Cultura

O inverno verde de Gloria Coelho e o choro azul de Antonio Kuschnir | Letícia Ferro

Foto de Debby Hudson na Unsplash

[…]

depois de uma convulsão
é difícil saber
onde você está

mas não há dúvida
de que qualquer caminho
te levará para dentro

[…]

Bruna Mitrano em
Ninguém quis ver, p.83.


De 2022, por óbvia pungência, desejo só a lonjura, excetuando algo que dele pode ser arrancado avulsamente, como por exemplo, estes dois dias (transcritos a seguir) do meu diário (volante, é preciso lembrar!), em que decanto os dias com percepções minhas a partir das de outrem, numa ostensiva frente estética, de palavra social e politicamente comprometida. Ano colocado em suspeição: tempo ainda com ajuste em curso, páginas de puro tateamento – ora acerca do (interdito) presente, visto pelo retrovisor neste exato instante.

 

* * *

 

Gyn, 27 de fevereiro de 2022.

 

O tempo é de incredulidade – tudo vem sendo feito para torná-lo menos anuviado. O céu é de contornos marcados, seu matiz não serve ao estável, mas se sutiliza na prospecção solar, no atento do curso mais amplo: o recomeço. Novas formas de sentido, à flor de cada novo passo, afinam-se; o movimento é, por demais, necessário, e, no melhor estilo contrastante, confere ao desconhecido a moldura da luz. Com o clarão à farta, arroubos da criação passam a perfilar ao lado de quem interroga o momento refletindo-o espectralmente para cima. O verde na moda: presente! A esperança é semantizada na urgência mesma da vida e toda coleção o flagra – eis o que se espera e, sempre, se encontra em/ com Gloria Coelho.

 

A vasta complexidade de seu expediente expressivo, a propositiva extensão que acolhe e salvaguarda a tendência de aformosear a moda comportamental, a boa lição ecológica – a erigir pelo valor da linha, do corte, do tecido… sem se furtar, no entanto, das demandas insurgentes do planeta! O que este inverno / 2022 clama – como não poderia deixar de ser – são peças flagradas pela consciência do presente dispostas ao transporte com destino ao que se foi – passado zelosamente em revista. Qual intérprete de uma recirculação atualizada, Gloria vislumbra recuperar o extravio do afeto, e toda forma de medir a duração das coisas, respondendo ao valor que às lembranças se cumpre.

 

Assim, a estilista trata dos últimos dias que devêm ensimesmados, desabrochando-os na prosa mais pedestre, no vaivém das ruas, no guidom que liga o movimento às cores. Às flores. A mistura (a)temporal, aprendida na retrospecção apreciada daquilo que todos gostamos com o que gostaríamos de ver e ter no porvir, é o que encima cada passo dado neste jardim de inverno de 22. À espera do movimento adiante, o tempo na moda, no trânsito, em que as experiências anteriores porejam o coração com a insinuação de momento para, enfim, coexistirem.

 

* * *

 

Niterói, 04 de maio de 2022.

 

Choro de distopia. Com limiar não disruptivo. Choro na soleira: entre substantivo e verbo – a classe gramatical rivaliza – ou, como se diz, entre o som aberto ou fechado ao “o” –, grassando da solidão à “dualidão” (para citar Nietzsche com afeto por Spinoza). Da vida à iminência de seu oposto. É assim que Antonio Kuschnir, com sua série de pinturas intitulada Choroi, se (nos) dá a ver. Esta é sua exposição. O olho com contornos fortes, sob a tinta aturdida. Onde se tomam as cores #ondenaovicejaaflordaacolhidahumana – a diabrura, catalisada em gadgets.

 

A mostra traduz como a demanda dos dispositivos, em que pese sua luminosidade, pode nublar, exasperar, assombrar, em vez de tão somente unir, “linkar”, dar, receber ou fazer algum sentido – sobremaneira, quando do processo que envolve a elaboração de uma pandemia em curso. Em luto. Do passamento de dias solitários, charcos de subjetividade refletidos no choro azul. Choro desarvorado. (Des)afinado. Acumulado. Sitiado. Discurso perversamente (empenhado) que alastra, agoniza, fere. Ao adentrar a exposição, tudo está ali. (Ex)posto. (Des)ordenado. (Su)focado. A reação passional homônima a ela se perfaz; estanca os olhos. É quando o fio lacrimal seca, em estado à luz do outro, na atenção dele e à sua espera, para ser/ sermos – na forma da crônica que subjaz à expressão malparada – aos olhos de outrem, e, então, (ma)logra; (in)cessa.

 

Ataques de toda ordem são recebidos. O grito como corolário. Edvard Munch é atualizado. Picasso, no recorte do post-it, no mural do mundo. Matisse, com acento azul, harmonizado de modo absurdo. Ondas ciosas de perversidade, o estado em atenção obscura do/ no mundo. Perdas irremissíveis da duração a contrapelo da afoiteza. O diálogo que dá licença ao instantâneo toma a forma do julgamento vazio até mesmo entre os pares. Tudo isso, Kuschnir, astúcia e passionalmente emoldura – com a destreza de quem estima o(a) reflex(ã)o.

 

Notas

 

i Exposição individual apresentada no Salão Principal do Museu de Arte Contemporânea de Niterói, no ano de 2022, de 30 de abril a 26 de junho, sob a curadoria de Victor Valery.

 

Fotografia de Letícia Ferro

 

Letícia Ferro é editora e crítica literária, com graduação, mestrado e doutorado em Letras, pela Universidade Federal de Goiás. Hesita entre Goiânia e Rio de Janeiro. E-mail para contato: let_ras@hotmail.com

 

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