Poesia & Conto

A mãe verde | Cecília Garcia

Foto de micheile henderson na Unsplash

Mamãe está verde. Verde como chá de carqueja, sapo esmagado, palmeira açoitada pela brisa do mar que nunca verei. Tenho apenas um par de chinelos. O direito no meu pé, o esquerdo na boca de mamãe.

 

Agachada no paralelepípedo que junta as paredes do quarto, mamãe geme “Jaçanã, Jaçanã, Jaçanã”. É o bairro onde estamos presos: ela, eu, três irmãos barrigudos e os espíritos vacilantes, bêbados da memória de antepassados de um país sem nome.

 

“Chama o papai”, meu irmão pede. Nossas mãos formam um sanduíche suado, recheado de medo. “Ele tá dormindo no caminhão”.

 

Enquanto o demônio come mamãe com o prazer de uma colherzinha no sorvete, papai gosta é de comer na calcinha da vizinha o duro mingau do desejo. No altar encouraçado da cabine do caminhão, papai se nega a ajudar, ferindo meus olhos com o brilho do escapulário enrolado no pescoço. “Não vou salvar ela. A gente tá se separando”.

 

Em volta de mamãe, gira uma roda de pratos sujos de macarrão. Mamãe não gosta de cozinhar. A mais bonita mulher da zona norte nasceu com o cabelo ruivo e uma pele negra, os dentes brancos embora rangidos ainda envasando o perfume das laranjas comidas no quintal da infância. Ela comanda um salão de beleza nunca vazio, mesmo que suas clientes não tenham dinheiro para pagar. No crepúsculo, todas eram rainhas, de coroas de bobes e mantos de chita, desejando que os processos de tortura capilar as tornassem como mamãe.

Os pratos voam em minha direção e no último segundo desviam como louças arrependidas, espatifando-se nos retratos de um loiro e amado jesus.

 

Iansã por dez anos ninou mamãe no colo de tempestades, girando-a de alegria no terreiro de grandes árvores, que podíamos visitar quando éramos bonzinhos. Mas agora mamãe não a quer mais. Quebrou as contas vermelhas e abriu espaço no coração e na casa para um cristo inquilino. Iansã foi embora com uma mala de água empoçada e um jesus que não se parecia com a gente entrou, flutuando no miasma da culpa batista.

 

“Iansã”, murmuro com saudade. Mamãe treme e engatinha na ponta das unhas até mim, “Iansã, mamãe. Você lembra de Iansã?”

 

Ela põe a mão na minha testa, “Aqui não, nunca mais esses nomes”. Mamãe está fervendo.

 

“Chama o Gilberto”, escuto a voz de meu outro irmão. O pé de mamãe sobe até o ombro dele, mas ele não demonstra dor, “Só Gilberto pode ajudar mamãe. Ele tá na padaria”.

 

Gilberto, entre os meninos do bairro que gostam de fingir ser homens, era o dos ombros menos largos, e os disfarçava usando uma jaqueta de couro de jacaré. Ele tomava café com leite na padaria, sentado na frente de um balcão vermelho poluído por saleiros vazios e copos de clientes passados. Rosto dele enruga, “O que ela tem?”.

 

Gilberto ama mamãe. Busca água do poço para alimentar os filhos de quem não gostaria tanto nem que os tivesse brotado do seu sémen de pérola, e, enquanto mamãe enrola coroas de bobes no salão, é ele quem penteia nossos cabelos e passa nossas roupas.

 

“Gilberto, a mamãe não volta. Não é igual da última vez. A mamãe tá babando verde. Gilberto, vem com a gente, você pode ajudar?”

 

Gilberto troca o café com leite por uma pinga da destruição e, como se a garganta dele fosse transparente, posso ver o destilado atingir o coração de menino. Apesar de tudo, é menino e se apavora, vislumbrando não só um futuro em que não terá mamãe, mas também o de sua morte prematura, o corpo mole entupindo um cano de esgoto por três dias até alguém descobrir que ele foi causa esverdeada de uma enchente.

 

Ele diz não, afundando nas ombreiras, diz que não pode, “Tenho um compromisso que não posso faltar”, avisa, a mão conjurando um capacete invisível sobre minha cabeça, um feitiço protetivo para os ossos porosos do meu peito. 

 

A casa recebe, escura, meu retorno. O sol não a alcança, a Eletropaulo cortou a luz. Meu último irmão, o que não fala, aponta para a cozinha. Que bom que mamãe se moveu.

 

Uma pia amarela, um armário improvisado com arames e cortinas de flor, mamãe sentada canina em cima da mesa; mamãe caminhando lateralmente pelos azulejos; mamãe de cabeça para baixo pendurada na gambiarra do lustre, a boca ao contrário da minha; mamãe balança e eu reconheço na lentidão os sinais do cansaço de emprestar seu corpo.

 

Ela morde minha mão estendida e meus irmãos seguram a outra num cabo de guerra sem força. Seus dentes encontram a junção macia entre o indicador e o polegar, mas param de machucar quando os olhos amarelos enxergam minhas unhas. Estão cheias de pó dos móveis e bosta de irmãos pequenos. Algo do demônio morre, algo de minha mãe volta. Ela afrouxa as mandíbulas e desce do lustre que, sem ela, acende. As unhas dela, não importa o que aconteça, sempre estão lindas. Ela não admite o contrário em ninguém, “Filha, que unhas são essas? Vem comigo pro salão. A gente não vai demorar. O Gilberto tá pra chegar a qualquer momento”.

 

Com as unhas bonitas e as duas pernas, ela me guia de dentro para fora da escuridão. Os meninos começam a juntar os cacos de pratos e a limpar o macarrão sujo de sangue.

 

Papai dorme no caminhão azul. O assobio de Gilberto se avizinha covardemente no vento. Mamãe desenrola o aço da porta do salão de beleza e me põe na primeira cadeira, um carinho no ombro, jesus numa moldura de madeira com seus olhos de safira sem proteção, “Fica aí que eu vou buscar um montão de cor”.

 

Na porta, o demônio agora é um homem sem olhos. Ele estende as mãos.

 

 “Eu quero o esmalte verde.”

 

Fotografia de Cecília Garcia. Crédito da foto: Anali Dupré

Cecília Garcia é escritora e jornalista. Acaba de lançar seu primeiro livro de contos, Jiboia, pela editora Aboio. É co-criadora do Bestiário Brasileiro (@bestiariobrasileiro, no instagram), projeto literário e de ilustração científica sobre animais reais e imaginários do Brasil. Já teve contos publicados em coletâneas literárias como o Prêmio OFF Flip; Linguateca, organizada pelo escritor Marcelino Freire; e também Desnamorados, livro da Editora Empíre,

 

Qual é a sua reação?

Gostei
0
Adorei
1
Sem certezas
0

Também pode gostar

Os comentários estão fechados.