canto à capela
o dizer a poesia em voz alta
melhor na acústica da casa que somos
a palavra num eco moto continuo
que reflexa, rebate nos objetos e retorna
significados nesta parede permeável
o dizer da poesia o dizer da palavra
e de seus poderes
o dizer do amor
o dizer a poesia a plenos pulmões
é nomeá-la, segurá-la pelas mãos
acariciar o seu pelo
cheirar suas indecências
abocanhar suas inverdades
deixar o líquido que escorre
misturar-se à saliva de promessas
o dizer o amor em alto e bom som
é dizê-lo com propriedade
palavra de posse e dádiva
o dizer a palavra poética
é aceitá-la, é dar a bênção àquele
que não nos pediu autorização
é estar indefeso ao ricochete
que virá sem demoras
a palavra bem-dita
chegará inevitavelmente
sem contemplações
a palavra bendita
chegará numa oração
ao nosso lado mais esconso
ao nosso lado mais luminoso
***
sem norte
submerso julgo descortinar
o futuro em cada esquina
olhares que brilham, sorriem sem que
haja relação de causa e efeito com os lábios
o rosto como um letreiro do amanhã
mas vestido de antanho
letárgica maneira de contemplar a poesia
amanhãs e nostalgias que se combinam
amanhãs que deambulam por artérias
que se repetem como fotografia sem valor
repetitivos amanhãs que não se descuram
das novas perguntas de ontem
velhas inquisições de sempre
os porquês disso os porquês daquilo
ou as infantis perguntas de quem são
as pertenças da culpa
para onde seguir, com que roupa
se à direita ou à esquerda de lugar nenhum
amanhãs prisioneiros de janelas virtuais
óculos do efémero
e assim carregamos às costas, a morte
às vezes como saco de minérios
carregados do fundo de uma mina
às vezes, às cavalitas,
um filho prazeroso que nos faz pisar
em nuvens de algodão doce
o ciclo da vida e as suas rotinas coletivas
o ciclo da vida sem piloto automático
que seja o Norte
Ozias Filho (Rio de Janeiro/1962). É poeta, publicado no Brasil e em Portugal, fotógrafo e editor. Autor de Poemas do dilúvio, Páginas despidas, O relógio avariado de Deus, Insulares, Os cavalos adoram maçãs, e Insanos. Como fotógrafo tem vários livros publicados, e exposições, onde se destaca Ar de Arestas, no Museu de Arte Moderna Murilo Mendes, no Brasil; e integrou a iniciativa Passado e Presente – Lisboa Capital Ibero-americana da Cultura 2017, na Casa da América Latina, com o ensaio Quasinvisível. Tem participado em vários festivais de literatura, dos quais se destacam O FOLIO, Festival Literário Internacional de Óbidos, no Ronda (Leiria), Encontro Ibero-Americano de Poesia (Casa da América Latina/Lisboa), Encontro de Escritores Lusófonos (Odivelas), e Festival Silêncio (Lisboa). Publicou em 2022 o seu primeiro livro infantil Confinados (com ilustrações de Nuno Azevedo). Vive em Portugal desde 1991. Assina a coluna Quem, eu vejo quando leio, para o Jornal Rascunho.