Cultura

Literatura e começo | Nuno Brito

Escrever é inscrever no interior de um círculo o exterior de todos os círculos


Maurice Blanchot



A literatura está em todo o gesto humano, em toda a representação ela se manifesta, manifesta como aparição: Lemo-nos uns aos outros, cheios de sede, com os lábios trémulos, enquanto humanos. Segundo Heidegger qualquer manifestação é sempre um não mostrar-se. A literatura manifesta-se nessa elipse de tudo o que está escondido na condição humana, um olhar, um gesto, uma união. Independentemente do suporte, ela apresenta-se, revitaliza-se e renasce; apresenta-se ao homem vindo do próprio homem e ultrapassa-o, faz o homem superar-se a si mesmo, incorporando toda uma literatura anterior. Nada se esgota ou anula, pensar que tudo está feito é tender para a morte. A civilização sustem-se na literatura, ela pode ser oral, gestual, assente em qualquer suporte por mais volátil e perene que seja. Pelo fim do símbolo, ela pode ser só representação sem representação: campo/contra-campo: pode estar no olhar, num atirar um pau para a água, no regar os girassóis, em cada acto ela se revela, se mostra, se recria, se cruza com outras realidades para tecer novas ficções. Satoshi Kon alerta-nos para o facto da realidade prover da ficção: no seu novelo contínuo, a realidade tece-se de ficções, as sombras provam-nos que há sol.


A literatura exige o cruzamento constante de tempos e espaços diferentes. Tempo e espaço podem não chegar a caber na literatura, ela ultrapassa-os. Quando pensamos que um género literário se esgota, uma matiz de pensamento se esgota, logo ela se revitaliza, incorporando elementos do passado e do futuro. A frase de Blanchot por muito paradoxal que pareça e sendo uma afirmação circular mostra as inúmeras portas que se abrem diante do fenómeno literário: “inscrever no interior de um círculo o exterior de todos os círculos” é tornar o impossível possível (há limites, o círculo: a linguagem, o pensamento humano, a cultura em geral), mas escrever poda esses limites, anula-os quase por completo, pelas portas que abre, e são muitas: anulam-se os condicionantes, as barreiras do pensamento humano. O salto é difícil mas é sublime e está presente apenas na vontade de renovar, de incorporar o erro, de acrescentar, e veja-se erro no sentido mais positivo da palavra: só ele faz avançar – Este é um dos pontos principais para captar e perceber a hiper-realidade que se nos apresenta diante de nós, como uma estrela de várias pontas, uma porta sempre aberta. Já Emily Dickinson se dizia, falando sobre a poesia “Habito a possibilidade, uma casa mais ampla do que a prosa”. Pode-se dizer em versos, o que os não versos não podem dizer. Referindo-se à literatura em geral, Ernest Bloch falava dela como “Uma festa e um laboratório do possível”. Ultrapassa a linguagem, transgride-a, o pensamento humano anula as suas barreiras. Jean Paul Sartre refere que o poeta está fora da linguagem. Luis Miguel Nava acrescenta que todo e qualquer poema é uma cosmificação, um lidar com o cosmos todo, no acto de escrever: entenda-se aqui universo interno e externo, ambos se tocam no processo de escrita. Se é verdade que qualquer texto literário está dependente do tempo e espaço, também é verdade que um texto dá sempre um salto e ultrapassa ambos. Nessa intemporalidade da escrita que é ao mesmo tempo uma universalização toda a história se adianta, se articula com passado e com futuro. “Escrevo tal como nado, porque o meu corpo assim o exige”, dizia Camus no seu diário. Não é somente a consciência, outra forma de dizer alma humana, que pede o acto de escrever, é todo o corpo que pede, físico, palpável, a precisar de calor, é todo ele que necessita, e necessitar é sempre uma forma de desequilíbrio que procura o equilíbrio. Na escrita encontra-se esse equilíbrio que o corpo pede. Acrescentam-se pontas à estrela hiper-real, ela engrossa a vida, a literatura, pulsa no sangue, adianta-se. Todo e qualquer texto é sempre um começo e um fim ao mesmo tempo. O processo de escrita de um homem é o processo de escrita de toda a humanidade, de todas as suas vivências.


A literatura é sempre um colocar em abismo, uma luta perene contra a própria perenidade, um doce sopro que inflama de vida e sustem a civilização. O seu tempo e espaço é múltiplo, toca todas as matizes da condição humana, permite a sua compreensão pela fuga. Todo o acto de Criação, injecta de vida nova a linguagem. Como refere Leonardo Da Vinci: “A arte nunca está acabada, apenas abandonada”: E é nesse abandono duns, que outros continuarão, em novelo eterno, aumentado o desequilibro, tornando o equilíbrio possível; nesse sentido a literatura será sempre um desequilíbrio. Como nos diz Pessoa: “A civilização é a tendência para a morte pelo desequilíbrio” – A literatura é esse desequilíbrio, mas ao mesmo tempo a salvação, o motor da união.

Nuno Brito

Fotografia de Nuno Brito

Nuno Brito nasceu no Porto em 1981. É Professor Visitante no Departamento de Línguas e Culturas Românicas da Universidade de Buffalo em Nova York e autor dos livros: Delírio Húngaro (2009), Antologia (2011), Crème de la Crème (2011), Duplo-Poço (2012), As abelhas produzem sol (2015), Estação de serviço em Mercúrio (2015), O Desenhador de Sóis (2017), Ode menina (2021) e Escrever um Poema sobre a Liberdade e vê-lo arder (2022).

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