

Não haverá nunca estrela diurna que amorteça
a amputação de um amor grande demais
observar um pedaço de palmeira
pavoneando-se na boca de um cão
confiando aí a filosofia toda
forçar um pouco a fome para que daí venha
uma parábola de início.
I keep seeking the exit or the home
de qualquer ponto pode irradiar o gérmen grego
com que tocar o mundo.
(in Peixe Voador, Labirinto, 2022)
***
Imunizámo-nos sob a transformação das casas
corpos de linguagem infinita altamente transmissível
foi sem pudor que habitámos a distância e fizémos elegia
do nosso sentido catapultado para dentro
agora resistimos à fissura que devolve a circulação ao mundo
e reivindicamos a poética dos nossos lugares antologia
onde fundámos a forma elástica de nos ser
o modo silêncio ebulição
estímulo procriação
um dueto de sopro e cordas que semeámos
para ser o vento. a tempestade.
(in Peixe Voador, Labirinto, 2022)
***
In memoriam:
saber sem prece cair a pique
dando peito e costas ao poema que é
souvent, um poço áspero com fundo
a ferida engomada e defumada em metáfora
porque isto de ser chaga à luz do dia
sem veludo a amansar a retina
é uma ilegibilidade de mármore a
irradiar entre fissuras
acordar um dia com o frasco de diluente
vazio nas mãos, aceitando a besta
o veneno, o fogo posto, a eternidade
de que há raízes antigas prontas para romper
a terra abrindo espaço ao sulco mínimo onde poisar
ao de leve, a cabeça.
(in Peixe Voador, Labirinto, 2022)
***
Toca-se só por aproximação
no espectro mais amplo da luz natural
como uma variante esquecida
de pavor disciplinado
a morder a boca de Aquiles
calcanhar órfão do sintoma original
os antigos chamar-lhe-iam vesânia
um relógio que balança, uma batida repetida
uma outra vaga de choque vertendo ironia pélvica
na modulação da pergunta até ao êxtase oracular
como rastrear a perda até à era glacial?
parece quase inumano
que se possa criar um intervalo assim
que se possa até preenchê-lo de música
e enganar as corujas com limonada caseira
Antígona regressando a Tebas ou a regra invisível
da sublimação. poder tudo pela coexistência de estados
enquanto as barragens divergem da seca
e a dor perde a pulsão de morte.
***
Cortejava manifestações de mundo
numa alquimia de semi-deus
quanta cisma sob a oliveira para
se arredondar na conclusão de que cada
dia é necessário à insubmissa derivação
somos tudo o que podemos divinamente ser
um gigante silêncio aflui às penas de
um rouxinol e numa inversão de alvorada
tomba, alargando o futuro.


Fotografia de Rita Pitschieller Pupo
Rita Pitschieller Pupo (Lisboa, 1981) Gosta de viver perto do mar. Licenciada em Ciências da Comunicação na Nova FCSH, estudou formação de actores na ESTC, literatura e escrita criativa em diversos fóruns. A par do trabalho em comunicação lecciona o Seminário ‘Estados criativos e expressão poética no processo psicoterapêutico’ na APPSI – Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica, onde é também curadora do Centro de Criação Psicanalítica. Tem poemas publicados em revistas literárias e publicações online em Portugal e no Brasil. Em Maio de 2022 publicou o livro de poemas ’Peixe Voador’, pela Editora Labirinto.