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“Penélope dos trópicos” – Um romance que todo brasileiro deveria ler | Krishnamurti Góes dos Anjos

Krishnamurti Góes dos Anjos

 

“Penélope dos trópicos” de Luciana Hidalgo, Editora do Silvestre. 2022

 

Mito e literatura, em visão geral e abrangente, são duas criações humanas que se complementam porque explanam e interpretam a realidade, ou ressignificam-na, por meio do imaginário ou da psique do homem. Assim, são tentativas de teorizar sobre aspectos sociais e ontológicos do ser. Mais suscintamente poderíamos complementar que o mito reflete arquétipos humanos que a literatura tenta compreender e retratar. Há quase mil anos antes de Cristo, viveu na Grécia um tal de Homero (928 a.C.- 898 a.C.) que escreveu obra majestosa a que deu o nome de “Odisseia”. Grosso modo, é uma narrativa da longa viagem de retorno de Ulisses da guerra de Troia e a da espera a que sua esposa Penélope se submeteu durante vinte anos. Nesse ínterim, como não havia notícia de Ulisses, nem se estaria vivo ou morto, o pai de Penélope sugeriu que sua filha se casasse novamente. Ela, fiel ao marido, recusou, dizendo que esperaria a sua volta. Entretanto, diante da insistência do pai, e para não desagradá-lo, resolveu aceitar a corte dos pretendentes à sua mão, estabelecendo a condição de que o novo casamento somente aconteceria depois que terminasse de tecer um sudário. Com esse estratagema, esperava adiar o evento o máximo possível. Assim foi. Durante o dia, aos olhos de todos, ela tecia, e à noite, secretamente, ela desmanchava todo o trabalho. O resumo disto é que se sedimentou no imaginário humano o mito de Penélope, uma das mais claras e populares imagens de feminilidade. Aquela que tece a solidão e enquanto espera, borda pacientemente, junta fios. Imagem clara da esposa fiel por excelência, uma história tida como um exemplo de fidelidade e obediência feminina.

 

A recente publicação do romance “Penélope dos trópicos” da escritora Luciana Hidalgo, editado pela recém-fundada Editora do Silvestre, parece, em uma primeira vista, simplesmente sobrepor-se ao drama mitológico que aparece no título. Mas felizmente não é o que ocorre. A obra levanta uma série de questões identificáveis da contemporaneidade, oferecendo um novo olhar para o mito grego. A começar pela protagonista, uma arquiteta de 30 anos de idade, super descolada, moradora do Rio de Janeiro, disposta a enfrentar o profundo drama da vida social da cidade e sonhadoramente buscar por aventuras de vida verdadeiramente homéricas. Parece ser essa a motivação do romance. E não deixa de ser, em uma certa medida, o que ocorre nessa obra ao mesmo tempo inteligente, bem-humorada e reflexiva. Mas não compremos facilmente esta ideia. A autora tem intenções outras que vamos desvendando na vida da Penélope carioca, uma mestiça brasileira que vai de um desencontro a outro, recombinando a própria vida, dissecando a dolorosa memória de sua existência, tecendo fios outros que nos falam de criação, invenção e possibilidades de conhecer outros caminhos.

 

E ao falar da criatura convém mencionar a criadora. A senhora Luciana Hidalgo foi repórter-redatora em cadernos culturais e literários de grandes jornais cariocas, trabalhou em editora, editou e coeditou revistas de cultura/literatura e fez carreira universitária, incluindo aí doutorados pela UERJ e na Sorbonne (Paris 3). Nesse meio tempo, publicou centenas de artigos em jornais, revistas e livros e finalmente, em 2010, começa a construir uma sólida carreira como escritora com a publicação de “Arthur Bispo do Rosário – O senhor do labirinto”, uma biografia. Obra premiada com um Jabuti e adaptada para o cinema. Em 2008, lança o ensaio “Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura”, também premiado com um Jabuti. Já em obras de ficção, estreia com o romance “O passeador” (2011), contemplado com a Bolsa da Funarte de Criação Literária e finalista dos prêmios São Paulo de Literatura e do Prêmio Portugal Telecom. Brinda os leitores com o romance “Rio-Paris-Rio” (2016), obra selecionada pelo Programa de Residência para Escritores da Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs de Saint-Nazaire, na França, e estudada, desde então, em mais de trinta universidades no Brasil e no exterior. É portanto um raro fenômeno de sucesso de mídia, crítica e público. Justíssimo por sinal como veremos adiante.

 

Voltemos ao romance, tendo em vista que a revisitação do mito sempre e em qualquer época em que isso aconteça, impõe releitura de acordo com as condições sociais, culturais e políticas do momento da recriação. Vale dizer o humano sob a ótica feminina (não necessariamente feminista), no Brasil desta terceira década do século XXI, ainda com profundos fossos sociais. Este um ponto. Outro, é que a voz narrativa onisciente está sempre ali a mostrar-se acima e um pouco fora de miúdas cogitações e por isso, pode manter perante elas, vivo e atilado, o seu espírito crítico conduzindo o leitor numa habilidade ficcional extraordinária para outras profundas questões que verdadeiramente importam.

 

O mistério chamado romance em Luciana Hidalgo expressa anseios interiores da autora, sua vocação, e também a técnica de apresentar a interpretação desses anseios. Em um fluxo intenso e vibrante, absorvido quase como uma visão cinematográfica da vida e dos homens, assistimos ao aprofundar de passos nos primeiros domínios da vida interior de Penélope, estudando as reações psicológicas que lhe moldaram a existência, desde o esfumado inevitável das primeiras impressões de vida, nascida que foi de um pai professor de latim e uma mãe professora de mitologia grega, a tragédia que se abate por sobre a família, a criação sob tutores em tetos diferentes… etc. A escolha pela formação em arquitetura, os amigos e parentes mais próximos. Uma mulher que desde cedo construiu o seu próprio mundo com as mãos. Mas isto não a livra das tormentosas inquirições existenciais. É um romance psicológico também.

 

A autora vai aos poucos aprofundando a psique da personagem e serenamente adentrando no terreno alucinatório que é o ser dentro de si mesmo… Chama atenção o estilo em que a narrativa flui. Não nos referimos apenas à forma de arrumar as palavras numa frase ou à maneira de dispor as frases num parágrafo; é mais do que isso, porque inclui uma espécie de concepção do romance, uma filosofia do romance. A personalidade dos grandes escritores de ficção não se mede apenas pelo seu poder imaginativo, mas pelo aproveitamento que fazem da imaginação: pelo estilo literário que a imaginação adquire. A noção psicológica de estilo não simplesmente gramatical ou sintática. Ao lado disto temos a inteligente seleção de episódios na argúcia da romancista que faz ressaltar os traços predominantes de ambientes e das personagens envolvidas, a segurança com que movimenta o espaço e o tempo, valores supremos do romance.

 

Ao final dessa excepcional obra sentimos a suave luz de poesia que difunde-se de suas últimas páginas. Positivamente a nossa Penélope mestiça não tece sua vida porque espera, ela tece a sua esperança. Enquanto espera, desfaz os pontos antigos, cria outros desenhos, novas matizes à espera de si mesma. Sua mãe legou-lhe nobre ideal, que sozinho na cabeça de uma única pessoa nada pode. O ideal arquetípico da Filosofia também de origem grega, e conhecido como Paidéia – entendida como a busca do sentido de uma teoria consciente da EDUCAÇÃO e do agir do homem em sociedade – esse o sonho oculto da Penélope dos trópicos.

 

O avanço da barbaridade no Brasil nos últimos anos faz-nos lembrar o voo de uma galinha. Aos pulos, aos solavancos, sem destino, sem direção. A galinha bate asas, e ergue-se no ar sem destino, sem rumo, às vezes para frente outras para trás. Assim a vida humana no imenso Brasil. Não há forma de entendermos que a fonte do problema é mais profunda e mais longínqua, encontra-se no ponto de intersecção originária em nosso passado, daquele feixe de situações mal resolvidas e divergentes que chamamos educação, política, economia, religião, ciência e etc. Atualmente os falsos valores se misturaram de tal modo com os legítimos que já não sabemos o que é bom ou o que é ruim. Estamos confusos sem saber que rumos políticos iremos de fato tomar, apostando mais uma vez e unicamente, em salvadores da pátria. Atordoados “pelo bafo de justiçamento que emana da boca de certos compatriotas e se mistura ao bafão do cimentado da cidade, requentando ódios, cozinhando miolos moles, tudo que um dia foi vestígio da razão”. Perdidos nessa barafunda de religiosidades de todo tipo de credo, sempre à mercê das desordens econômicas de um capitalismo voraz que não poupa nada nem ninguém. E finalmente, imersos na bagunça em que a mediocridade agressiva e generalizada se escancarou a festejar a si mesma. Resumo da ópera: estamos completamente desorientados em meio a esse torvelinho de confusões que nós mesmos criamos.

 

O problema do homem tão bem caracterizado no romance como o mestiço-cordial-carnavalizado, (leia-se nós brasileiros), é que esse espécime é “capaz de sorrir nas piores adversidades, aceitar todo tipo de violência, se deixar escravizar, abusar, ser depenado pelo Estado, e ainda assim viver contente de batuque em batuque como se a vida fosse uma eterna rodinha de samba com o Acaso.” O mal reside principalmente em nós, e somente será possível fazer alguma coisa de efetivamente positivo em nossa sociedade no dia em que pudermos de fato e intimamente, reformarmo-nos… Esta nos parece ser a atitude ideológica, a virtude moral (areté) que devemos manter frente à vida. É o que o romance da senhora Luciana Hidalgo nos faz refletir profundamente.

 

Livro: “Penélope dos trópicos” – Romance de Luciana Hidalgo. Editora do Silvestre – Rio de Janeiro – RJ, 2022, Brasil. 211p. – ISBN: 978-65-998207-0-0

 

Fotografia de Krishnamurti Góes dos Anjos

Krishnamurti Góes dos Anjos é escritor brasileiro, pesquisador e crítico literário. Tem publicados os livros: Il Crime dei Caminho Novo – Romance Histórico, Gato de Telhado – Contos, Um Novo Século – Contos, Embriagado Intelecto e outros contos, Doze Contos & meio Poema e À flor da pele – Contos.  Participou de 28 Coletâneas e antologias, algumas resultantes de Prêmios Literários. Há textos seus publicados em revistas no Brasil, Argentina, Chile, Peru, Venezuela, Panamá, México e Espanha. Seu último romance pela editora portuguesa Chiado – O Touro do rebanho – Romance histórico, obteve o primeiro lugar no Concurso Internacional – Prêmio José de Alencar, da União Brasileira de Escritores UBE/RJ em 2014. Colabora regularmente com resenhas, contos e ensaios em diversos sites e publicações. Atuando com a crítica literária, resenhou mais de 300 obras de literatura brasileira contemporânea publicadas em diversos jornais, revistas e sites literários.

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