Poesia & Conto

Cinco poemas Inéditos | Maria João Cantinho

Fazer do poema um lugar

que compomos a partir

de um intervalo entre o som e o sentido,

(mais ou menos o disse Valéry)

é esculpir o enigma, traçar-lhe o contorno

da forma, emergindo do magma

da linguagem infinita.

 

 

Budapeste

 

Do alto do castelo de Buda

contemplo as luzes da cidade

as montanhas ao longe.

Tudo é tão imóvel na noite

enquanto a vida fervilha

gigantesco coração batendo.

Os teus passos ecoam

junto aos meus

na pedra milenar

até à estátua de Eugene de Savoie,

e caminhamos em direcção

ao palácio de Maria Teresa.

E tudo é tão imóvel na noite

enquanto a beleza nos assalta

e o violinista solitário

do alto da escadaria

toca a sua música

sob os flocos de neve

que tombam docemente.

 

E tudo é tão imóvel na noite

enquanto a vida fervilha

gigantesco coração batendo

lá em baixo, na cidade.

 

 

Attila József (poeta húngaro)

 

Na noite iluminada

erguia-se a tua estátua

à beira do Danúbio,

olhando enigmaticamente

para as águas do rio.

 

Sonhaste uma sociedade

que escreveste nos teus poemas

arrastado pelas grandes ideologias do século.

Foste acossado no teu próprio país

que não soube avaliar-te a grandeza.

 

Restou-te a dor e a loucura

onde entraste mansamente

poeta suicidado, grande entre os grandes.

 

Hoje olho-te, figura tutelar

à beira do Danúbio

eterno, talvez estejas a pensar

na tua Europa sonhada

na luz do lago Balaton

que foi a tua derradeira visão.

 

E os teus versos assaltam-me

no frio desta noite

em que te contemplo.

 

Sabe que és agora eterno!

 

 

Fly (Eunaudi)

 

Quando a beleza te assaltar

deixa que ela voe

e segue-lhe o rasto,

não a demores

porque é dela o segredo do instante.

 

Desce sobre nós e toca-nos

assim, apanhando-nos 

num relance, desprevenidos,

a nós que somos tomados

pela escuridão dos dias

e apenas sabemos atravessar

o vidro e a névoa da solidão.

 

Quando a beleza te assaltar

liberta-a de ti sem a agarrares

e segue-lhe o rasto

flutuando acima da escuridão

e da névoa que te tem prisioneiro.

Mahler ecoa e leva-me

até às águas de Veneza

que um dia percorri,

num desfile de gôndolas

que era tudo menos romântico.

No emaranhado das memórias

relembro antes o modo

como Visconti filmou os canais da cidade

e a longa viagem por dentro

dos sonhos em carne viva de Aschenbach:

essa beleza que arde

na sua busca desmesurada.

E no emaranhado das memórias

recuo a uma manhã azul de verão

onde, jovem, ainda, li o Fedro.

E é tudo já tão longínquo 

tudo se perde na urdidura do passado

e sobre os meus ombros

pesam as palavras como traços

inapagáveis,

esses sim, mais belos do que a gôndola

em que percorri os canais de Veneza.

 

 

Quando de tudo nos esquecemos

 

Quando de tudo nos esquecemos,

gostaria de te perguntar o que fica,

das viagens que fizemos

dos livros que lemos

de tudo aquilo que amámos.

 

Gostaria de acreditar que o vazio

tudo desalinha na memória,

todavia trouxemos para dentro de nós

tudo aquilo a que por ora não damos rosto.

 

Gostaria de acreditar que a distância

nos alonga o olhar,

e o infinito é doravante

a lei que nos concede o presente.

 

Gostaria de acreditar que o tempo

nos concede redenção,

todavia não faz mais

do que mergulhar-nos na ilusão.

 

E quando de tudo nos esquecemos

os ombros parecem mais leves

mesmo que o olhar não acompanhe 

o que ficou para trás. O que esquecemos.

 

Fotografia de Maria João Cantinho

Maria João Cantinho nasceu em Lisboa, em 1963. Estudou Filosofia na Universidade Nova de Lisboa, onde defendeu dissertação de doutoramento. Com diversas publicações científicas em revistas académicas, é actualmente professora do ensino secundário. Membro integrado do Centro de Filosofia da Universidade de Lisboa e do Collége d’Études Juives (Université Sorbonne IV), organizou vários congressos na área de Filosofia, bem como co-editou diversos livros sobre vários autores (Celan, Levinas, María Zambrano, Walter Benjamin). Colabora em diversas revistas de literatura. Publicou 5 livros de ficção (em Portugal e no Brasil) e quatro livros de poesia, bem como três livros de ensaio. Foi nomeada como finalista do Prémio Telecom, em 2006, com o livro “Caligrafia da Solidão” e foi nomeada como uma das ensaístas do ano com a sua obra “O Anjo Melancólico” pelo Professor Eduardo Prado Coelho, foi vencedora do Prémio Glória de Sant’anna em 2017, pela sua obra «Do Ínfimo» e foi galardoada com o Prémio PEN ensaio em 2020, pelo seu ensaio «Walter Benjamin: Melancolia e Revolução». É Directora da Revista Caliban. É membro da Direcção do PEN Clube Português e membro da APCL.





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