As ideias desta cabeça pingam
Toda noite, como uma torneira
Sem reparo
Eu não temo o sonho
Dele pode vir o barco, o sol fixo
O horizonte no caos do cais
No crepúsculo do terreno plano
As ideias pingam como um veio
Longe o canto da cigarra breve
Cá a avó atravessa enchentes
O milagre da ave sob a chuva
A terra prometida a pedra-casa
Morar no outro e também em si
Com vovó aprendi
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lá está a criança que sonha ser avião
no fundo azul do fusquinha estacionado
como um chroma-key
pode-se ver o céu
na velha garagem sem sol
istmo entre a vida e a morte
é fácil pra criança fazer verão
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é preciso chover pra fortalecer
a costura da sombrinha
que abriga três mulheres
é preciso chover
para a menina salvar insetos
e rir de novo
é preciso chover
pro índio se despir na cara do português
um mundo em outro mundo
é preciso chover para não fixar a mentira
como um lindo dia de sol
e depois, é preciso haver sol
um segredo da vida
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Maria
quando o teto esburaca
estrelas de mentira
eu vou morar ao largo do quarto
minha cabeça arrebentada pende como um terço
nos hematomas salpicados de luz
vejo deus morto, sou menina de pé quebrado
vivo o conto da carochinha, mas sem fita
sou uma baratinha tonta, ele diz
simples ser infeliz
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Transcrição fiel de Alice
Alice de Battenberg morreu surda.
Seu túmulo tem um estandarte
às traças. Sabia-se que era estranha.
Sua vagina recebeu eletrochoque.
Foi por indicação de Freud, aos 22.
Os ovários foram radiografados tantas
vezes tantas. Qualquer uma ficaria tantã.
Ela dizia que variava, mas era sã.
Tinha um marido, cinco filhos.
Saiu do sanatório. Sozinha viveu na Grécia.
Sozinha esteve na Segunda Guerra.
Sozinha escondeu um monte de judeus.
Seu túmulo tem um estandarte
às traças.
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Transcrição fiel de Polanski
Ele era apenas uma criança
na segunda guerra
mas viu uma marcha de mulheres
40 ou 50 obrigadas a andar e andar
uma delas caiu, ficou no fim da fila
um nazista sacou o revólver
atirou nas costas da mulher
o sangue, ele disse
não jorrava como aerossol,
mas em jatos pequenos
fluindo pra cima
o sangue parecia uma fonte
Fabíola Mazzini nasceu em Vitória-ES. Publica poemas no Facebook, revistas e coletâneas. Seu livro “Rotina dos Ossos” foi premiado com o 1º lugar em concurso da Secult-ES em 2018.