Poesia & Conto

Poemas | Fabíola Mazzini

As ideias desta cabeça pingam

Toda noite, como uma torneira 

Sem reparo

Eu não temo o sonho

Dele pode vir o barco, o sol fixo

O horizonte no caos do cais

No crepúsculo do terreno plano

As ideias pingam como um veio

Longe o canto da cigarra breve

Cá a avó atravessa enchentes

O milagre da ave sob a chuva

A terra prometida a pedra-casa

Morar no outro e também em si

Com vovó aprendi

 

************

 

lá está a criança que sonha ser avião

no fundo azul do fusquinha estacionado

 como um chroma-key

pode-se ver o céu

na velha garagem sem sol

 istmo entre a vida e a morte

é fácil pra criança fazer  verão

 

************

 

é preciso chover pra fortalecer

a costura da sombrinha

que abriga três mulheres

é preciso chover

para a menina salvar insetos

e rir de novo

é preciso chover

pro índio se despir na cara do português 

um mundo em outro mundo

é preciso chover para não fixar a mentira

como um lindo dia de sol

e depois, é preciso haver sol

 um segredo da vida

 

***********

 

Maria

 

quando o teto esburaca
estrelas de mentira
eu vou morar ao largo do quarto
minha cabeça arrebentada pende como um terço 
nos hematomas salpicados de luz
vejo deus morto, sou menina de pé quebrado
vivo o conto da carochinha, mas sem fita

sou uma baratinha tonta, ele diz
simples ser infeliz

 

*************

 

Transcrição fiel de Alice

 

Alice de Battenberg morreu surda.

Seu túmulo tem um estandarte

às traças. Sabia-se que era estranha.

Sua vagina recebeu eletrochoque.

Foi por indicação de Freud, aos 22.

Os ovários foram radiografados tantas

 vezes tantas. Qualquer uma ficaria tantã.

Ela dizia que variava, mas era sã.

Tinha um marido, cinco filhos.

Saiu do sanatório. Sozinha viveu na Grécia.

Sozinha esteve na Segunda Guerra.

Sozinha escondeu um monte de judeus.

Seu túmulo tem um estandarte

às traças.

 

**********

 

Transcrição fiel de Polanski

 

Ele era apenas uma criança

na segunda guerra

mas viu uma marcha de mulheres

40 ou 50 obrigadas a andar e andar

uma delas caiu, ficou no fim da fila

um nazista sacou o revólver

atirou nas costas da mulher

o sangue, ele disse

 não jorrava como aerossol,

 mas em jatos pequenos

fluindo pra cima

o sangue parecia uma fonte

 

Fotografia de Fabíola Mazzini

Fabíola Mazzini nasceu em Vitória-ES. Publica poemas no Facebook, revistas e coletâneas. Seu livro “Rotina dos Ossos” foi premiado com o 1º lugar em concurso da Secult-ES em 2018.

Qual é a sua reação?

Gostei
1
Adorei
2
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.