Fazer do poema um lugar
que compomos a partir
de um intervalo entre o som e o sentido,
(mais ou menos o disse Valéry)
é esculpir o enigma, traçar-lhe o contorno
da forma, emergindo do magma
da linguagem infinita.
Budapeste
Do alto do castelo de Buda
contemplo as luzes da cidade
as montanhas ao longe.
Tudo é tão imóvel na noite
enquanto a vida fervilha
gigantesco coração batendo.
Os teus passos ecoam
junto aos meus
na pedra milenar
até à estátua de Eugene de Savoie,
e caminhamos em direcção
ao palácio de Maria Teresa.
E tudo é tão imóvel na noite
enquanto a beleza nos assalta
e o violinista solitário
do alto da escadaria
toca a sua música
sob os flocos de neve
que tombam docemente.
E tudo é tão imóvel na noite
enquanto a vida fervilha
gigantesco coração batendo
lá em baixo, na cidade.
Attila József (poeta húngaro)
Na noite iluminada
erguia-se a tua estátua
à beira do Danúbio,
olhando enigmaticamente
para as águas do rio.
Sonhaste uma sociedade
que escreveste nos teus poemas
arrastado pelas grandes ideologias do século.
Foste acossado no teu próprio país
que não soube avaliar-te a grandeza.
Restou-te a dor e a loucura
onde entraste mansamente
poeta suicidado, grande entre os grandes.
Hoje olho-te, figura tutelar
à beira do Danúbio
eterno, talvez estejas a pensar
na tua Europa sonhada
na luz do lago Balaton
que foi a tua derradeira visão.
E os teus versos assaltam-me
no frio desta noite
em que te contemplo.
Sabe que és agora eterno!
Fly (Eunaudi)
Quando a beleza te assaltar
deixa que ela voe
e segue-lhe o rasto,
não a demores
porque é dela o segredo do instante.
Desce sobre nós e toca-nos
assim, apanhando-nos
num relance, desprevenidos,
a nós que somos tomados
pela escuridão dos dias
e apenas sabemos atravessar
o vidro e a névoa da solidão.
Quando a beleza te assaltar
liberta-a de ti sem a agarrares
e segue-lhe o rasto
flutuando acima da escuridão
e da névoa que te tem prisioneiro.
Mahler ecoa e leva-me
até às águas de Veneza
que um dia percorri,
num desfile de gôndolas
que era tudo menos romântico.
No emaranhado das memórias
relembro antes o modo
como Visconti filmou os canais da cidade
e a longa viagem por dentro
dos sonhos em carne viva de Aschenbach:
essa beleza que arde
na sua busca desmesurada.
E no emaranhado das memórias
recuo a uma manhã azul de verão
onde, jovem, ainda, li o Fedro.
E é tudo já tão longínquo
tudo se perde na urdidura do passado
e sobre os meus ombros
pesam as palavras como traços
inapagáveis,
esses sim, mais belos do que a gôndola
em que percorri os canais de Veneza.
Quando de tudo nos esquecemos
Quando de tudo nos esquecemos,
gostaria de te perguntar o que fica,
das viagens que fizemos
dos livros que lemos
de tudo aquilo que amámos.
Gostaria de acreditar que o vazio
tudo desalinha na memória,
todavia trouxemos para dentro de nós
tudo aquilo a que por ora não damos rosto.
Gostaria de acreditar que a distância
nos alonga o olhar,
e o infinito é doravante
a lei que nos concede o presente.
Gostaria de acreditar que o tempo
nos concede redenção,
todavia não faz mais
do que mergulhar-nos na ilusão.
E quando de tudo nos esquecemos
os ombros parecem mais leves
mesmo que o olhar não acompanhe
o que ficou para trás. O que esquecemos.
Maria João Cantinho nasceu em Lisboa, em 1963. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde defendeu dissertação de doutoramento. Com diversas publicações científicas em revistas académicas, é actualmente professora do ensino secundário. Membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Collége d’Études Juives (Université Sorbonne IV), organizou vários congressos na área de Filosofia, bem como co-editou diversos livros sobre vários autores (Celan, Levinas, María Zambrano, Walter Benjamin). Colabora em diversas revistas de literatura. Publicou 5 livros de ficção (em Portugal e no Brasil) e quatro livros de poesia, bem como três livros de ensaio. Foi nomeada como finalista do Prémio Telecom, em 2006, com o livro “Caligrafia da Solidão” e foi nomeada como uma das ensaístas do ano com a sua obra “O Anjo Melancólico” pelo Professor Eduardo Prado Coelho, foi vencedora do Prémio Glória de Sant’anna em 2017, pela sua obra «Do Ínfimo» e foi galardoada com o Prémio PEN ensaio em 2020, pelo seu ensaio «Walter Benjamin: Melancolia e Revolução». É Directora da Revista Caliban. É membro da Direcção do PEN Clube Português e membro da APCL.