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A intersecção entre o aforismo e a poesia em como um levita à sombra dos altares, de Hirondina Joshua | Daúde Amade

Como um levita à sombra dos altares

 

“Os aforismos devem ser cumieiras, e aqueles a quem se fala devem ser homens altos e robustos.”Nietzsche, Assim falava Zaratustra

 

O que nos cumpre dizer deste primeiro livro de microcontos da poeta moçambicana Hirondina Joshua (1987) irá sendo exposto nas anotações aos seus nove textos. Serão algumas generalidades que terão de nós justo cabimento sobre este “como um levita à sombra dos altares”, publicado em 2021, pela Húmus em Portugal, na colecção 12catorze.

 

Guia-nos o ensejo de acentuar aqui, por debaixo da composição espiritual de Hirondina, a forma contatória aforística e poética, duas tendências que se abraçam para a “luminosa” e “cinzenta” matéria textual. Tem como tom a primeira delas a aspiração empirista da pensadora, ao passo que a segunda é como a razão lúcida após a embriaguez de realidade por beber do temperamento do ser humano. Se for para a contatória aforística que nos voltarmos, veremos alguém que se retém e libera no gnarus do quotidiano, no tónico deslumbrante de palavrar o rebentar róseo do sol, metáfora da vida, no autodomínio, na consciência plena de quem migra do poético ao narrativo sem no entanto se afastar nem de um nem do outro; alguém que se ergue e que se orienta sempre pela necessidade gritante de estruturar a dicção interna, de rigor lírico do pensamento, da mecânica sólida do seu éthos.

 

Este “como um levita à sombra dos altares” é um poço denso, é um hino à obscuridade; é a Hirondina sagaz e aforística, como se lembrasse da visão-de-mundo proverbial que se enceta em suas raízes étnicas – copi -, que dão título ao primeiro texto, “os chopes e o clarão do corpo”; é a Hirondina apóstola e enunciadora da sabedoria da vida além do tempo, a prestadora de serviços à alma adoentada, a humana da morte como “amor fati”. Mas se dermos atenção à negrura com que se veste o seu verbo, – ouviremos a narrativa a dissolver o sal que a morte nos deita à razão por um simples artefacto de intelectualização dos sentidos: a das coisas que nos são irremediavelmente conexas, como a etnia em que viemos, a língua com que se vestem as coisas e as despimos, como o “ndilimuwa (laranja) – o músculo canta, diz antes de falar, bate o céu da boca e solta dos dentes” (Joshua, 2021: 22), da submersão na alma do mundo, da sensibilidade do corpo à podridão que lhe lança, como feitiço, o tempo, da noite e seus mistérios, da metafísica das flores, das árvores e das magumbas, do surrealismo de um corpo que definha por dentro da angústia e da revolta do feminino que, sabendo-se reger as lógicas de como a roda do mundo gira, ainda se vê apunhalado pelas costas pelo homem secular.

 

Há pois uma Hirondina turva e lutuosa, que é para a Hirondina sagaz, vertiginosa e apolínea, o que o sujeito que a acompanha com o rosto todo coberto em máscara negra das angústias e espantos nas sombras no vácuo do poeta moçambicano: “a reverberação dos mortos/ tantos e tantos/ mesmo em alguns ainda vivos” (Pedro, 2017: 43)

 

Ora, sob tal sugestão, duas observações fazemo-nos. Ao que afirma a primeira, a dualidade de tendências, é um redondo possível que não podendo ser só um traço distintivo dela é do homem, porque o somos todos, turvos e lutuosos, na condição psíquica dita “normal”. Ao que se antevê da segunda, baseada numa lucidez de quem está para além de sentir, está baseada na unidade espiritual da poeta e da humana que é, não havendo isolamento entre eles, na inteligência, intuição, tonalidade emotiva, imaginação, memória, etc., uma desunião.

 

Ao fazer a leitura destes contos que, quando não se esquecem de o ser, na norma e no rigor do formalismo do conto (ter acção, espaço, tempo, personagens, focalização e narrador), tendem a implodir no corpo da narrativa com recortes aforísticos, interceptando o prosaico com o poético. São demasiado curtos, irrompem vulcanicamente, parte dos textos, com corpos ausentes, e as vozes sem corpos e nem espaço e nem tempo denotado, ocorrendo como na oficina de um tecedor de versos, a poesis. São textos que no entanto, no seu todo, têm a medula do aforismo e da poesia a correr-lhes nos ossos. Mas o que lhes difere? No A dictionary of literary terms and theory, o aforismo é definido como uma declaração concisa de uma verdade, opinião ou dogma; uma generalização concisa, que pode ou não ser espirituosa. E, geralmente, “a successful aphorism exposes and condenses at any rate a part of the truth, and is an aperçu or insight” (Cuddon, 2013: 46). Do grego “aphorismus” significa “delimitar” ou “definir”, consistindo em delimitar as fronteiras de uma ideia ou conceito.

 

Tenho vindo a ler vários textos aforísticos ao longo de minha necessidade de leitor, onde os aforismos se intrometem em textos filosóficos, poéticos, de prosa de ficção ou como pensamentos esporádicos, principalmente na tradição oral africana. Servem de exemplo os Aforismos para a sabedoria de vida, de Arthur Schopenhauer, a obra toda de Friedrich Nietzsche, cujo aforismo é a marca distintiva dela, Matrimónio do céu e do inferno, de William Blake, O profeta, de Khalil Gibran. Em Moçambique, também o aforismo adensa as produções literárias e filosóficas, vemos textos de autores como Mia Couto em Terra sonâmbula, Ungulani Ba Ka Khosa em Os sobreviventes da noite, Paulina Chiziane, em Niketche – uma história de poligamia, José P. Castiano, em Filosofia Africana: da Sagacidade à Intersubjectivação com Viegas. Porém o que nos leva a ler este “como um levita à sombra dos altares” é o seu feitio contractivo e expansivo da noção do aforismo. Alguns deles, ali, dão-se como meras observações: “perguntar como se obtém conhecimento é o mesmo que perguntar como é que se vive na terra” (Joshua, 2021: 22). Outros parecem mais instantâneos fragmentos pessoais: “a escada esconde segredos sobre a evolução. mostra-me como se faz um candelabro” (Joshua, 2021: 27). E, ainda, há aforismos que lutam com conceitos gigantes, como o bem e o mal, a sensibilidade, a alma como o que nos vivifica, e a morte: “a morte é um feitiço que não se explica” (Joshua, 2021: 31). Finalmente, nesses textos de Hirondina, há aqueles aforismos que, em vez de delimitar algo pequeno, parecem capazes de oferecer uma weltanschauung, uma visão-de-mundo, como no aforismo que diz:

 

as árvores obedecem a um sono antigo.

por isso o caule ainda se demora, em movimentos redondos, exige da raiz o cúbico milagre das alienações.

– esperam pela chuva (Joshua, 2021: 44).

 

Este texto beira à prosa poética: texto que combina a estrutura da prosa com as características da linguagem poética. Parece-nos que aí Hirondina faz um reproche ao modo inconstante do ser humano, a essa incapacidade de permanecer o mesmo, seja em actos ou em temperamentos, o Homem não dorme, está sempre em vigília e seus movimentos não são redondos, i.e., repetitivos e circulares. A crítica por ela levantada é como se nos lembrara o poeta polaco Zbnigniew Herbert no poema Os objectos:

 

Os objectos inanimados estão sempre em ordem e nós infelizmente não temos nada a censurar-lhes. Nunca vi uma poltrona trocar de pé ou uma cama erguer-se nas pernas traseiras. E as mesas, mesmo quando estão fatigadas, não se põem de joelhos. Suspeito que os objectos se comportam assim por razões pedagógicas: para nos censurarem constantemente pela nossa instabilidade (Herbert, 2009: 31).

 

O sentido literal que o aforismo emite pode ser, às vezes, filosófico, psicológico, auto-reflexivo, quotidiano e empírico. E todas essas imagens, ao ler os textos que compõem “como um levita à sombra dos altares”, saltam-nos à vista, às vezes misturadas ou muito separadas. Há uma forma de escrever os aforismos, como o que tomam os textos de Aforismos para a sabedoria de vida quando nos lembram os seus dizeres, como navalhas cortantes, que: “a riqueza é como a água do mar: quanto mais a bebemos, mais sede sentimos” (Schopenhauer, 2002: 50). Mas Hirondina quer ir para além disso, para além do canónico, dessa ideia de o aforismo ser um ditado incisivo para uma construção de imagens ou de pensamentos pessoais que, partindo da existência, avançam em sentido à estagnação na mente do leitor.

 

Porque Hirondina é poeta, às vezes o aforismo e o poema se imiscuem, resultando numa estrutura de textos que não sonham em ser só poesia, porque se lhes logrou a tentação de ser conto, e então ficam suspensos nesses intervalos. Mas o que distancia a poesia do aforismo? Enquanto a poesia se contenta com deixar as indagações que se coloca sem respostas, o aforismo porta-se como uma resposta em busca de sua indagação. Porém, há esta intersecção entre a poesia e o aforismo quando nos aforismos podemos encontrar a metáfora, mas também quando, às vezes, as indagações poéticas encontram suas respostas e as respostas dos aforismos encontram suas indagações. Aí cai-se no terreno fértil da metáfora, onde vemos que os dois géneros são bastante obscurecidos pela matéria que se derivou. Eis o que se vê quando Hirondina escreve: “o coração mostra como ele pensa” (Joshua, 2021: 35).

 

Esse parece-nos ser um aforismo pessoal, recai no mais pessoal dos sentimentos cujo fim é gestar uma verdade sobre a condição humana. A poeta, aqui, dá-nos a resposta, deixando em nós a curiosidade de termos que nos questionar: por que o coração mostra como ele pensa? Aí cabe ao leitor encontrar, em particular, sua resposta. Isto implicará desfazer as roupagens metafóricas de que se vestiu o pensamento e encontrar na linguagem a condição humana.

 

Há uma obstinação em escrever a morte neste “como um levita à sombra dos altares”. E quanto Hirondina cruza as verdades universais de que se assumem trazer os aforismos, dissimulados nesta linguagem poética, a morte aparece como o conceito de sua abstracção: “– há corpos que morrem enquanto ainda estão vivos e outros, morrem já mortos. e há uns que a morte lhes escapa. simplesmente não morrem” (Joshua, 2021: 31). Contudo, o mecanismo do aforismo também pode ser, e neste sentido não se difere da poesia, evocar o geral a partir de um ponto de vista particular, até mesmo pessoal. Acreditamos, por isso, que um aforismo pode ser pessoal e não totalizante, ainda que muitos bons o sejam: “…inventava a angústia para compreender o bocejo universal” (Joshua, 2021:40). Este é um aforismo da Hirondina, mas poderia ter sido dito por qualquer um que sob a luz da abstracção se iluminasse.

 

Diz Hirondina, a dada altura no texto “avô, como se morre?”, ainda a despeito da morte: “– é porque a morte tem a ver com iniciação. duas matérias desenham a separação longínqua da dor: uma que permanece fechada no segredo e outra na luz que cega” (Joshua, 2021: 32). O aforístico e o poético se interceptam, a fim de explicar o porquê da morte, e o que sucede ao corpo e alma quando se anuncia o fim dos dias. Ainda num outro texto, a poeta a dada altura sentencia: “a vida está dentro da morte como sabemos, mas de um modo demasiado fracassado” (Joshua, 2021: 43). Esta forma metaforicamente paradoxal de colocar duas realidades que se opõem, está ao serviço da acentuação do tom falhado a priori de toda a vida humana, como se nos dissesse: desde o momento que se chega ao mundo a morte torna-se certa.

 

O que move os aforismos, como se vê nestes textos da Hirondina, é oposto ao impulso épico, onde se quer sagrar heróis e erguer bandeiras. Talvez seja por isso que muitos dos aforismos tendem a sair pelo lado de temáticas como o Amor, Mal, Deus e Morte: tais temas não se curvam ao escrutínio humano desde as primeiras civilizações humanas. Pois é aqui, no lado contrário do telescópio, visto que as coisas próximas distanciam-se, onde o aforismo e a poesia podem, por amabilidade, darem-se as mãos.

 

Referências

Cuddon, J. A. (2013). A dictionary of literary terms and literary theory. Hoboken: Wiley-Blackwell

Herbert, Zbigniew. (2009). Escolhido pelas estrelas: antologia poética. Lisboa: Assírio & Alvim.

Joshua, Hirondina (2021). Como um levita à sombra dos altares. Vila Nova de Famalicão: Húmus.

Pedro, Mbate (2017). Vácuos. Maputo: Cavalo do Mar.

Schopenhauer, Arthur. (2002). Aforismos para a sabedoria de vida. São Paulo: Martins Fontes.

 Daúde Amade

Daúde Amade nasceu na cidade de Maputo. É professor e ensaísta, às vezes contador de histórias outras vezes poeta. Formado em Filosofia e História na Universidade Pedagógica – Maputo; estudou Literatura Moçambicana na Universidade Eduardo Mondlane.

    

 

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