Cultura

Trecho do livro “Para os que ficam” | Alex Andrade

 

V

 

Naqueles dias intermináveis. Dias de sobrevivência e de muda esperança. Olhava meu pai sentado em seu cantinho do sofá, espiava de relance para que não despertasse a sua curiosidade, o som da televisão regendo a orquestra do dia e de repente percebo o fio de cabelo branco escapando da presilha, suave, leve, com o vento da respiração e dos perdigotos vai tomando forma até se esparramar no chão à minha frente, respira e inspira, de um súbito me dirijo à penteadeira onde está o maço de cigarros, mas me atento ao chão, um fio enorme e branco desmaiado me provoca ânsia como se fosse um cadáver. Um cadáver de mim. Ajeito o cabelo para não perder mais nenhum fio, ainda respiro profundamente, estou velha, penso, depois, esqueço, olho entre os dedos para me assegurar de que não havia puxado mais nenhum fio inusitado, o cigarro me entontece em cima da mesinha, que horas é essa que me vieram tantos pensamentos à mente, me pergunto. Agacho e pego o fio branco com a ponta dos dedos. Percebo que meu pai me observa de onde está, a televisão não sustenta a sua atenção, eu sou a programação extraordinária do dia, eu e meu fio branco de cabelo feito um defunto em meus dedos. Então corro ao espelho, não dá mais para contabilizar, acho que uma boa porcentagem desses fios cadavéricos é da responsabilidade do Jota, “inferno!”, resmungo, enquanto vejo o vulto de meu pai seguir em direção à janela da sala. Estou tomada desses cabelos cadáveres. Desvio o olhar do espelho e dos fios brancos, a fumaça espessa preenche o vazio que se faz à minha frente, baforadas tomam forma atravessando o basculante do banheiro. Sinto êxtase quando me sento na privada, calcinha arriada até às canelas, a sensação de liberdade de ficar assim paralisada enquanto a urina escapa de dentro e sinto um alívio/ suspiro/ gratidão e qualquer coisa que possa me dar o direito de estar comigo e só. Não quero pensar em nada, não sou obrigada. Permaneço contraindo o corpo para ejetar toda a compulsão do álcool e quem sabe promover a minha redenção, para dois minutos seguintes voltar a cometer meus exageros e beber, beber e beber. Não sei o que fazer. 

 

Os comprimidos preenchem a mão que ofereço ao velho, enquanto sustento com os dedos ainda sarando da queimadura o copo com água. “Hora dos remédios!”, anuncio. Ele me olha com os olhos que interrogam sempre a mesma coisa “porque tenho que tomar tanto remédio?”, mas desconverso, pois preciso preparar o almoço, preciso ligar para o oftalmologista, pagar os boletos de água, luz e gás, acender um cigarro, abrir uma garrafa de cerveja e se der tempo, não pensar em nada.

 

Escurece.

 

Quando meu velho dorme, sinto calafrios por todos os ossos, como se o amanhã ficasse suspenso, preso ao mastro do nosso navio prestes a afundar. Começo então a andar pela sala, em seguida, me dirijo ao banheiro, fico por poucos minutos sentada na privada sem conseguir fazer nada, apenas penso, observo o ambiente, esfrego as mãos, me olho ao espelho, despenteio os cabelos, depois, abro devagar a porta, vou saindo de lá como se tivesse cometido um crime, abro a geladeira, poucas garrafas de cerveja desmaiadas sobre a bandeja gelada me esperam. Em um movimento contínuo  apanho uma cerveja, abro a garrafa, retorno à geladeira, apanho outra, as horas ganham o peso de uma noite inteira, nenhum barulho vem da rua, escuto o silêncio de fora, espio o ronronar que vem do quarto, ele respira, sossego, ainda pairo de frente ao espelho, faço planos para um dia colorir os fios cadavéricos, acho que Jota não gostaria de me ver assim, “você fica tão bonita quando pinta o cabelo dessa cor, como é mesmo o nome dessa tinta?”, ele pergunta, “é Borgonha vibrante, Jota, você gosta mesmo?”, interrogo, enquanto ele enfia as narinas nos fios avermelhados ainda exalando o cheiro da tinta, “pintei em casa mesmo, meu amor, não tenho muito jeito, mas o dinheiro não deu para pagar um colorista, estou com a testa toda borrada de tinta”, rimos os dois, e então, ele abre uma cerveja, bebe um gole no gargalho e me oferece, seus dedos percorrem os caminhos que a tinta deixou entre a nuca e o casco da cabeça, meu homem me embriaga. Os calafrios passam quando começo a cochilar na sala, adormeço, gostaria que a primeira coisa que ouvisse pela manhã fosse o canto dos pássaros, que fosse um colibri, que fosse um uirapuru, que fosse um canarinho. Quando criança gostava de imaginar os pássaros voando, sentir a brisa do vento no rosto, a sensação de liberdade que eles imprimem no nosso imaginário, deixar que a natureza me encontre. Mas meu pai me observa silenciosamente de pé, permaneço estatelada com os braços estirados para fora do sofá, uma ressaca enorme, enquanto a nebulosidade da vista vai apresentando aqueles cabelos brancos desgrenhados, levemente sonolentos, por pouco não se aproxima para tocar-me e ter a certeza de que estou viva. Quando estou dormindo, meu pai acha que estou morta.

 

Ele me olha durante muito tempo, acredito que lhe venha a sombra do que viveu com minha mãe, deitada no sofá da sala. A noite escura e a televisão refletindo com suas imagens e pixels pela parede, toda a programação passando por ele, iluminando aquele homem sem cor. O teto, o silêncio, o vento frio que vem da rua e o corpo imóvel de minha mãe. Por várias vezes ele tentou acordá-la. Mas ela não reagia. Então, com muito sacrifício a carregou a um hospital. Ela teve um mal súbito, disse o médico ao se dirigir à sala de espera. Ouvi a notícia e não consegui assimilar mais nada. Meu pai estava com o rosto colado à janela, olhando a chuva que caía lá fora. Os pingos tocavam na vidraça e produziam um som ensurdecedor, a água da chuva inundava as ruas em torno do hospital, ele continuava observando a chuva que caía. O som das gotas contra a vidraça, a voz do médico rompendo o espaço, nada mais restou. 

 

Abro as janelas da sala para que o vento da manhã dissolva a cortina de fumaça que entope o ambiente. Preparo o café, uma, duas colherada de pó sobre o coador de pano, enquanto a água ferve no fogão, separo o adoçante e retiro o queijo branco da geladeira, a água borbulha na chaleira, espio de mansinho a absorção da água pelo pó e fico ouvindo o barulho das gotículas do café coado atravessando o pano encardido e tocando no fundo da garrafa térmica, tudo na vida tem um movimento, uma ação, uma continuidade, espero pacientemente que o café preencha a garrafa até o topo, sinto o cheiro bom que exala e que pouco a pouco vai substituindo o cheiro da nicotina queimada que o vento levou para a atmosfera, o velho apareceu de repente pelo corredor, “vou urinar”, sussurrou, e em seguida virou-se para mim e, como de praxe, perguntou para não perder o hábito, “que horas é essa?”.

 

Depois do café e poucas palavras proferidas na mesa, disse a ele que levantasse, escovasse os dentes, pois iria levá-lo para fazer exames de rotina, “e os meus remédios?”, ele retornou antes de chegar ao banheiro, “papai, faltam dez minutos para a hora do remédio, eu não esqueci!”, disse, ainda recolhendo os pires e as xícaras da mesa.

 

Mandei-o escovar os dentes e se preparar para tomar banho. Por um instante ficou parado me observando, depois virou-se e seguiu para cumprir o recomendado. Mas foi difícil fazê-lo entender que precisava sair de casa.

 

“Porque preciso sair?”

 

“Exame.”

 

“Mas eu não estou sentindo nada.”

 

“Por isso mesmo, papai, para ter a certeza de que o Senhor está bem.”

 

Ele pensou, ficou parado por um bom tempo, não escovou os dentes e nem se preparou para tomar banho. 

 

“Já fez o que pedi?”

 

A certa altura senti que as informações o imobilizaram, olhei de relance pelo corredor, ao me perceber lhe vigiando, pôs a se movimentar pela casa, antes no quarto, depois no banheiro, depois na cozinha. Dei um rumo à sua indecisão direcionando seus passos para o box. Entretanto, ele esperava pacientemente que tirasse a sua roupa. “Agora o senhor tire esse short”, disse, enquanto girava a torneira para abrir a água do chuveiro. Ele segurou firme em meu braço, ora para se apoiar, ora para chamar a minha atenção, como se quisesse me dizer alguma coisa, mas não disse nada, fiquei do lado de fora do box dando os comandos, “isso, pai, esfrega devagar o sabonete entre as partes, não se apresse, cuidado para não cair!”. Ele não me olhava em momento algum, mas ouvia e obedecia, então esperei que a água escorresse, o enxuguei e o mandei para fora, dizendo: “agora fique sentado no sofá, é a minha vez de tomar banho”. Ele ficou parado. Percebi que naquela manhã meu pai estava mais inseguro do que nos outros dias, e por alguns minutos, me distraí apanhando os cremes e o secador de cabelo. Depois, de repente, ele saiu do banheiro e foi sentar-se no sofá. Abri o chuveiro e deixei a água dissolver os pensamentos. A água batia com força no meu corpo, quente e pulsante, fiquei um bom tempo com a cabeça debaixo daquela torrente. Meu pai levantou-se, veio na direção do banheiro calmamente  e com a chave da porta do banheiro na mão, puxou-a freneticamente pela maçaneta e virou a chave. Gritei: “pai, o que o senhor está fazendo?” – e ele não respondeu.

 

Me enrolei na toalha ainda com o cabelo cheio de xampu e sobressaltada, rapidamente agarrei a maçaneta da porta. Estava trancada no banheiro. 

 

“Pai, abre essa porta!”

 

Fotografia de Alex Andrade

 

 Alex Andrade é escritor e arte-educador. 

Carioca, Andrade é um leitor nato, desde criança adquiriu o hábito da leitura. Com 13 livros publicados, entre literatura para as infâncias e para os adultos, Andrade coleciona críticas elogiosas ao seu trabalho na escrita. O livro “Para os que ficam” é um dos livros do autor que foi mais elogiado até então. Alex é o criador do podcast literário Conta Conto onde escritores e escritoras leem os seus contos e textos autorais no canal de streaming. O podcast está fazendo enorme sucesso. 

Alex Andrade publicou os infantis “A menina que entrou na história”, “O Gigante “, “A menina e a sapatilha/ O menino e a chuteira ” e os romances “Antes que Deus me esqueça “, “Longe dos olhos” e os livros de contos “Poema”, “Amores, truques e outras versões ” e “As horas “.

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