Em Castelo Branco
Folha de bordo ou ácer ou falso plátano sentada
ferida (que não é ferida) exposta
por uma navalha de cinco pontas ou uma estrela
O vento para aqui me empurrou e me largou
para te lembrar que tudo é transitório
as minhas irmãs ficaram deitadas
só eu mantive esta compostura
estava à tua espera
esperei muitas estações
por isso senta-te
Senta-te não me ouves com os teus olhos?
Vem não tenhas medo
comigo nada temas
eu só obedeço aos sentidos da deusa Flora
embala-me na tua mão quente
Leva-me contigo
ou deixa-me entregue aos olhares distraídos
dos transeuntes
já nada me importa
Mas não tenhas medo
por uns momentos sopra-me o hálito
da tua boca quente
dá-me um último alento
e eu cumprirei a minha promessa
A ti que regressaste tantos anos depois
Boca a boca
Entrega-me a tua alma
guardarei as suas dores
sem nada revelar a ninguém
Partiremos novamente
e todas as lembranças serão apenas
e só apenas Cinzas.
*
PALESTINA
«Vemos, ouvimos e lemos
Não podemos ignorar»
Sophia de Mello Breyner Andresen
Não há violinos à chuva destes fogos-de-artifício
Confinados e soterrados vivos
Falta-me o ar
O silêncio dos inocentes faz o chão estremecer
Tudo feito em cacos
Sufoco
Nunca conseguiremos reunir estes fragmentos
Mais mortal do que a eternidade só a ideia de eternidade
Gostava que o nosso Polemikos fosse apenas entre Espinosa e Platão
(ou que as crianças se enfrentassem com cravos e rosas de Jericó)
Rei-vindico o direito a viver sem medo
Preciso duma pátria duma casa duma língua para ser suplicar e cantar
A eternidade já não é o que era
Colunas de fumo e pó
Tripas e sangue corpos des-membrados
Almas em trânsito enterradas vivas
Inocentes e impotentes
Estaríamos agora a colher a azeitona das sagradas oliveiras
que foram a paz e a luz de todos
por isso repito – de todas a palavra eternidade é a mais encandeante
e cega e cruel
Matamo-nos por deuses ignotos
A nossa guerra servida à hora do vosso jantar
Godot não voltará aqui
Esta terra ficará queimada para sempre.
*
Raízes
Como gatos ao sol
Sombrio abismo ondulante
labirinto invertido
Dão para o desconhecido
dialogam subterraneamente de planta a planta
(também eu tenho duas plantas de bípede
mas que nem sempre se compreendem
sou membro de uma espécie alucinada e predadora)
Raízes que por vezes afloram a superfície da pedra
serpenteando
Da terra retiram o mar desaguado
Podem matar ou libertar
matar ou curar
A tua infância são as tuas raízes
elas alimentam os sonhos
quando dormes elas falam
A meio da minha vida descalcei-me e sentei
debaixo de uma árvore em cima de suas raízes
e me alimentei da sua seiva
Budha quase me despertava.
(Coimbra, jardim Botânico).
*
Escadas que dão para o céu
(ou seja para nenhures)
Ao lado na igreja da Misericórdia
latejam os sinos sinalando um funeral
E eu só queria um sinal do teu coração
(que o telefone tocasse agora
então acreditaria em auroras).
(Idanha-a-Nova, final de tarde)
*
Em lince me transformo e corro
para te anunciar que
Hoje o Sol abriu a pálpebra
rente ao chão
nas folhas do choupo
e só depois se ergueu até aos ramos
mais altos onde vai fazer ninho.
*
SÍSTOLE – DIÁSTOLE
Ano após ano me respiras
me nutres de terra água minerais
Ciclo após ciclo nos edificamos
nos abraçamos criamos Nós Umbigo
Em corações gémeos e selvagens
anel sobre anel nos anelamos
Sangue e Seiva
que nos ilumina por dentro
para que possamos Ser
o Azeite da paz
Que guarde as noites dos nossos filhos.
Manuel Silva-Terra: O autor nasceu e criou-se numa aldeia da Beira Baixa sem água canalizada nem electricidade.
Foi professor, mas gosta mais do tempo em que foi pastor de cabras.
Publicou uma dúzia de livros de poemas e traduziu
Bashô
Buson
Wang Wei
Tu Fu
M. Rilke