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“Penélope dos trópicos” de Luciana Hidalgo | Myrian Naves, Luciana Hidalgo

“Penélope dos trópicos” de Luciana Hidalgo

“Penélope dos trópicos” de Luciana Hidalgo

Myrian Naves



Segundo a sinopse, em “Penélope dos Trópicos”, o mais recente  romance da autora brasileira Luciana Hidalgo, Penélope anda diariamente numa praia tropical, abrindo caminho entre gaivotas e humanos. Ela estranha a humanidade à sua volta, a violência dos movimentos de extrema direita, e nem por isso se intimida. Aos 30 anos, essa inquieta arquiteta vive todos os absurdos do seu tempo com inteligência, coragem e humor. Enfrenta a polícia em manifestações contra neofascistas quando necessário, inventa projetos utópicos para reduzir a desigualdade social ao redor, procura o amor (esse mistério) em aplicativos de encontros no celular. 

 

Autora contemplada com dois prêmios Jabuti, Luciana Hidalgo se inspira na clássica personagem da Odisseia de Homero para criar a sua Penélope dos trópicos, uma protagonista forte e carismática, hábil em lidar com todas as questões femininas e feministas, políticas e existenciais da pós-modernidade, sem jamais perder o senso crítico. 

 

Nesse épico intimista, é ela a heroína, sempre disposta a recorrer a deuses e mitos gregos em sua busca frenética por um entendimento maior de si mesma, numa sociedade cada vez mais robotizada e embrutecida. 

 

Escrito numa prosa poética enxuta e bem-humorada, esse romance se destaca pela originalidade da narrativa e pela potência dessa Penélope contemporânea simplesmente arrebatadora.

 

Sobre a autora

 

Luciana Hidalgo lançou Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto, Ed. Rocco em 1996. A biografia, sucesso de mídia, crítica e público, foi premiada com um Jabuti e adaptada para o cinema em 2010. Reeditada em 2011, é obra de referência nos estudos acadêmicos sobre o genial artista.

 

Em 2008, a autora publicou o ensaio Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura, Annablume, também premiado com um Jabuti. A obra se consolidou como importante contribuição às pesquisas sobre o autor e sobre escritos produzidos em manicômios.

 

Em 2011, Luciana lançou O passeador, Rocco, romance inspirado nas errâncias do flâneur Afonso (o jovem Lima Barreto) pelo Rio de Janeiro da Belle Époque. Contemplado com a Bolsa Funarte de Criação Literária e calorosamente acolhido pela crítica, foi finalista dos prêmios Jabuti, São Paulo de Literatura e Portugal Telecom, atual Oceanos.

 

Em 2016, a autora publicou Rio-Paris-Rio, Ed. Rocco, a história de dois jovens brasileiros exilados na Paris de 1968. Selecionado pelo Programa de Residência para Escritores da Maison des Écrivains Étrangers et des Traducteurs de Saint-Nazaire, na França, o romance virou objeto de estudo em mais de trinta universidades no Brasil, na Europa e nos EUA, inspirando aulas, palestras, artigos e teses de doutorado.

 

Antes de se dedicar somente à sua ficção, Luciana Hidalgo foi repórter-redatora em cadernos culturais e literários de grandes jornais cariocas, trabalhou em editora, editou e coeditou revistas de cultura/literatura e fez carreira universitária. É doutora em literatura comparada pela Uerj com dois pós-doutorados: um na Uerj, quando deu aulas no Instituto de Letras, outro na Sorbonne (Paris 3), onde é pesquisadora-associada. Nesse percurso, publicou centenas de artigos em jornais, revistas, livros e deu palestras em diversos eventos literários e faculdades no Brasil e na Europa.

 

Lançamento do romance “Penélope dos trópicos”, de Luciana Hidalgo: Novembro de 2022

Editora do Silvestre 

Contato: editoradosilvestre@gmail.com

Número de páginas: 216

 

Um excerto de Penélope dos trópicos

 

Luciana Hidalgo

 

Quem a assiste de uma posição privilegiada sabe que essa heroína jamais cansada da guerra atravessa os dias desenhando o mundo na tentativa de compreendê-lo e, apesar da incompreensão crônica, insiste nele até o fim, custe o que custar. Chega a ser tocante sua obstinação em projetá-lo muito melhor do que é, do que foi, do que jamais será. Ah, os utopistas. Uns tolos. Porém, sem eles, sem suas interferências diárias, a humanidade já estaria liquidada.

 

Inconcebível, portanto, a humanidade sem a astuciosa Penélope, Penélope dos Trópicos, parte integrante e atuante da geografia que habita. É bem verdade que ela preferiria ser um rochedo, ou uma ilha pedregosa rodeada de azul por todos os lados, ou uma estrutura geológica sólida e irremovível. Não. É apenas um bibelô humano e frágil puramente decorativo que o Tempo um dia transformará em pó de esqueleto. E só então, que ironia, ela se tornará elemento constituinte dos seus adorados trópicos.

 

C’est la vie. Infelizmente (ou felizmente) todo humano é cabra marcado pra morrer. Entretanto ninguém aqui se atreverá a revelar data e hora da morte de Penélope. Irrelevante. Melhor segui-la enquanto coisas estranhas e misteriosas não acontecem ao seu corpo efêmero, enquanto ela continua vivíssima no imprevisível universo dos vivos. 

 

Fim de tarde, pôr-do-sol deslumbrante, Penélope faz questão de manter os dois pés bem plantados no pedaço tropical de praia que lhe cabe. Observa gaivotas que primeiro a encantam com a graciosidade das suas asas e dos seus voos, em seguida urubuzam peixes sem o menor encantamento. Quanto mais ela as conhece, mais as adora, necrófagas, lambuzadas do sangue de animais em putrefação. É a natureza.

 

O mar hoje está manso. Manso demais para Penélope, desanimada a entrar numa água parada sem aquela espuminha branca das ondas que tanto a diverte. Irrequieta, prefere sentar ao lado de um Theo que lê. Ele trabalha numa nova tradução da Odisseia que ela ilustrará. 

 

Penélope se entretém rabiscando figuras geométricas na areia, primeiro de forma fortuita, depois na intenção meio incerta de traduzir o Tempo (sempre ele). É um discreto apelo a Cronos, um passatempo meio lúdico meio lúgubre que passa despercebido aos banhistas em volta, cada qual focado no próprio umbigo ou interagindo-rivalizando com outros umbigos. 

 

Em vez de jogar a sua câmera lenta implacável nos outros e sair rotulando tipos e tribos pela praia, Penélope aproveita a calmaria do final do dia para focar apenas no que faz. Afunda o dedo indicador na areia e traça um círculo enorme em volta de si mesma. Dá a volta completa, sentido anti-horário, seu braço como compasso. 

 

Repete o movimento várias vezes, devagar, na mesma linha afundada, para reforçar a ideia de um Tempo circular e circulatório rodando num vaivém exaustivo sem trégua nem saída. Ela não se cansa da sucessão de giros. Pelo contrário, os acha hipnóticos. E hipnótico é bom. Uma maneira eficaz de encenar com o próprio corpo os ponteiros de um relógio desorientado nas horas.

 

Gasta um bocado de tempo nesse vaivém até que resolve desenhar dentro do grande círculo outro menor numa linha pontilhada. A ideia é forçar intervalos no Tempo. Assim. Isso. Para humanos suspirarem. Inspira. Expira. Suspira. Ui. A vida boa, realmente boa, acontece na pausa.

 

Somente quando as curvas (e as pausas) enfim a enjoam, Penélope pega o caminho das retas. Inscreve na areia um pequeno quadrado, pensando assim enquadrar, conter, reter desesperadamente o Tempo. Imagina dentro dele uma ampulheta abarrotada de humanoides minúsculos, a angústia da areia caindo lenta sobre suas cabeças sem possibilidade de quebra do vidro, a não ser num ato de grande violência coletiva que desfaria o pacto humano e colocaria em risco toda a espécie. A revolução

 

Theo finalmente desgruda os olhos do livro para apreciar a geometria penelopiana. Pela postura da desenhista, toda debruçada na areia, não dá para ter uma ideia clara do que ela fabula, então ele chega mais perto. Não há muito a ver senão figuras geométricas ordinárias. O restante está na fabulosa imaginação da fabuladora, que Theo ousa adivinhar cada vez mais, com maior ou menor precisão. 

 

Fotografia de Luciana Hidalgo

 

Myrian Naves, brasileira, de Belo Horizonte, poeta, escritora, editora e professora de Literatura Brasileira. Em comemoração ao Centenário do escritor José Saramago em 2022, organizou a antologia de contos inéditos “Todos os Saramagos”, de autores brasileiros e portugueses pela Páginas Editora, juntamente com a editora Leida Reis. Publica em 2023, “Monami”, poema, pela Páginas Editora. Faz parte do Conselho Editorial de InComunidade. Participa de publicações em revistas, em antologias. Criou a Cantaria, artes e ofícios, nas relações entre literatura. artes e educação, coordenando eventos, lançamentos, cursos e publicações. 

Luciana Hidalgo, autora brasileira, lançou Arthur Bispo do Rosario – O senhor do labirinto (Rocco) em 1996. Reeditada em 2011. Em 2008, a autora publicou o ensaio Literatura da urgência – Lima Barreto no domínio da loucura (Annablume). Em 2011, Luciana lançou O passeador (Rocco, 2011). Em 2016, a autora publicou Rio-Paris-Rio (Rocco). Antes de se dedicar somente à sua ficção, Luciana Hidalgo foi repórter-redatora em cadernos culturais e literários de grandes jornais cariocas, trabalhou em editora, editou e coeditou revistas de cultura/literatura e fez carreira universitária. É doutora em literatura comparada pela Uerj com dois pós-doutorados: um na Uerj, quando deu aulas no Instituto de Letras, outro na Sorbonne (Paris 3), onde é pesquisadora-associada. Nesse percurso, publicou centenas de artigos em jornais, revistas, livros e deu palestras em diversos eventos literários e faculdades no Brasil e na Europa.

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