Poesia & Conto

Poemas | Ângela Zanirato

Artifícios para ninar gente grande

 

um copo de água ao lado da cama 

a caixa de Rivotril me olha. está dependente de mim

tomo o comprimido

só por pena

ela dorme

eu nino a caixa antes 

canto Amyzinha pra ela

um pouco de Marley também 

eu já tive a caixa

hoje a caixa me possui 

somos duas meninas dormindo juntas

baby dool cor de rosa 

não esconde a solidão 

mundo de merda onde os artifícios nos seduzem

sei que sou um artifício 

quando acalmo alguém 

mas por dentro tenho uma faca e uma lágrima 

tudo é ternura

também amargura

olho meu Picasso falso

Guernica

o cavalo mostra o limite da dor- o insuportável 

a mesma dor de Plath -Alfonsina-Ana Cristina

porquê não deram um artifício para o cavalo?

para as meninas?

para Cabul – Saigon- Mariana- Hiroshima 

todas meninas

a sangrarem 

sem lenitivos 

sem mãos nas mãos

na hora do sono

ou do fim.

 

Há um tempo mas tempo não há

 

há um tempo

em que o passado tange o corpo

este fardo que as horas corroem

diariamente

 

há um tempo

que o fio que nos sustenta

rompe-se

o corpo levita

o vale recolhe a sombra cansada

 

há um tempo

de necessários desencontros

de caminhar sozinha

dentro de nossa vastidão desconhecida

 

há um tempo

de apanhar as bagagens

deitar as pálpebras

e guardar os olhos

há um tempo de buscar o tempo

quando o tempo já é outra coisa.

 

há um tempo

onde liberdade caça imensidão.

 

Hoje não vou ao mar

 

insônia

coração acelerado na madrugada

a filha pergunta o motivo

– excesso de café-

-excesso de medo-

– a cerveja fora de hora-

-excesso de medo novamente-

da última vez foi excesso de excesso

não sou dada às exceções

tudo que contém vida

devoro

ultimamente a vida vem em conta gotas

doses homeopáticas

não preenchem o vazio

e o relógio olhando para mim com cara de sono

-dorme aí senhor relógio

não tenho horas para nada

você não cura taquicardias

passo creme acido retinóico

antisinais

o livro de Lorca na cabeceira

medo de Lorca poeta louco

escondo o livro de mim

será que a 180 batidas por minuto

o coração explode?

Lorca fuzilado

Herzog enforcado

Stuart Angel assassinado

meu coração saindo pela boca

os olhos desmaiados de sono

a cabeça trabalha como uma fábrica

medita medita medita

faz yoga pilates

nada

nada nada

nada lembra água mar

Alfonsina foi ao mar

lavar angústias

por lá ficou

amanhece

resisto

sempre resisto

coloco água em minhas plantas

nada

nada

nada de nada

beijo a boca da kalanchoe lilás

o dia também tem seus estatutos.

 

Vigília

 

meus olhos em estado de alerta

uma aflição congênita no peito

sofro em conta gotas

a minha cara minha cara

de guerreira vencida

em labirínticas noites

 

há formatação no silêncio

 

coração arrítmico: 120/140

-toma meu pulso

-confere a ansiedade

confirma!

 

há uma plasticidade viva na insônia

 

me recuso a dormir

preciso vigiar -me

ouvir-me

acomodar meus fantasmas

lançar pedidos de socorro

em vãos

 

logo vai amanhecer

comme d’habitude

o pássaro vai cantar

 

penso nas Marias e Rosas

que também sofrem

solitárias

 

o arco do dia se abre em cinzas

 

o dia também tem seus estatutos.

 

Palavras Madalenas arrependidas

 

ás vezes a poesia cansa

se recolhe para dentro do peito da poeta

como a passarinha guarda os ovos no ninho

ou a mulher que recolhe a roupa do varal ainda molhada.

 

moro na cidadezinha perdida entre os canaviais.

sou poeta sem palavras

qual a utilidade das palavras onde a vida parou?

 

quem sabe pendurar a palavra no açougue e vê-la sangrar junto às carnes dos bois recém – abatidos?

 

a palavra moída junto com a cana. palavra álcool açúcar garapa.

 

palavra nas gôndolas do supermercado entre Coca-Cola e querosene.

palavra fumo de corda. 

fumo as palavras.

e trago.

 

a palavra nos escritórios dos advogados.

palavra processada como grãos de milho. palavra presa. palavra crime. porta de cadeia.

a palavra no esgoto a céu aberto. o rio tudo leva.

 

minha palavra não tem vitrine nem néon. não vale nada no índice dow Jones. palavra não é capital .

 

palavra vale menos que uma conversa no Whatsapp

menos que uma live no YouTube

que um joguinho no celular

que fotos no Instagram .

 

recolho as palavras como Adélia recolhe do ninho os ovos.

 

talvez a rotina perfeita é a palavra presa.

 

assim como eu nessa cidade incrustada entre usinas.

assim como as mulheres desse sertão que casam tem filhos e repassam a sina . como uma maldição das palavras.

 

Ensinamento pelos ossos

 

todos os dias 

alguém entregava fios de cabelo

que eu perdia no caminho da escola

 

todos os dias eu sonhava com perucas 

e dez quilos a mais

a anorexia me comia por dentro

e por fora

 

é câncer ?

é aids?

 

leite 

água 

era 

que

descia

 

e minha filha pequena 

aprendendo a contar

de um a cinco

em minhas costelas.

 Angela Maria Zanirato Salomão

Professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá.

Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em várias antologias. Foi publicada nos sites : Blocos Online , Parol , Movimiento Poetas del Mundo , Antologia do Mapa Cultural Paulista edição 2015/2016, versão e-book, Revista de Ouro Revista Ver- O- Poema, Revista InComunidade, Mallarmargens, Revista Digital Literatura e Fechadura, Revista Ruído Manifesto, Revista Ser MulherArte e na Revista Feminista Helenas. Foi curadora do projeto doze contos insólitos do poeta Márcio Saraiva, em 2019. Em 2020 foi classificada em primeiro lugar no concurso de poesias da Editora Arribaçã. Está presente na Antologia As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira lançada pela Editora Arribaçã 2021. Foi selecionada pela editora Rizomas para publicar original de livro de poesia em 2022. Foi selecionada também em 2022 pela editora Helvétia para publicar o romance Mulheres à margem: entre o asfalto e o bordel.

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