Poesia & Conto

Mais uma vez | Lindevania Martins

Foto de Olivier Guillard na Unsplash

A porta da cozinha se abre com um solavanco. A cabeça do marido aparece pelo vão mais tarde que de costume. Após horas de trabalho na lavoura, suas roupas estão suadas, os cabelos grisalhos e ralos pregados na testa, as unhas encardidas pela terra escura. Observando seu rosto, a mulher pousa a jarra que lavava sobre a pia, ajeita a mecha de cabelos brancos desgarrada do laço frouxo no meio da cabeça e aponta a panela sobre o fogão:

— Quer jantar, Antônio? Aproveita que a comida está bem quentinha.

 Ele ignora a pergunta, parecendo nervoso:

— Aninha, você nem imagina o que achei no mato.

Ela pega uma toalha de prato e começa a enxugar a jarra:

— Um brinquedo velho, como da outra vez?

— Não. Algo horrível!

— O quê, Antônio?

Ele suspira fundo e nada diz. A mulher se inquieta:

— Diz logo, homem! Não faz mistério!

— Três crânios e muito ossos.

A jarra escorre das mãos da mulher e se espatifa no chão da cozinha. O homem continua a falar, o corpo trêmulo:

— Você nem imagina meu susto. Algo de muito sério aconteceu por aqui. Temos que chamar a polícia, Aninha.

A voz da mulher sai tremida:

— Embaixo da mangueira, não foi? Disse tantas vezes para você não cortar a mangueira!

O homem empertiga as costas e leva ambas as mãos à cabeça, alisando a testa para cima de modo descontrolado:

— Como você sabe que foi embaixo da mangueira?

Ela dobra os joelhos, se abaixando para juntar os cacos. Um fragmento de vidro penetra em seu dedo mindinho. Dói. Ela o retira. O sangue tinge o chão de vermelho em pequenos círculos:

— Antônio, pelo amor de Deus, por que você é tão teimoso? Por que tinha que mexer logo ali?

Ele para de gesticular e seus ombros caem:

— Você sabe de alguma coisa, Ana? Não sabe?

Dobrada sobre o piso, ela percebe que o homem não a chamou no diminutivo, de Aninha. Ele a chamou de Ana, como sempre faz ao iniciar as conversas sérias. Ela observa o próprio sangue no chão e pensa na coincidência do vidro se quebrando em tantas ocasiões distintas. Escreve algo no cimento com o líquido que sai do dedo ferido. É a data em que o último vidro se quebrou, cinco anos antes. 

— Me responde! — o homem insiste, o rosto contraído.

Ela suspira:

— Infelizmente, eu sei.

— De quem são os ossos? 

Ela fecha os olhos cheios de tristeza: a vida é sempre repetição? 

—  Não vou te mentir. São do Tequila. E do Pedrinho. E do Bertô.  

 A voz do homem se altera, se avoluma, treme:

— Quem são esses, Ana?

O rosto dela está virado para o chão e ela fala próximo da gola do vestido. Sai uma voz abafada, a contragosto:

— Você sabe que fui mulher de outros, antes de te conhecer. Três vezes. Te contei no começo.

Ele mostra os dentes, fecha o punhos, ele rosna:

— Você contou apenas que estava traumatizada com os homens! Três ex-maridos e todos eles sumidos no mundo!

Ela levanta do chão com um caco grande de vidro escondido atrás das costas. Mais alta que ele, avança para o marido:

— Mas sumiram mesmo, Antônio.

Ele recua enquanto ela se aproxima:

— Me abraça — ela diz.

— Não. Vou chamar a pol…

A mulher é rápida e o surpreende com uma força que ele desconhecia. Enterra o vidro de uma vez bem fundo em seu pescoço, na veia jugular interna. Repete o golpe algumas vezes, do lado direito e do lado esquerdo do pescoço. Ela espera que o corpo caia no chão e, entre gemidos, comece a se mover daquele modo estranho que já testemunhou outras vezes. Ele demora a se tornar imóvel, mas Ana é paciente. Nem se preocupa com o jantar, que permanece esfriando sobre o fogão. Apenas senta ao seu lado e observa o sangue que jorra sem trégua emoldurando o corpo. Acha bonito. Acaricia os cabelos do atual marido, lembrando da sua primeira morte. Tequila era um companheiro frio que ela apenas tolerava. Até que não desgostava do Antônio, que era caloroso e gentil. Mas na sua história, cheia de repetição e engano, ela sempre terminava sozinha em meio a um mar de sangue. 

Sorri, sem se dar por vencida. Se o azar lhe alcançara por quatro vezes seguidas, encontraria o amor na quinta tentativa.

fotografia de Lindevania Martins

Lindevania Martins  é graduada em Direito, mestra em Cultura e Sociedade (UFMA) e mestra em Direito Constitucional (UFF). Ex-Delegada de polícia civil, é defensora pública de Defesa da Mulher e População LGBT. Atua como escritora,  palestrante e pesquisadora em Gênero, Tecnologia, Direito e Literatura. Integra o Grupo de Pesquisa em Crítica Jurídica Contemporânea (UFF). É membro do coletivo Mulherio das Letras. Venceu o 6o. Premio CEPE de Literatura (2021). Autora dos livros “Anônimos” (2003), “Zona de Desconforto” (2018), “Longe de Mim” (2019), “Fora dos Trilhos” (2019), “A Moça da Limpeza” (2021) e “Teresa Decide Falar (2022).

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