Cultura

Cinco poemas | Rita Pitschieller Pupo

Não haverá nunca estrela diurna que amorteça

a amputação de um amor grande demais

observar um pedaço de palmeira

pavoneando-se na boca de um cão 

confiando aí a filosofia toda

forçar um pouco a fome para que daí venha

uma parábola de início.

 

I keep seeking the exit or the home

de qualquer ponto pode irradiar o gérmen grego 

com que tocar o mundo. 

 

(in Peixe Voador, Labirinto, 2022) 

 

***

 

Imunizámo-nos sob a transformação das casas 

corpos de linguagem infinita altamente transmissível 

foi sem pudor que habitámos a distância e fizémos elegia 

do nosso sentido catapultado para dentro 

agora resistimos à fissura que devolve a circulação ao mundo 

e reivindicamos a poética dos nossos lugares antologia 

onde fundámos a forma elástica de nos ser 

o modo silêncio ebulição 

estímulo procriação 

um dueto de sopro e cordas que semeámos 

para ser o vento. a tempestade.

 

(in Peixe Voador, Labirinto, 2022) 

 

***

 

In memoriam:

saber sem prece cair a pique

dando peito e costas ao poema que é

souvent, um poço áspero com fundo

a ferida engomada e defumada em metáfora

porque isto de ser chaga à luz do dia

sem veludo a amansar a retina

é uma ilegibilidade de mármore a 

irradiar entre fissuras

 

acordar um dia com o frasco de diluente 

vazio nas mãos, aceitando a besta

o veneno, o fogo posto, a eternidade

de que há raízes antigas prontas para romper 

a terra abrindo espaço ao sulco mínimo onde poisar

ao de leve, a cabeça.

 

(in Peixe Voador, Labirinto, 2022) 

 

***

 

Toca-se só por aproximação

no espectro mais amplo da luz natural

como uma variante esquecida 

de pavor disciplinado 

a morder a boca de Aquiles

calcanhar órfão do sintoma original

 

os antigos chamar-lhe-iam vesânia

um relógio que balança, uma batida repetida

uma outra vaga de choque vertendo ironia pélvica

na modulação da pergunta até ao êxtase oracular

como rastrear a perda até à era glacial?

parece quase inumano

que se possa criar um intervalo assim

que se possa até preenchê-lo de música 

e enganar as corujas com limonada caseira

 

Antígona regressando a Tebas ou a regra invisível 

da sublimação. poder tudo pela coexistência de estados

enquanto as barragens divergem da seca

e a dor perde a pulsão de morte.

 

***

 

Cortejava manifestações de mundo 

numa alquimia de semi-deus

quanta cisma sob a oliveira para 

se arredondar na conclusão de que cada 

dia é necessário à insubmissa derivação 

somos tudo o que podemos divinamente ser

 

um gigante silêncio aflui às penas de 

um rouxinol e numa inversão de alvorada 

tomba, alargando o futuro.

 

Fotografia de Rita Pitschieller Pupo

 

Rita Pitschieller Pupo (Lisboa, 1981) Gosta de viver perto do mar. Licenciada em Ciências da Comunicação na Nova FCSH, estudou formação de actores na ESTC, literatura e escrita criativa em diversos fóruns. A par do trabalho em comunicação lecciona o Seminário ‘Estados criativos e expressão poética no processo psicoterapêutico’ na APPSI – Associação Portuguesa de Psicoterapia Psicanalítica, onde é também curadora do Centro de Criação Psicanalítica. Tem poemas publicados em revistas literárias e publicações online em Portugal e no Brasil. Em Maio de 2022 publicou o livro de poemas ’Peixe Voador’, pela Editora Labirinto.

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