Artifícios para ninar gente grande
um copo de água ao lado da cama
a caixa de Rivotril me olha. está dependente de mim
tomo o comprimido
só por pena
ela dorme
eu nino a caixa antes
canto Amyzinha pra ela
um pouco de Marley também
eu já tive a caixa
hoje a caixa me possui
somos duas meninas dormindo juntas
baby dool cor de rosa
não esconde a solidão
mundo de merda onde os artifícios nos seduzem
sei que sou um artifício
quando acalmo alguém
mas por dentro tenho uma faca e uma lágrima
tudo é ternura
também amargura
olho meu Picasso falso
Guernica
o cavalo mostra o limite da dor- o insuportável
a mesma dor de Plath -Alfonsina-Ana Cristina
porquê não deram um artifício para o cavalo?
para as meninas?
para Cabul – Saigon- Mariana- Hiroshima
todas meninas
a sangrarem
sem lenitivos
sem mãos nas mãos
na hora do sono
ou do fim.
Há um tempo mas tempo não há
há um tempo
em que o passado tange o corpo
este fardo que as horas corroem
diariamente
há um tempo
que o fio que nos sustenta
rompe-se
o corpo levita
o vale recolhe a sombra cansada
há um tempo
de necessários desencontros
de caminhar sozinha
dentro de nossa vastidão desconhecida
há um tempo
de apanhar as bagagens
deitar as pálpebras
e guardar os olhos
há um tempo de buscar o tempo
quando o tempo já é outra coisa.
há um tempo
onde liberdade caça imensidão.
Hoje não vou ao mar
insônia
coração acelerado na madrugada
a filha pergunta o motivo
– excesso de café-
-excesso de medo-
– a cerveja fora de hora-
-excesso de medo novamente-
da última vez foi excesso de excesso
não sou dada às exceções
tudo que contém vida
devoro
ultimamente a vida vem em conta gotas
doses homeopáticas
não preenchem o vazio
e o relógio olhando para mim com cara de sono
-dorme aí senhor relógio
não tenho horas para nada
você não cura taquicardias
passo creme acido retinóico
antisinais
o livro de Lorca na cabeceira
medo de Lorca poeta louco
escondo o livro de mim
será que a 180 batidas por minuto
o coração explode?
Lorca fuzilado
Herzog enforcado
Stuart Angel assassinado
meu coração saindo pela boca
os olhos desmaiados de sono
a cabeça trabalha como uma fábrica
medita medita medita
faz yoga pilates
nada
nada nada
nada lembra água mar
Alfonsina foi ao mar
lavar angústias
por lá ficou
amanhece
resisto
sempre resisto
coloco água em minhas plantas
nada
nada
nada de nada
beijo a boca da kalanchoe lilás
o dia também tem seus estatutos.
Vigília
meus olhos em estado de alerta
uma aflição congênita no peito
sofro em conta gotas
a minha cara minha cara
de guerreira vencida
em labirínticas noites
há formatação no silêncio
coração arrítmico: 120/140
-toma meu pulso
-confere a ansiedade
confirma!
há uma plasticidade viva na insônia
me recuso a dormir
preciso vigiar -me
ouvir-me
acomodar meus fantasmas
lançar pedidos de socorro
em vãos
logo vai amanhecer
comme d’habitude
o pássaro vai cantar
penso nas Marias e Rosas
que também sofrem
solitárias
o arco do dia se abre em cinzas
o dia também tem seus estatutos.
Palavras Madalenas arrependidas
ás vezes a poesia cansa
se recolhe para dentro do peito da poeta
como a passarinha guarda os ovos no ninho
ou a mulher que recolhe a roupa do varal ainda molhada.
moro na cidadezinha perdida entre os canaviais.
sou poeta sem palavras
qual a utilidade das palavras onde a vida parou?
quem sabe pendurar a palavra no açougue e vê-la sangrar junto às carnes dos bois recém – abatidos?
a palavra moída junto com a cana. palavra álcool açúcar garapa.
palavra nas gôndolas do supermercado entre Coca-Cola e querosene.
palavra fumo de corda.
fumo as palavras.
e trago.
a palavra nos escritórios dos advogados.
palavra processada como grãos de milho. palavra presa. palavra crime. porta de cadeia.
a palavra no esgoto a céu aberto. o rio tudo leva.
minha palavra não tem vitrine nem néon. não vale nada no índice dow Jones. palavra não é capital .
palavra vale menos que uma conversa no Whatsapp
menos que uma live no YouTube
que um joguinho no celular
que fotos no Instagram .
recolho as palavras como Adélia recolhe do ninho os ovos.
talvez a rotina perfeita é a palavra presa.
assim como eu nessa cidade incrustada entre usinas.
assim como as mulheres desse sertão que casam tem filhos e repassam a sina . como uma maldição das palavras.
Ensinamento pelos ossos
todos os dias
alguém entregava fios de cabelo
que eu perdia no caminho da escola
todos os dias eu sonhava com perucas
e dez quilos a mais
a anorexia me comia por dentro
e por fora
é câncer ?
é aids?
leite
água
era
o
que
descia
e minha filha pequena
aprendendo a contar
de um a cinco
em minhas costelas.
Angela Maria Zanirato Salomão
Professora de História, Pós-Graduada pela UNESP de Assis e pela UEM, Maringá.
Participou do Mapa Cultural Paulista versão 2015/ 2016, onde foi classificada para a fase final na modalidade conto. Participa da Associação de Escritores e Poetas de Paraguaçu Paulista- APEP. Tem poemas publicados em várias antologias. Foi publicada nos sites : Blocos Online , Parol , Movimiento Poetas del Mundo , Antologia do Mapa Cultural Paulista edição 2015/2016, versão e-book, Revista de Ouro Revista Ver- O- Poema, Revista InComunidade, Mallarmargens, Revista Digital Literatura e Fechadura, Revista Ruído Manifesto, Revista Ser MulherArte e na Revista Feminista Helenas. Foi curadora do projeto doze contos insólitos do poeta Márcio Saraiva, em 2019. Em 2020 foi classificada em primeiro lugar no concurso de poesias da Editora Arribaçã. Está presente na Antologia As Mulheres Poetas na Literatura Brasileira lançada pela Editora Arribaçã 2021. Foi selecionada pela editora Rizomas para publicar original de livro de poesia em 2022. Foi selecionada também em 2022 pela editora Helvétia para publicar o romance Mulheres à margem: entre o asfalto e o bordel.