o seu primeiro livro, “centrifugar angústias a 1600 rpm” a convite do Festival Mental.
Em 2023 publicou “O pequeníssimo livro de ti” (Kotter Portugal).
Desde Maio organiza a tertúlia mensal “3 às 4as” em Almada, com outros dois poetas.
Em Setembro concebeu e coordenou, com Elisa Scarpa, o evento “Aqui vai Livre”, um lançamento literal de livros que juntou mais de 50 escritores num momento de liberdade e alguma loucura, no Príncipe Real, com o apoio da Junta de Freguesia da Misericórdia.
Integrou a equipa que promoveu a 1a Edição da Noite da Literatura Ibero-Americana em Lisboa, em Novembro.